Da Existência – Heidegger e o Vazio Existencial

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Por: Giovanni Gaeta – Psicólogo

A angústia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir, e assim, justamente, nos acossa o nada, em sua presença, emudece qualquer dicção do “é”. O fato de nós procurarmos muitas vezes, na estranheza da angústia, romper o vazio silêncio com palavras sem nexo é apenas o testemunho da presença do nada. Que a angústia revela o nada é confirmado imediatamente pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na posse da claridade do olhar, a lembrança recente nos leva a dizer: Diante de que e por que nós nos angustiávamos era “propriamente” — nada. Efetivamente: o nada mesmo — enquanto tal — estava aí.

Heidegger – Que é Metafísica?

Em Ser e Tempo, Heidegger situa o ser a partir da perspectiva do tempo. O que isto significa? Para Heidegger, o tempo não é algo externo ao homem, mas faz parte dele. O tempo é a relação entre o agora do homem, a forma como reteve o presente anteriormente e o horizonte de orientação quanto ao futuro. Em Heidegger, a existência está no horizonte do ser e do tempo. O homem é lançado no mundo sem saber por que. Ele desperta para a consciência já imerso nesta condição. Se conscientiza da própria finitude e teme a morte. Condenado à morte, o homem sabe que não poderá realizar todas as suas possibilidades e, além disso, não tem sequer a certeza de que se realizará nesta vida, de que será feliz. Segundo Heidegger, esta consciência gera a angústia diante da morte e da própria vida. A angústia de morte refere-se à consciência do indivíduo sobre seu possível não-ser. É o estado subjetivo da conscientização por parte do sujeito de que sua experiência pode ser destruída, de que ele pode perder o próprio ser e o mundo. Angustiado, o homem percebe que é preciso adiantar-se à própria morte, escolher a si mesmo. A angústia heideggeriana permite que o homem possa resgatar-se do viver cotidiano. Ela está sempre presente, é a condição do ser. Pode ser vivida num distanciamento ou aproximação. Enquanto distante, será vivida como medo. Ao aproximar-se dela, o homem vai ao encontro da sua totalidade.

Heidegger localiza o homem na temporalidade. O Dasein é concebido numa conjugação entre o “ser-sido” (o nada), o “estar em situação” (o cuidado) e o “por-vir”(o nada). É o se saber como ser para a morte. A consciência da morte exige que o homem dimensione-se no tempo. Se a existência é finita, as possibilidades também são. Cabe então elaborar um projeto e definir estratégias para realizá-lo. Há sempre uma inquietação relativa ao tempo, uma tensão constante entre o vir-a-ser e o passado. Se o homem assume essa inquietação, vive a vida autêntica; distancia-se dessa consciência, cai na inautenticidade, vivendo como que levado pelo destino.

Diante dessa exigência, o homem pára para refletir. Investiga o significado da própria existência e descobre que este significado não pode ser encontrado nele próprio, mas na sua relação com o mundo. O homem questiona seu lugar no mundo. O vazio e a falta de sentido da e na vida são aspectos difíceis de serem aceitos e vividos. Entrar em contato com tais aspectos deixa o homem sem saber como agir e desamparado. A angústia gerada neste contato é muitas vezes insuportável e alguns homens preferem fugir desta consciência, preenchendo sua vida com coisas, objetos materiais, sucesso, prestígio, etc. Tal caminho muitas vezes leva o homem à outras formas de sofrimento, pois não reconhecendo-se naquilo que faz, este homem tende a cair no tédio existencial, a dor de ver a existência passar e não estar vivendo todas as possibilidades que lhe são oferecidas pela vida. É a falta de perspectiva de evolução, a noção de se estar vivendo uma vida sem sentido. Ao evitar o vazio existencial, a ruptura com o cotidiano em direção ao autoconhecimento e descobrimento das próprias potencialidades, o homem se impede de encontrar novas trilhas e oportunidades de se preencher, de realizar seu projeto.

 Referências:

Introdução às abordagens fenomenológicae existencial em psicopatologia (II): As abordagens existenciais – José A. Carvalho Teixeira

O Que é Metafísica? – Martin Heidegger

Ser e Tempo – Martin Heidegger

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Franklin Leopoldo e. Descartes – A Metafísica da Modernidade

Franklin Leopoldo.  Descartes - A Metafísica da Modernidade

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Razão, Fé e Ciência – Assunto Fascinante, Relações Conflituosas.

Por: Carlos Eduardo Bernardo.

Para Um Bom Começo.

Todas as pessoas têm naturalmente certa compreensão do que se quer dizer quando se fala sobre fé; ainda que tenham dificuldade em conceituá-la dificilmente irão dissociar a fé das noções que têm acerca de religião, Deus ou mundo espiritual. Certamente essa é a primeira associação que se faz com o conceito de fé: a fé religiosa.

Todavia, esse senso comum acerca da “fé religiosa” está marcado por certa incipiência e esta o aproxima da idéia mais geral de crença. Mas crença não

Paul Tillich (1886-1965). Teólogo protestante de perspectiva existencial. "[...] fé é a preocupação última  de todo ser humano".

Paul Tillich (1886-1965). Teólogo protestante de perspectiva existencial. “[…] fé é a preocupação última de todo ser humano”.

implica necessariamente a dimensão religiosa, pode-se crer nas instituições, nas pessoas ou em esperanças que têm as mais variadas origens, e, neste sentido é possível falar de fé política, fé antropocêntrica, fé institucional e assim por diante.

Não é tarefa fácil definir “fé”, pois muitas definições são possíveis, mas neste contexto se toma por referência a contribuição de Karl Rhaner (1904-1984) e Paul Tillich (1886-1965), pois parece que elementos que compõe suas

Karl Rahner (1904-1984)Importante teólogo católico e sua contribuição com a leitura existencial da fé

Karl Rahner (1904-1984)
Importante teólogo católico e sua contribuição com a leitura existencial da fé

respectivas definições podem ser atribuídos a todo exercício de fé, independente da religião. A presente reflexão trata da fé em sua dimensão mais especificamente religiosa, no entanto convém clarificar qual seja a concepção – conceito – de fé religiosa visado neste texto. A fé religiosa é aqui entendida como a disposição de “abertura subjetiva e ilimitada do sujeito” (RHANER, 1989, p.32) para com aquele que “é último em ser e em sentido” (TILLICH, 1987, p.485), o transcendente que tem em si prerrogativas que possibilitam a relação, a religação (lat. religio).

Por que temos que escolher entre a fé e a razão? Porque supomos que elas são instâncias mutuamente excludentes? Por que supomos que se alguém “crê não pensa e se pensa não crê”?

Estas questões não são colocadas com objetivo polêmico ou apologético, mas, simplesmente em caráter reflexivo. Pois é fácil encontrar diversos textos que, de um modo, ou de outro, fazem apologética da fé ou da razão, ou apenas polêmica desta temática.

Quando resolvemos uma equação não usamos o sentimento, quando apreciamos Quinta de Beethoven não fazemos racionalmente, embora não estejamos despojados dos sentimentos ou da racionalidade nos dois casos, e, por vezes fazemos uso seletivo de nossos atributos de acordo com o objetivo a que nos propomos. Nada impede que se faça uma análise matemática da Quinta referindo-se a sua métrica, ou que resolvamos apaixonadamente uma equação de segundo grau, mas, isso não é o que se espera de todos e não é que fazemos com maior freqüência.

Ao ultrapassar a fase da vida em que se tem uma visão mágica do mundo, crer na existência do Papai Noel, ou noutras fábulas, é tão ingênuo quanto à tentativa em “calcular quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete”; mesmo que se provasse a existência dos anjos jamais poderíamos fazer tal cálculo, porque essa existência ultrapassaria o âmbito de tudo que é de competência da razão.

A racionalidade procura o objeto que lhe é próprio, assim como fé também o faz. Colocar os objetos da fé na esteira da razão ou os objetos da razão na esteira da fé só ocasiona equívoco e problemas para o desenvolvimento da humanidade nos dois aspectos. Quando falamos das descobertas de Albert Einstein (1879-1955) pensamos em Ciência e não em religião, ainda que se possa advogar que num sentido muito peculiar Einstein foi um homem profundamente religioso, quando falamos de Paul Tillich pensamos em religião e não em Ciência, embora Tillich demonstre um conhecimento profícuo de assuntos científicos.

O fiel interessado em saber acerca da formação geológica da Terra procura informações num livro de Ciências, mais especificamente de Geologia, um aluno universitário que queira saber o crê um cristão começa pela leitura dos Evangelhos. Não se espera encontrar descrições dos aspectos constitutivos da litosfera, ou da hidrosfera na Bíblia, ou nos Evangelhos, assim como não esperamos encontrar no Tratado de Geologia Geral a narrativa do nascimento virginal de Jesus Cristo.

Ao não fortalecer a fé do indivíduo a Ciência em nada é diminuída, porque este não é seu objetivo; de igual modo a Religião não é menos importante por não nos enriquecer em conhecimentos sobre os fenômenos naturais, pois seu objetivo não é este. Porém a Religião será sempre diminuída se for evocada com propósito a obstruir o avanço da Ciência e certamente seus argumentos não serão nem um pouco religiosos, já a Ciência é sempre diminuída quando evocada com o puro propósito de destruir a fé, ou substituir a religião[1].

Stephen Jay Gould (1941-2002), talvez, o mais destacado evolucionista do século passado, desenvolveu uma descrição apropriada da capacidade de abrangência tanto da ciência, quanto da religião, ele a chamou “Teoria dos Magistérios Não-Interferentes”. Sua teoria propõe que as duas instâncias são magistérios – serviços – distintos, cujo campo de atuação não se permite interferir, pois, seus objetos e objetivos são de naturezas totalmente díspares, a ciência tem como objeto a Natureza e trabalha com explicações naturalísticas, o que coloca fora de seu alcance tanto os “objetos” da religião, quanto da moral.

A religião, por outro lado, objetiva a salvação – ou emancipação – espiritual da humanidade, ela cuida de questões sobre o relacionamento com Deus – ou com os deuses – no seu escopo estão inseridos assuntos relativos a espíritos, anjos, demônios, Deus e divindades, destino eterno da humanidade ou do indivíduo. Portanto, suas “explicações” jamais serão naturalísticas, e, seu objeto jamais será a Natureza – a menos que defendamos tratar-se da Natureza Oculta das Coisas, o que não inferimos neste contexto.

Os campos da religião e da ciência são distintos e dependem de instâncias de juízo, ou valorativas diferentes, a religião está submetida à instância da fé, e a ciência à instância da razão que se debruça sobre evidências dadas nos objetos da natureza, buscando corroboração para suas teorias na experiência.

Muitos cristãos ficaram indignados com a definição de fé dada por Richard Dawkins (1941): “[…] uma confiança cega, na ausência de evidências, até mesmo nos dentes das evidências”. Mas, não há motivos para tanta indignação. É possível que o adjetivo “cego” quanto ligado ao substantivo “fé”, seja o motivo principal de tal reação, porém, essa é a única forma como se pode qualificá-la em face da ciência e da razão, pois, seus objetos são invisíveis para estas instâncias e o cristão não deveria ofender-se com o cético quando ele afirma que a situação que se lhe apresenta no mundo da fé é como uma cegueira, pois ela o é realmente, e, isso do ponto de vista em que se coloca o homem “sem fé”, mesmo o homem de fé se posiciona ante o seu alvo como quem pode vê-lo, ainda que este lhe seja invisível como Moisés que ficou firme como se visse o invisível ou quando Paulo disse que Deus é invisível, e, é este o sentido da impossibilidade em ser visto, enquanto objeto da fé[2], ainda o homem de fé se move ante o que seja evidente como que lhe atribuindo menor importância, comparado ao homem sem fé, ou até mesmo ignorando as coisas visíveis, porque não são elas quem o orienta.

O homem de fé pode igualmente dizer que a atitude do homem sem fé, ao tratar racionalmente das “coisas espirituais”, é uma “racionalidade cega”, e, os homens que não creem não devem ficar indignados com isso, pois, podem perceber que o tratamento das coisas da fé com os olhos da razão não consegue chegar a assentir o objetivo da fé. É algo como tentar sentir o cheiro de uma flor com os olhos, ou o gosto da maçã com a ponta dos dedos, em ambos os casos são necessários os sentidos adequados, o olfato para o aroma e o paladar para o gosto. Igualmente, a razão para os cálculos e a fé para se aceitar um evento sobrenatural. Continuar lendo

As Antinomias de Kant

Immanuel Kant nasceu na Prússia em 1724. Tinha 46 anos quando foi nomeado  professor titular da Universidade de Königsberg – sua cidade natal –, responsável pela  cátedra de Lógica e Metafísica. Onze anos depois, em 1781, publicou a sua obra mais importante, a Crítica da Razão Pura, que haveria de ter uma segunda edição, consideravelmente revista (e com um novo prefácio), em 1787. O objectivo principal de Kant nesta obra era investigar a possibilidade de a metafísica se constituir como uma verdadeira ciência. Nessa investigação, Kant considerou que o problema central seria o de saber como são possíveis os juízos sintéticos a priori, uma vez que é em tais juízos que o conhecimento metafísico, se for possível, se expressará.
Kant chegou a uma conclusão negativa, segundo a qual a metafísica não é possível, se a entendermos no sentido antigo (“dogmático”) do termo, enquanto conhecimento a priori das coisas em si e do supra-sensível (onde se incluem, nomeadamente, Deus, a liberdade e a imortalidade). Nós só conhecemos as coisas como fenómenos, quer dizer, enquadradas nas formas da intuição e do pensamento, como objectos de uma experiência possível. A ideia de um conhecimento metafísico transcendente, com o qual pudéssemos ultrapassar os limites da nossa experiência, constitui uma ilusão. Trata-se, no entanto, de uma ilusão inevitável, que tem origem na dialéctica natural da razão humana. Como alternativa, Kant propõe uma nova concepção da metafísica, a que também chama “filosofia transcendental”, cuja tarefa consistiria em reunir num sistema coerente todos os conceitos e todos os princípios que constituem condições a priori da
possibilidade da própria experiência.
O conhecimento humano, segundo Kant, requer a colaboração da sensibilidade – faculdade das intuições, através das quais os objectos nos são dados – com o entendimento – faculdade dos conceitos, através dos quais os objectos são pensados. “Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas. Pelo que é tão necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objecto na intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las aos conceitos). […] O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua reunião se obtém conhecimento” (Kant 1985: 89). Mas, a rigor, o entendimento não é a única faculdade que opera segundo conceitos, pois isso também é verdade da razão. A distinção kantiana entre entendimento e razão parece ser sobretudo uma distinção entre dois modos de operar com conceitos (ou duas maneiras de pensar): na primeira, aplicando-os aos objectos da experiência; na segunda, formando novos conceitos, aos quais nenhum objecto de qualquer experiência possível corresponde. Homenageando Platão, Kant chama Ideias aos conceitos puros da razão, que diz serem três: a ideia de alma, a ideia do mundo como totalidade e a ideia de Deus. Estas ideias seriam geradas quando tomamos uma certa forma de inferência e tentamos torná-la absoluta, quer dizer, tentamos usá-la para chegar a uma conclusão que não dependeria já de nenhuma premissa. Seria assim, por exemplo, que formamos o conceito puro de “o mundo como um todo” (algo que nunca poderia ser dado numa experiência), a partir da simples forma das inferências causais: das relações causa-efeito entre objectos empíricos passamos à ideia do mundo como totalidade que contém em si todas as causas e todos os efeitos.
Ao pensar sobre o mundo como totalidade, a razão é inevitavelmente conduzida a antinomias. Para Kant, uma antinomia é um par de argumentos cujas conclusões são 2contraditórias (ele chama-lhes “tese” e “antítese”). São quatro as antinomias da razão pura que Kant nos apresenta. O objectivo, em todas elas, é mostrar que a razão é naturalmente levada a contradizer-se a si mesma quando pensa sobre o mundo como um todo.

1ª antinomia:
Tese: «O mundo tem um começo no tempo e é também limitado no espaço.»
Antítese: «O mundo não tem nem começo nem limites no espaço, mas é infinito tanto no tempo como no espaço.»
Uma série infinita é, diz Kant, uma série que nunca se pode completar. Não é possível, então, que já tenha existido uma série infinita de mundos. Este é o argumento a favor da Tese. Por outro lado, a Antítese é obtida pelo seguinte raciocínio: Se o mundo teve um começo, houve um momento do tempo em que ele não existia. Se considerarmos esse “tempo vazio” em que o mundo não existia, todos os seus momentos se equivalem, não há nenhuma diferença entre eles. Por isso, o mundo não pode ter começado num desses momentos, em detrimento dos outros.

2ª antinomia:
Tese: «Toda a substância composta, no mundo, é constituída por partes simples e não existe nada mais que o simples ou o composto pelo simples.»
Antítese: «Nenhuma coisa composta, no mundo, é constituída por partes simples e não existe nada no mundo que seja simples.»
O argumento para estabelecer a Tese tem a forma de uma reductio ad absurdum.
Tomemos um objecto qualquer e suponhamos que ele não é composto por partes
simples. Decomponhamo-lo em partes e, depois, decomponhamos cada uma dessas
partes, e as partes dessas partes, etc. Uma vez que não existem simples, o processo de
decomposição continuará sem fim. Mas isso implica que nada restará desse processo – o
que não é possível, pois o objecto é uma substância. Logo, a suposição é falsa e concluise que o objecto é composto por partes simples.
O argumento da Antítese começa por supor que existe uma parte simples. Essa parte ocupará um certo espaço e este, como todo o espaço, será divisível. Mas então aquela parte simples também será divisível – o que não é possível. Logo, a suposição é falsa e conclui-se que não existem partes simples.
Kant chama “antinomias matemáticas” a estas duas primeiras e considera que, em ambas, tanto a Tese como a Antítese são falsas. O erro que está na base de todos os argumentos apresentados é a ideia de um todo cósmico, à qual nenhum objecto poderia corresponder na experiência.

3ª antinomia:
Tese: «A causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenómenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário admitir para os explicar.»
Antítese: «Não há liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente em virtude das leis da natureza.» 3
O argumento a favor da Tese é: Suponhamos que a cadeia de causas de um certo acontecimento não tem um primeiro membro. Então, ela será infinita e, por isso, o acontecimento não terá nenhuma causa suficiente – o que é impossível. Logo, a suposição é falsa e conclui-se que há uma primeira causa de cada acontecimento.
O argumento a favor da Antítese é: Suponhamos que a cadeia de causas de um acontecimento tem um primeiro membro. Então, este primeiro membro não foi causalmente determinado por nada. Mas, pela lei da causalidade, sabemos que todo o acontecimento tem uma causa. Logo, a suposição é falsa e conclui-se que nenhuma cadeia causal tem um primeiro membro.

4ª antinomia:
Tese: «Ao mundo pertence qualquer coisa que, seja como sua parte, seja como sua causa, é um ser absolutamente necessário.»
Antítese: «Não há em parte alguma um ser absolutamente necessário, nem no mundo, nem fora do mundo, que seja a sua causa.»
A quarta antinomia diz respeito à existência de um ser necessário. Este ser necessário é considerado como causa do mundo, mas tanto a tese como a antítese contemplam a possibilidade de ele pertencer ao mundo, como sua parte (ou, talvez, de ser idêntico ao próprio mundo). O que está aqui em causa é a relação de dependência em que cada causa contingente está com outras causas que a antecedem: deverá esta dependência terminar numa causa que exista necessariamente? Nas palavras de Kant (1985: 412-4):

“O mundo sensível, como conjunto de todos os fenómenos, contém ao mesmo tempo uma série de mudanças. […] Mas toda a mudança está sujeita a uma condição que a precede no tempo e que a torna necessária. Ora, todo o condicionado que é dado supõe, relativamente à sua existência, uma série completa de condições até ao incondicionado, que é o único que é absolutamente necessário. Portanto, deve existir algo absolutamente necessário, para que uma mudança exista como sua consequência. […] Eis porque no mundo há algo de absolutamente necessário, quer seja a própria série inteira do mundo, quer uma parte dela.”

Este é o argumento em defesa da Tese. Kant fala de “mudanças”, mas é evidente que o que tem em vista é a circunstância em que um objecto depende para existir de outro que o precede. Essa relação de dependência gera uma cadeia de objectos, cujo limite é ou o primeiro membro da cadeia (o qual haveria de ser causalmente independente) ou a própria totalidade da cadeia (“a série inteira do mundo”). Quer num caso quer noutro, esse limite não dependerá ele próprio de nenhuma condição e, por isso, terá uma existência necessária.
Contra isto, o argumento da Antítese diz que, se o limite for a própria série inteira, ele não poderá ser necessário, uma vez que nenhuma parte dele é necessária; e, se for o primeiro membro da série, será um objecto que faz parte do mundo e que, por isso, terá de depender de alguma outra coisa para existir.
Kant adopta uma atitude diferente relativamente às duas últimas antinomias, uma vez que considera que na terceira está em causa a existência de livre arbítrio e que a quarta diz respeito à existência de Deus. A solução que propõe consiste em dizer que, nestas duas antinomias, a tese e a antítese podem ser ambas verdadeiras e que a contradição 4entre elas é apenas aparente, ficando a dever-se a uma desconsideração da distinção entre fenómenos (objectos dados na sensibilidade) e númenos (objectos do pensamento). É apelando para esta distinção, e recuperando num certo sentido a distinção platónica entre mundo sensível e mundo inteligível, que Kant pretende mostrar que a liberdade é compatível com o determinismo. Ele defende que o homem é dotado de uma vontade livre, capaz de auto-determinar-se a agir. As acções que resultam do exercício dessa liberdade são, ao mesmo tempo, efeitos de uma causa inteligível (de um ponto de vista, que é o da vontade enquanto númeno e do homem enquanto ser racional) e parte da cadeia de causas e efeitos sensíveis que obedecem às leis da natureza (de outro ponto de vista, que é o das acções humanas enquanto fenómenos no mundo natural).
Nos Prolegómenos a toda a Metafísica Futura (obra publicada em 1783 com o propósito de dar maior divulgação às ideias apresentadas na mais extensa e difícil Crítica da Razão Pura), Kant expõe assim a maneira como deve resolver-se o conflito da razão consigo mesma que está presente na quarta antinomia: “[…] se se distinguir a causa no fenómeno da causa dos fenómenos, na medida em que ela pode ser concebida como coisa em si, as duas proposições podem bem subsistir uma ao lado da outra, a saber, que não existe causa do mundo sensível (segundo leis similares da causalidade) cuja existência seja absolutamente necessária e que, por outro lado, este mundo está, no entanto, ligado a um ser necessário como sua causa (mas causa de um género diferente e segundo uma outra lei); a incompatibilidade destas duas proposições baseia-se unicamente no mal-entendido em estender o que vale apenas para os fenómenos às coisas em si e, em geral, em misturar estas duas coisas num só conceito” (1982: 136-7).
A Tese desta quarta antinomia, segundo a qual há uma causa do mundo cuja existência é necessária, só teria de ser vista como falsa se a considerássemos do ponto de vista dos fenómenos. Pois em nenhuma experiência nos poderá ser dado observar uma mudança não causada por nada ou um ser cuja existência seja absolutamente independente de todos os outros. Mas se considerarmos esse ser necessário como simples objecto de pensamento, não há nenhuma contradição em supormos a sua existência. Não podemos é pretender, como faz o argumento da Antítese, aplicar-lhe o mesmo princípio da causalidade que aplicamos aos fenómenos.

Bibliografia
Bayne, S. M., 2004, Kant on Causation: On the Fivefold Routes to the Principle of Causation, Albany: State University of New York Press.
Bennett, J., 1974, Kant’s Dialectic, Cambridge: Cambridge University Press.
Guyer, P. (ed.), 2010, The Cambridge Companion to Kant’s Critique of Pure Reason, Cambridge: Cambridge University Press.
Kant, I., 1982, Prolegómenos a toda a Metafísica Futura, tradução de A. Morão, Lisboa: Edições 70.
Kant, I., 1985, Crítica da Razão Pura, tradução de M. P. dos Santos e A. F. Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Kemp Smith, N., 1923, Commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, 2ª ed., London: Macmillan.
Priest, G., 2002, Beyond the Limits of Thought, Oxford: Clarendon Press.
Wike, V. S., 1982, Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and Resolution,
Washington, D.C.: University Press of America.
Wood, A. W., “The Antinomies of Pure Reason”, in Guyer (ed.) 2010, pp. 245-265.
 2011
Ricardo Santos
Universidade de Évora

Uma breve análise sobre a citação de Lebniz em sua carta a Arnauld.

Uma breve análise sobre a citação de Lebniz em sua carta a Arnauld.

 

“(…) segue [da noção de substância individual] que toda alma é como um mundo à parte, independente de qualquer coisa com exceção de Deus; que a alma é não só imortal e, por assim dizer, imperecível, mas que guarda em substância vestígios de tudo o que lhe acontece. Segue-se também a explicação do comércio das substâncias e, particularmente, a união da alma e do corpo.”

Para a compreensão da citação proposta, é de grande pertinência afirmar que na obra Discurso de metafísica e outros textos, de Gottfried Wilhelm Leibniz, três temas destacam-se, merecendo ser tratados como principais: a perfeição de Deus, a substância individual, e a união entre alma e corpo. O conceito de substância individual, para que seja mais bem esclarecido, necessita da elucidação da perfeição de Deus. Provavelmente por esse motivo que Leibniz abre o Discurso com um parágrafo intitulado “Da perfeição divina e de que Deus faz tudo da maneira mais desejável (souhaitable)”[1]Sua intenção é justamente situar o leitor, fornecer um ponto de partida para que seu raciocínio posterior não se torne uma linha tênue. Logo na primeira parte, Leibniz introduz a ideia de Deus como a perfeição; ausente de erros ou de qualquer carência: “A noção mais aceita e mais significativa que possuímos de Deus exprime-se muito bem nestes termos: Deus é um ser absolutamente perfeito”.[2]

Certamente, escrevendo para Arnauld e o Landgrave, Leibniz não via necessidade de explicitar a prova da existência de Deus; além disso, se pensarmos que se trata de uma definição apoiada na teologia natural (e não na revelação), podemos entender o porquê da ausência de prova: Leibniz acreditava que a existência de Deus é uma verdade que pode ser demonstrada racional e universalmente e,portanto, é uma idéia inata em que todos os homens possam pensar (embora nem sempre o façam).[3]

Adiante no texto, Leibniz rebate qualquer hipótese de outros, que possam desdizer algo no que se refere à perfeição de Deus, e também de suas ações. Após essa breve elucidação, apresenta um conceito chave no tratante de sua obra: a substância individual.

            A todo sujeito é atribuída uma substância individual, na qual é possível deduzir-se todos seus predicados, uma vez que se tenha uma noção perfeita de sua substância individual. Desta maneira, pode-se conhecer de maneira atemporal todas as partes e etapas que compõem a vida de um sujeito. Ou seja, atemporal pelo fato de que Deus, para Leibniz, não faz as coisas acontecerem numa linha de tempo. Não existe distinção entre o passado, presente e o futuro para Ele. Os fatos da vida de um sujeito existem simultaneamente. Não aconteceram, nem acontecerão, mas sempre existiram. Pois, Deus no momento em que escolheu o melhor dos Adãos possíveis, escolheu também toda sua hereditariedade num só golpe de sua escolha. (alguma citação de suporte)

            No Discurso, o exemplo utilizado por Leibniz para esclarecer melhor tal conceito é de um ilustre personagem histórico, Alexandre Magno: “Assim, abstraindo do sujeito, a qualidade de rei pertencente a Alexandre Magno não é suficientemente determinada para um indivíduo, nem contém as outras qualidades do mesmo sujeito, nem tudo quanto compreende a noção deste príncipe, ao passo que Deus, vendo a noção individual ou a ecceidade de Alexandre, nela vê ao mesmo tempo o fundamento e a razão de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar, como, por exemplo, que vencerá Dario e Poro, e até mesmo conhece nela a priori (e não por experiência) se morreu de morte natural ou envenenado, o que nós só podemos saber pela história”. [4]

            Daí pode-se estabelecer a conexão com o conceito da perfeição divina, pois já que somente Deus é a perfeição, conseqüentemente só a Deus cabe reconhecer a substância individual de cada um. Pois a substância individual de um sujeito encontra-se em sua alma, o que inevitavelmente nos permite afirmar, assim como Leibniz o fez, que “toda alma é como um mundo à parte, independente de qualquer coisa com exceção de Deus”.[5]

            A partir desse conceito, pode-se concluir que a alma (conceito o qual contém a substância individual), é não só imortal, mas imperecível, e que “guarda vestígios em sua substância de tudo que lhe acontece”[6]. Pois, uma vez que a partir da escolha de Deus de um Adão entre todos os possíveis, escolheu toda sua hereditariedade. Assim, a história humana e cada substância individual já estava conhecida.

Esta é a natureza de uma substância individual: ter uma noção completa, da qual se pode deduzir tudo que possamos atribuir-lhe, e mesmo todo o universo, por causa da conexão das coisas. Todavia, a fim de proceder exatamente, devo dizer que não é porque Deus resolveu criar este Adão que então resolveu criar todo o resto, mas que a resolução por Adão ou por outras coisas particulares é uma conseqüência da resolução por todo o universo, e pelos principais desígnios que determinam sua noção primitiva e estabelecem esta ordem feral e inviolável, à qual tudo se conforma.[7]

            As substâncias são como mundos, que embora sejam de certa forma parte de um todo, esgotam-se por completo em si mesmas. Dentro de si, como reflexo daquilo que são, são completas. Leibniz o diz quando afirma que “toda substância é como um mundo completo e como um espelho de Deus, ou melhor, de todo o universo, expresso por cada uma à sua maneira, quase como uma mesma cidade é representada diversamente conforme as diferentes situações daquele que a olha”.[8] O exemplo da cidade, dado pelo autor, é de grande precisão e qualidade. A substância individual, tem sua imagem revelada, de maneiras diferentes, embora seja sempre a mesma. Mas o fato de que ela pode ser “vista” de diferentes pontos relativiza sua essência, tornando-a ora parte de um todo, ora o todo.

            Desta maneira, a partir destas relações Leibniz diz que segue daí a explicação do comércio das substâncias:

O comércio das substâncias se dá segundo a hipótese da concomitância (…) [isto é], cada substância exprime toda seqüência do universo segundo a vista ou relação que lhe é própria, donde sua perfeita concordância. Quando dissermos que uma substância age sobre outra, eis que diminui a expressão da que sofre, e aumenta a expressão da que age, conforme a seqüência de pensamentos envolvida em sua noção. Pois embora toda substância exprima tudo, temos razão para lhe atribuir usualmente apenas as expressões mais distintas, conforme sua relação com o todo.[9]

            Assim, compreendendo o conceito de substância individual, e entendendo que o fato de se encontrar na alma a torna imortal, fica óbvia a conclusão de que a alma não morre com o corpo. Influenciado pelo dualismo cartesiano, Leibniz mais adiante no texto faz a distinção existente em sua filosofia entre alma e corpo. Segundo o autor, a alma é conseqüência de sua própria essência, ou seja, ela esgota sua existência em si mesma. Como já dito anteriormente, a substância contida na alma é um espelho de todo o universo, completa por si só.

            O corpo, embora suas paixões e ações acompanhem as da alma, não podemos dizer que dependem mutuamente umas das outras, pois o corpo tem sua existência, ou essência, na dependência da relação com outros corpos: “dissemos que tudo quanto acontece à alma e a cada substância é conseqüência de sua noção, logo a própria idéia ou essência da alma implica também que todas as suas aparências ou percepções devam nascer-lhe da sua própria natureza (…), porém, ao que se passa no corpo que lhe está afeto, pois é, de algum modo e por certo tempo, segundo a relação de outros corpos com o seu (…)”.[10]

            Com a união do corpo e da alma, se torna completa a cadeia de conceitos e suas relações. Como o conceito da perfeição de Deus se encaixa na noção de substância individual, que por sua vez demonstra a imortalidade da alma, e conseqüentemente nos demonstra a união da alma e do corpo, segundo Leibniz.

Bibliografia.

LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. Martins Fontes. São Paulo. 2004.

LEIBNIZ, G. W. No esboço de uma carta a Arnauld, 1686.


[1] LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos, p.3.

[2] LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos, p.3.

[3] Nota de rodapé 2. Leibniz, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. Martins Fontes. São Paulo. 2004. P. 81

[4] LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. Martins Fontes. São Paulo. 2004. P. 17.

[5] LEIBNIZ, G. W. No esboço de uma carta a Arnauld, em 1686.

[6] LEIBNIZ, G. W. No esboço de uma carta a Arnauld, em 1686.

[7] LEIBNIZ, G. W. No esboço de uma carta a Arnauld, em 1686

[8] LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. Martins Fontes. São Paulo. 2004. P. 18.

[9] LEIBNIZ, G. W. No esboço de uma carta a Arnauld, em 1686

[10] LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. Martins Fontes. São Paulo. 2004. P. 70.

Núcleo Argumentativo da Ética a Nicômaco

ZINGANO, Marco. Aristóteles, Ethica Nicomachea I 13 – III 8. Tratado da virtude moral. Editora Odysseus. São Paulo. 2008. 


Núcleo argumentativo da EN


Felicidade:

“A ética aristotélica inicia com o estabelecimento da noção de felicidade; ela é neste sentido, tipicamente uma ética eudemista(EE). A felicidade é definida como uma certa atividade da alma segundo perfeita virtude (cf. I 6 1098a16-17). Esta definição requer, assim, o estudo do que é uma virtude perfeita, o que nos leva a examinar a natureza da virtude moral.” (idem, ibidem. P. 12)

Virtude moral:

“A virtude moral, por sua vez, consiste em uma mediedade relativa a nós e é definida como uma disposição de escolher por deliberação (II 6). Para se compreender propriamente esta definição, é necessário entender o que é a escolha deliberada; para isso,, é preciso determinar previamente em que consiste um ato voluntário (que é feito, respectivamente, em III 4-6 e 1-3).” (idem, ibidem. P. 12)

Escolha deliberada:

“Ao se estudar a escolha deliberada, vê-se que é a determinação que a razão impõe no domínio prático sob a forma de uma boa deliberação; é necessário, por conseguinte, estudar a natureza da prudência(…)”(idem, ibidem. P. 12)

A natureza da prudência:

“(…)que é justamente a boa deliberação a título de virtude intelectual da parte prática(o que é realizado no livro VI).” (idem, ibidem. P. 12)

 

Relação entre prudência e saber:

isto é, entre vida ativa e vida contemplativa (o que é feito em X 6-9).” (idem, ibidem. P. 12)

—————————————————————————————————————————-
Outra divisão mais aprofundada:

Virtude Natural e Virtude Própria: Certas disposições que são louváveis sem serem virtudes, pois são antes afecções, Aristóteles escreve que “porque são naturais, elas contribuem às virtudes naturais, pois toda virtude como será dito adiante, ocorre de certo modo natural e de um outro modo, acompanhado de prudência” (1234a27-30). Esta passagem faz claramente alusão a EM VI (EE V) 13 1144b1-17, onde Aristóteles de fato distingue entre virtude natural, a que ou bem temos ao nascer ou bem adquirimos por hábito, e virtude própria, a “que não se produz sem prudência” (1144b17). (idem, ibidem. P. 14)  “(…)Vícios adquiridos pelos hábitos são vícios naturais. Assim, ao que tudo indica, a ética eudêmica parece consistentemente falar de uma virtude ou vícios naturais, vocabulários que, no entanto, está ausente do texto nicomaquéio, executando-se os livros comuns, que, contudo, parecem pertencer originalmente à EE, já por esta proximidade terminológica quanto à divisão das virtudes em naturais e próprias.” (idem, ibidem. P. 15)

(Este problema tem conseqüências em como se interpretar a noção de ato voluntário)

A doutrina platônica do bem: “Um destes argumentos consiste em um apelo à doutrina da dispersão categorial do ser, a qual é igualmente afirmada do bem, de modo que, como conclusão, temos que não é possível um bem único para tudo, como pretendia Platão, pois a refração categorial impede tal universalidade. (…) A EN conclui limitadamente que, por conta da dispersão categorial do bem, similar à do ser, ‘não é possível um bem comum, universal e único’ (1096a28); na EE, porém, lemos que, além de não haver nem um bem único nem um ser único a propósito de todas as categorias, ‘também não existe uma ciência única nem do ser nem do bem’ (1217b34-35). O que é surpreendente nesta conclusão exclusiva da EE é que ela é incompatível com o projeto aristotélico de uma ciência universal do ser, exposto no livro G da Metafísica, com base na idéia de relação focal, pois, graças a esta noção de unidade não genérica, é possível uma ciência única do ser (cf. G 2 1003b12-15).” (idem, ibidem. P. 15-6)

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Julían Marías – Aristóteles – “Los estilos de la Filosofía”

Aristóteles


(Edição – em que procuramos manter o estilo oral – de conferência de
Julián Marías, que, como se sabe, não se vale de texto escrito.
Conferência do curso “Los estilos de la Filosofía”, Madrid, 1999/2000.
Edição: Renato José de Moraes.  Tradução: Elie Chadarevian/http://www.hottopos.com)

Julián Marías

Para esta conferência trago esta separata que podem consultar – preço: uma peseta! <risos> – “Aristóteles: o saber por excelência – versão e notas de Julián Marías”. É uma publicação que foi feita em Madrid pelos estudantes da Faculdade de Filosofia e Letras em 1935 – depois de Cristo, claro! <risos>. Era uma revista que nós estudantes fazíamos – a revista não durou mais que um ano letivo, porque depois veio a guerra civil e tudo se acabou. Havia uma seção que consistia em apresentar alguns textos particularmente interessantes, e eu traduzi os dois primeiros capítulos do livro I daMetafísica de Aristóteles, com uma pequena introdução. Nesta semana encontrei este texto e o trouxe porque é sumamente curioso – além do que, vendia-se à parte da revista, como separata, e custava uma peseta… Claro que o almoço no restaurante da Faculdade custava 2 pesetas ; com vinho 2,30, lembro-me muito bem.

É curioso porque no primeiro parágrafo desta tradução, isto é, nas primeiras linhas da Metafísica, já nos deparamos com o estilo de Aristóteles: “Todos os homens tendem por natureza ao saber. Sinal disto é seu gosto pelas sensações, pois estas, além do proveito que possam ter, agradam por si mesmas, e as da visão mais que as outras. Pois, não só em nossos afazeres, mas também quando não fazemos nada, preferimos o ver, por assim dizer, a todos os demais sentidos. E isso porque pela visão as coisas nos são mais notórias e manifestam-se muitas diferenças”. Este é o primeiro parágrafo da Metafísica, e os senhores verão como, afinal, nele já aparece o estilo de Aristóteles.

Aristóteles, era, como sabem, procedente da Macedônia, de Estagira. Lembro–me, uma vez, em uma carta, Ortega dizia-me: “Nosso mestre, claro, é de Estagira”. Nasceu em Estagira em 384, e morreu em Calcis em 322. Ou seja, ele viveu 64 anos: uma vida normal para a época, nem breve, mas tampouco longeva como os 80 anos de Platão. Mudou-se para Atenas quando era muito jovem, aos 18 anos, e esteve na Academia platônica.

Parece-me que por uns 19 anos permaneceu na Academia como discípulo de Platão e seu colaborador, e estou certo de que a influência mútua – insisto, mútua – foi muito grande. Imaginem o que devem ter conversado Platão e Aristóteles durante tantos anos… Com a morte de Platão, encarregou-se da direção da Academia uma figura de segunda ou terceira linha, Espeusipo, sem grande relevo, e Aristóteles abandonou a Academia de Atenas.

Ele foi, como sabem, e é uma coisa muito importante, mestre de Alexandre Magno. Mas, depois voltou a Atenas, passados muitos anos voltou a Atenas e fundou sua própria escola: o Liceu. Os senhores sabem que a tradição diz que ali se ensinava passeando, mestre e discípulos, por isso chamavam-nos peripatéticos, e chama-se Peripato à escola de Aristóteles.

Há um fato muito importante que é preciso desenvolver desde o começo: o destino do aristotelismo foi bastante estranho. Depois da morte de Aristóteles, ocorre um certo abandono do pensamento filosófico no sentido que Platão e ele haviam ensinado, e há até uma substituição deste pensamento rigorosamente metafísico, enormemente criador, por uma série de escolas que ocuparão o espaço da filosofia platônica e aristotélica, os chamados socráticos menores, as escolas que floresceram depois da morte de Aristóteles e que, afinal, representaram um nível de criação, de tensão filosófica muito diferente. A própria academia acaba por converter-se num centro de ceticismo, e a própria palavra “acadêmicos” passa a significar céticos; “Contra Academicos” é uma obra contra os céticos. E no seu prosseguimento, o Liceu passa por mãos muito pouco criativas, insistindo num pensamento informativo, bastante científico, e é curioso o enorme abandono de Aristóteles, que vai ter uma influência imensa muitos séculos depois.

Não esqueçam que Aristóteles vai ter uma influência extraordinária na Idade Média. Ou seja, na Idade Média, quando parte dos textos aristotélicos passam através dos persas e árabes ao continente europeu – quando, por exemplo, Averróes faz os comentários, Averróes, “che’l gran comento feo” diz Dante, “fez o grande comentário”. Ou seja, há uma influência que depois passará normalmente aos cristãos, oportuna-mente falaremos da incorporação do aristotelismo ao pensamento cristão medieval, especialmente e sobre tudo em Santo Tomás, que não sabia grego, que não conheceu os textos gregos… Isto é muito importante, no ocidente cristão Aristóteles não é lido em grego, ele é lido na tradução de Guilherme de Moerbecke, de um modo indireto. Essa é uma coisa sumamente curiosa; falaremos disso oportunamente.

O impulso aristotélico foi imenso, desde a Idade Média, e depois ocorre – já adianto um pouco o que vai acontecer – que desde o Humanismo, e depois na filosofia moderna – de Descartes, dos séculos XVI e XVII – há uma reação anti-escolástica que envolve Aristóteles. O fato, afinal, é que Aristóteles passa por versões indiretas – não é lido normalmente, muito pouco, e quase sempre através de traduções ao latim principalmente. E é curioso como o Aristóteles escolástico não chega a ser plenamente Aristóteles e a reação anti-aristotélica dos modernos, dos humanistas em diante, vai ser um elemento de esterilização também.

É curioso ver a utilização escolástica, no sentido literal da palavra, no sentido que Ortega dava a todo o escolaticismo, ou seja, uma doutrina que atua, e que é recebida de outra época, de outra situação, e que tem sua influência em circunstâncias completamente distintas. A isso, como forma mental, como forma de transmissão de pensamento, Ortega chamava de escolaticismo, qualquer tipo de escolástica. E isto ocorreu essencialmente com Aristóteles. Aristóteles não foi lido em si mesmo diretamente em seu texto original, até o século XIX.

Aristóteles insiste em que todos os homens tendem por natureza ao saber, diz, “por natureza”. Crê que há uma disposição natural, fundamental, constante, em todos os homens. Há, portanto, diríamos, uma vocação natural e profunda do homem ao saber, ao conhecimento. Mas, imediatamente acrescenta que se trata das sensações, ou das percepções, talvez seja melhor dizer as percepções – com uma distinção que a filosofia introduziu depois (ele usa a palavra aísthesis) – e neste gosto pelas percepções, pelas sensações, diz que, preferencialmente, as da vista. E há algo muito interessante: que não somente por sua utilidade, por seu proveito, mas também quando não vamos fazer nada. Ou seja, quando se trata da skholé, a skholé é o ócio. O homem tem ócio e negócio; negotium é a palavra latina contraposta ao ócio. Ou seja, quando se faz algo ou quando não se faz nada; também para o ócio, skholé, daí, aliás, a pala-vra “escola”, e a escola é o ócio, etimologicamente é isto. Há, assim, uma predileção pela vista, e ele diz que é porque ela mostra muitas coisas e mostra muitas diferenças.

Nestas poucas linhas, nestas pouquíssimas linhas que acabo de ler, está um pensamento visual. Aristóteles é um grande observador: a vista é justamente, entre todas as vias perceptivas, a mais importante. Porque revela, manifesta muitas coisas, diríamos que nos põe em aletheia, na verdade, e mostra muitas diferenças, permite conhecer a realidade com detalhe. Isto é fundamental, e Aristóteles tem essa função visual, ele foi um grande observador, é um homem de ciência, é um homem que se ocupa das plantas, dos animais, dos fenômenos naturais, que faz Física – uma Física filosófica, naturalmente -, parte dela está no tratado De anima, que forma parte também da natureza. Ou seja, de certo modo é um naturalista. É um homem atento às coisas concretas.

Lembrem que Platão diz que as coisas não são realmente reais, não são verdadeiramente reais. Platão diz que as coisas são sombras das idéias, das idéias que estão num topos ouranios num lugar supraceleste, e as coisas são por participação das idéias, não são portanto verdadeira realidade. Remontamo-nos das coisas sensíveis, perceptíveis, até as almas, as idéias, até chegarmos ao Bem, à Razão. Já do ponto de vista de Aristóteles, trata-se antes de interessar-se imediatamente, diretamente pelas coisas. E naturalmente vai dizer que as idéias estão nas coisas, justamente, e é o que chamará eidos. A palavra eidos é uma das palavras mais fundamentais, eidos é idéia. Pois bem, essa palavra que num texto platônico costuma-se traduzir por idéia, num texto aristotélico, eidos é melhor traduzido por espécie, pois a espécie está realizada na coisa, nas coisas. Continuar lendo

Oswaldo Pessoa – Aula 2 – Definição de Conhecimento 2/3

2. Concepções de Verdade

Um dos pontos mais polêmicos em discussões epistemológicas é a concepção adotada para o conceito de verdade. Antes de apresentarmos algumas das concepções mais defendidas, é preciso distinguir ente uma definição de verdade, que envolve o significado do termo “verdadeiro”, e um critério de verdade, ou seja, um critério que fornece um teste para estabelecer se uma proposição é verdadeira ou falsa. Bertrand Russell (1908) acusou os pragmatistas de terem confundido a definição de verdade com o critério de verdade.8

1) Concepção de verdade por correspondência. Segundo esta definição, a verdade é uma adequação entre intelecto e coisas (Tomás de Aquino), uma relação entre um enunciado teórico (linguístico) e uma realidade. Nas palavras de Aristóteles: “Dizer do que é que ele é,

ou do que não é que ele não é, é verdadeiro” (Metafísica IV, 7, 1011 b 26). Uma opinião seria verdadeira se e somente se ela correspondesse a um fato real do mundo.

Se digo “a pérola nesta ostra fechada é esférica”, há uma correspondência entre o termo “pérola” e uma certa coisa material, e entre “ser esférica” e uma forma que existe de fato. O enunciado é verdadeiro se, na realidade, a pérola em questão existir e for esférica. Nesse sentido, há uma correspondência entre o enunciado e o fato real, e dizemos que o enunciado é verdadeiro.

No séc. XX, essa concepção foi articulada por G.E. Moore e Russell, em torno de 1910, e aparece no Tractatus de Wittgenstein (1922), para quem haveria um isomorfismo estrutural entre proposições e fatos. Já para Austin (1950), a relação de correspondência seria uma relação puramente convencional entre as palavras e o mundo.

Vários pontos desta concepção são atacados pelas outras visões. O que exatamente seria a relação de correspondência? Não se cairia em circularidade ao dizer que “é verdade que há uma correspondência”? Qual o critério de aceitação de uma verdade relativa a um enunciado que se refere a uma realidade não-observável? (Ou seja, é legítimo falar em uma realidade não-observável?) Apesar desses problemas, é importante partirmos desta concepção e entendê-la, pois ela se aproxima do uso cotidiano e permite formular questões filosóficas que concepções mais restritivas de verdade (como a pragmática) não permitiriam.

2) Concepção de verdade por coerência. Segundo esta visão, uma opinião é verdadeira se e somente se ela é parte de um sistema coerente de opiniões. Esta é a concepção utilizada por visões idealistas, para as quais o que chamamos de “realidade” é fruto de uma mente. Ela também é utilizada na matemática, no sentido em que a verdade de um teorema não depende da correspondência com um mundo, mas apenas da consistência da derivação a partir de postulados. Um problema enfrentado pela concepção coerentista é acepção exata de “coerência”: ela não poderia ser apenas a consistência interna do sistema, pois um conto de fadas pode ser consistente. O idealista inglês Francis H. Bradley (1914) salientou que a“amplitude” do sistema também é importante na determinação da coerência, e mais recentemente Nicholas Rescher (1973) definiu um critério de “plausibilidade” para desempenhar esta função.

3) Concepção pragmática da verdade. Na versão de William James (1907), às vezes chamado de “praticalismo”, o significado de uma proposição é dado pelas suas conseqüências práticas. Uma crença é verdadeira se ela for verificável, ou se ela for útil. Antes dele, Charles Peirce (1877) definiu a verdade de maneira mais idealizada, no chamado “pragmaticismo”, como o resultado final da investigação, o que no caso da ciência seria o resultado final a ser obtido no futuro. Para o instrumentalismo de John Dewey, o conceito de verdade deve ser substituído pelo de “assertabilidade justificada” (warranted assertability). A concepção de Hans Vaihinger, na Filosofia do Como Se (1911), é considerada pragmatista, mas sua concepção de verdade é correspondencial: dado que não temos acesso à realidade última do mundo, agimos “como se” as nossas teorias correspondessem ao mundo.

4) Concepção construtivista de verdade. Proposta por Giambattista Vico (1710), com seu lema verum esse ipsum factum (a verdade é ela mesma fato, ou seja, é ela mesma construída), e adotada mais recentemente pelo pós-modernismo, como na concepção de Baudrillard de que a verdade é simulacro. Para Nietzsche (1873), a verdade seria “um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos”, construída para fins práticos. Na teoria do consenso de Habermas (1976), a verdade é vista como o consenso atingido em uma situação ideal de discurso.

5) Concepção semântica de verdade. Proposta por Alfred Tarski em 1931, no contexto da lógica simbólica, baseou-se na noção de satisfação (“x é uma cidade” é satisfeita por Campinas e Santos). Propôs que uma definição de verdade obedeça a uma “condição de adequação material” expressa pelo seguinte enunciado: “ ‘A neve é branca’ é verdadeira se e somente se a neve for branca”. Às vezes é associada à concepção de verdade por correspondência, mas Tarski salientou que ela é consistente com outras concepções (buscou assim uma “neutralidade epistemológica”).

6) Concepções deflacionárias de verdade. Em oposição às concepções “substantivas” descritas acima, alguns autores salientam que a noção de verdade não é muito importante. Dizer que uma proposição é verdadeira não diz nada de significativo sobre ela, mas é apenas uma etiqueta para indicar consenso, para salientar certas afirmações ou formar certos tipos de generalizações. Segundo Frank Ramsey (1927), a noção de verdade é redundante.

7 GETTIER, E. (2006), “É o Conhecimento Crença Verdadeira Justificada?”, trad. Claudio Ferreira Costa (UFRN), disponível na Internet, 4 pp. (orig.: 1963).
8 Seguimos aqui a discussão de SUSAN HAACK (2002), Filosofia das Lógicas, trad. C.A. Mortari & L.H.A. Dutra, Ed. Unesp, São Paulo (orig.: 1978), cap. 7. O artigo de Russell em questão, “James’s conception of truth”, foi republicado no seu livro Philosophical Essays de 1910. Em português, outro livro atual é: KIRKHAM, R.L.
(2003), Teorias da Verdade: Uma Introdução Crítica, trad. A. Zir, Ed. Unisinos, São Leopoldo (orig. 1992).
Consultamos também: GLANZBERG, M. (2006), “Truth”, Stanford Encyclopedia of Philosophy, online.
TCFC I (2010) Cap. II – Definição de Conhecimento

Aristóteles – O Método da Metafísica (4/4)

Continua daqui.

Resumo:

Enrico Berti – As razões de Aristóteles – Terceiro Capítulo: O método da Metafísica. Editora Loyola.

A teologia “dialética”

No fim do livro IV da Metafísica, encontramos uma alusão à parte ‘teológica’ desta ciência, a que trata de Deus:

Ela constitui o desenvolvimento posterior da parte propriamente ‘ontológica’, da teoria do ser enquanto ser, de seus múltiplos significados e de suas propriedades por si, e é exposta detalhadamente nos últimos livros da obra, os de número XII-XIII-XIV. Para dizer a verdade, a ordem na qual tais livros foram transmitidos não parece corresponder à intenção de Aristóteles, como se pode inferir por seu conteúdo e por algumas afirmações explícitas suas. Aquele que se liga, com efeito, diretamente ao livro X ( o último da parte ‘ontológica’, pois o livro XI, como dissemos, é um resumo talvez nem sequer autêntico) não é o livro XII, mas o XIII, o qual inicia declarando que já se tratou da substância sensível, isto é, móvel (nos livros VII-VIII-IX), e que, portanto, resta saber se existe também uma imóvel, como alguns filósofos (os platônicos) pretendem. Tanto o livro XII como o XIV são, com efeito, dedicados ao exame das doutrinas dos platônicos sobre as substâncias imóveis e sobre os seus princípios: no livro XIV, ao contrário, Aristóteles expõe a própria doutrina a respeito, pressupondo já ter criticado as doutrinas dos platônicos. A ordem lógica autêntica dos três últimos livros é, portanto, XII-XIV-XII[1].

A tarefa da filosofia primeira é procurar os princípios, i. é., o “primeiro” entre os sentidos do ser, que é a substância, e o primeiro entre os sentidos da substância, que é a forma, enquanto causa (formal, ou seja, imanente) das substâncias sensíveis. Porém, se existe uma substância imóvel anterior às substâncias móveis, ou seja, é primeira por mais forte razão que as outras. Aristóteles alude isto no livro IV e posteriormente no livro VI, no qual indica o motivo pelo qual podemos denominar da ciência do ser enquanto ser como “ciência teológica”, i. é., teologia científica, e ciência suprema(1, 1026 a 18-32).

Essa nova “substância primeira” não é a primeira em relação às substâncias sensíveis, do ponto de vista lógico-epistemológico. Ela o é apenas “por si”, por natureza e não na ordem do conhecimento, pois são primeiras, neste ponto de vista, as substâncias sensíveis, enquanto “mais próxima às sensações”. Por isso o método para investigá-la não poderá ser mais a análise semântica, como na parte “ontológica”, mas outro que mostraremos agora.

A primeira coisa a fazer (próton) – diz Aristióteles no início do livro XIII – é investigar as coisas ditas pelos outros, para que, se falam alguma coisa não-boa, não estejamos sujeitos a eles, e se há alguma doutrina comum a nós e a eles não nos lamentaremos por nossa conta conosco mesmo; deve-se  desejar, com efeito, dizer alguma coisa melhor e outras não pior. Mas duas são as opiniões sobre estas coisas etc (1, 1076 a 12-17).

Portanto, eis seu método: o uso “filosófico da dialética”, em particular da peirástica, isto é, discutir as opiniões alheias, mas com o objetivo de ver o que há de verdadeiro e de falso nelas. A este exame crítico são dedicado os livros XIII e XIV, dois dos três livros “teológicos”.

Todo o livro XIII é dedicado às refutações das doutrinas platônicas, demonstrando que os entes matemáticos nem as Idéias estão a altura da substância imóvel, não por não serem imóveis, mas por não serem sequer substâncias. A crítica à luz das doutrinas das categorias, ou seja, o fruto da análise semântica, mostra dialeticamente sua oposição à teologia platônico-acadêmica com sua teoria das substância imóvel.

Aristóteles no livro XIV continua seu discurso teológico contra os platônicos agora sobre os princípios de todas as coisas. Os platônicos tem como princípio para todas as coisas as substâncias imóveis, ou seja, divinas: o Uno e o “grande-pequeno”, ou Díade indefinida, no caso de Platão, o Uno e o Múltiplo, no caso de Espeusipo, e o Uno e o Desigual (que também é o mesmo “grande-pequeno”, ou Díade indefinida) no caso Xenócrates, isto é, os princípios dos números (XIV, cap. 1). “Aristóteles critica-os todos, acusando os platônicos de ‘ter posto o problema de modo arcaico’ (aporésai arkhaikós), ao modo de Parmênides, sem distinguir os muitos significados do ser e, sobretudo, sem ter em conta a diferença entre a substância e as outras categorias (quantidade e relação) (cap. 2, especialmente 1089 a 1-2).”[2]

Contudo, alem da parte critica há também uma parte positiva no livro XII, cujo vínculo com os livros XII e XIV foi confirmado pelo maior Aristotélico do século XX, Werner Jaeger. Retomando à investigação sobre, Aristóteles antes expõe três possíveis tipos de substância: “a móvel corruptível (as substâncias terrestres), a móvel incorruptível (as substâncias celestes) e a imóvel, observando que a existência das duas primeiras é admitida por todos, porque é atestada pelas sensações, enquanto a da terceira é admitida apenas por alguns (os platônicos), mas – por insuficiência dos argumentos adotados por eles – requer uma investigação posterior (XII, cap. 1).[3]

Aristóteles, no livro XII, recorda “a prioridade da substância sobre as outras realidades, compreendido o movimento, mas também a eternidade deste último (e do tempo), o que o leva a admitir  a necessidade de uma substância que faça as vezes de substrato oara o movimento eterno: trata-se do céu, que gira eternamente sobre si mesmo (1071 b 3-11)(…) Aristóteles observa que é necessário admitir um princípio capaz de mover o céu, o que não podem fazer as Idéias [causas puramente formais] ou outras substâncias a ela semelhantes.[4] A necessidade, para explicar o movimento, da causa motora, Aristóteles acrescenta que esse princípio deve ser em ato, isto é, deve estar deve estar efetivamente movendo pois, se fosse apenas em potência, poderiam também não mover, e então o movimento poderia também não existir, o que contradiz sua eternidade (1071 b 12-17).

Contudo, até este ponto o princípio de movimento poderia ser deduzido da alma do mundo no Timeu e Leis de Platão. A causa do mundo, para Platão, é “a causa de todos os movimentos, mas também ela se move, enquanto é imanente ao próprio mundo, isto é, ao céu, como as almas dos animais são imanentes a estes últimos: ela é, portanto, princípio semovente[5]. Aqui Aristóteles mostra sua oposição, mais uma vez, a Platão:

Além disso [não será suficiente] nem mesmo se for em ato, mas sua substância será potência, visto que o movimento nãos era eterno: com efeito, é possível que isso que é em potência não seja. É necessário, então, que haja um princípio tal que sua substância seja ato (1071 b 17-20).

Portanto, um movimento eterno do céu exige um princípio cuja substância seja ato puro, porque, do contrário, graças a seu aspecto de também ser potência, ele poderia não passar a ato e, assim, não mover. Mas este não é o caso da alma do mundo platônica, estando ela própria em movimento, ou seja, em algum aspecto, em potência. Portanto, o princípio que move eternamente o céu só poder um princípio imóvel (o que é puro ato não pode absolutamente mover-se) e imaterial (o que é puro ato é pura forma, porque a matéria é potência) (1071 b 20-22). Pode-se dizer, que esta é uma demonstração dialética por meio de refutação (“elenkticamente”), ainda que sem a mesma força do princípio de não-contradição (porque contém muitos pressupostos).

Ainda mais dialético é o caráter da exposição das quatro possíveis combinações dos termos “movente” e “movido”, isto é, “movido não-movente”, que corresponde as substâncias terrestres; “movido-movente”, que vem a ser desse modo intermediária, corresponde ao céu, portanto – Aristóteles conclui -, sendo real o termo intermediário, deverá haver também alguma coisa que corresponda à terceira combinação, um “movente não movido”, que é puro ato (1072 a 19-26). A quarta combinação, “não-movente não-movido”, não corresponde  nada de real (a ela poderiam corresponder as Idéias de Platão, mas elas, para Aristóteles, não existem).

Assim,

Aristóteles, com efeito, mostra que o princípio imóvel é a “substância primeira”, enquanto simples e em ato (não porque seja o Uno – outro tema polêmico contra Platão) -, que move enquanto objeto de inteligência e de amor, que é ato de pensamento porque este é o único ato reamlente imaterial (argumento porque este é o único ato realmente imaterial (argumento extraído da analogia com o pensamento humano, que é, portanto, vida, que sua vida é eterna e feliz e que, por conseguinte, é um deus[6]; enfim, que é dotado de “potência infinita” (no sentido de potência ativa, não de potencialidade) (cap 7).[7]

No capítulo oito, Aristóteles muda o alvo de sua crítica para a teologia mítica. Depois de ter demonstrado que os princípios imóveis são muitos, acrescenta:

Transmite-se em forma de mito dos primitivos e antiqüíssimos aos pósteros a tradição de que estes são deuses e de que o divino envolve toda a natureza. As coisas remanescentes foram acrescentadas miticamente a fim de persuadir muitos e para usá-las em vista das leis e da utilidade. Dizem alguns, com efeito, que estes [deuses] têm forma humana e que são semelhantes a alguns outros animais, e a isso acrescentam outras coisas conseqüentes e semelhantes a estas ditas. Se, após tê-la separado destas últimas, alguém tomasse apenas a primeira afirmação, isto é, que consideravam as substâncias primeiras ser deuses, seria considerado falar divinamente (1074 a 38-b 10)

A crítica aqui sobre a tradição religiosa se foca em acolher o lado demonstrável racionalmente e deixar de lado a parte mais mítica. Aristóteles ainda, em relação aos deuses ou motores imóveis, não hesita em argumentar a favor de que há muitos motores imóveis, e de que, entre eles, há um que é o “primeiro”, isto é, o motor da primeira esfera celeste (1074 a 31-38): “este portanto, pode ser denominado “Deus” com a inicial maiúscula (acredite-se ou não em sua existência, como se faz com “Zeus”)[8].

É só deste motor imóvel, Deus que Aristóteles diz (cap. 9) que é “pensamento de pensamento”; como também que é um bem supremo e transcendente, causa do bem imanente, isto é, da ordem do universo (cap. 10).

No livro XII, Aristóteles discuti mais uma vez contra os outros filósofos, reivindicando o método dialético de desdobrar as aporias para ver quais são absurdas e aceitáveis. “Também no livro XII da Metafísica, portanto, dedicado à exposição positiva de sua teologia, Aristóteles não sabe renunciar à discussão e, com efeito, no breve movimento deste último capítulo consegue oporse a todas as “teologia” dos filósofos a ele precedentes, para criticá-las todas. No final, igualmente, não sabe renunciar nem sequer a um expediente retórico, e termina com a famosa citação de Homero: ‘É mau que muitos comandem; um só tenha o posto de suprema’[9](citação que redimensiona notavelmente o seu “politeísmo”).[10]


[1] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 104

[2] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 107

[3] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 108-9

[4] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 109

[5] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 110

[6] Eternidade e beatitude eram, com efeito, para os gregos, as prerrogativas da divindade; como tal, ele é absolutamente pessoal, ou seja, “capaz de entender e de querer”, malgrado quanto se costuma dizer da impessoalidade do deus aristotélico. BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 112

[7] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 112

[8] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 113

[9] Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo, Ediouro, sem data; II, 204. [N. dom T]

[10] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 114

Aristóteles – O Método da Metafísica (3/4)

Continua daqui.

Resumo:

Enrico Berti – As razões de Aristóteles – Terceiro Capítulo: O método da Metafísica. Editora Loyola.

A demonstração elenktica

Além das propriedade do ser enquanto ser, no mesmo livro IV estão os dois “axiomas” comuns a todas as ciências, o princípio de não-contradição e o do terceiro excluído. Visto que vale para todos os seres, sua investigação cabe apenas à metafísica, a ciência primeira que estabelecerá “se são verdadeiras ou “não” (IV 3, 1005 a 30). Certamente, segundo Aristóteles, os homens possuem um conhecimento imediato ou intuitivo desses princípios, principalmente o primeiro deles, a saber, o de não-contradição. Mas nada impede que a propósito deles seja necessária uma investigação para estabelecer o verdadeiro ou o falso, sendo este trabalho apenas próprio dos filósofos.

Aristóteles admite uma verdadeira investigação até para os princípios mais conhecidos. E propõe, não como a comparação da inteligência a um “tocar”, isto é, ao conhecimento imediato, mas à vitória da verdade sobre o seu oposto, o procedimento dialético. E, através deste procedimento, Aristóteles verificará “não apenas as condições da verdade, mas também as condições do valor das palavras, ou seja, da própria análise semântica[1].

Aristóteles começa com o princípio de não-contradição e faz uma consideração de caráter metodológico. “O princípio em questão, como se sabe, não pode ser demonstrado no sentido próprio do termo, porque é a condição de todas as demonstrações, segundo o que foi explicado nos Segundos analíticos[2]. No entanto, Aristóteles acrescenta:

É possível demonstrar elekticamente (apodexai elenktikos, isto é, demonstrar por meio de refutação) também a propósito do que é impossível [contradizer], com a condição de que aquele que o contradiz fale somente alguma coisa. Se, ao contrário, não diz nada, é ridículo procurar um argumento contra quem não sustenta nenhuma tese, na medida em que não afirma nada. Com efeito, quem assume tal atitude, fazendo assim, é semelhante a uma planta. Quanto a demonstrar alenkticamente, digo que ele difere do demonstrar [puro e simples] porque aquele que quisesse demonstrar [o princípio em questão] seria, considero, responsável de uma petição de princípio, ao passo que, se o responsável de tal erro for o outro [isto é, aquele que o contradiz], ter-se-á refutação [élenkhos] e não demonstração (4, 1006 a 11-18).

Desta forma, nos defrontamos com dois tipos de demonstração, a saber, a demonstração pura e simples, que caracteriza a matemática, pois pressupõe os princípios, e a demonstração por meio da refutação. À matemática não se aplica o princípio de não-contradição, porque daria lugar a uma petição de princípio, deveria pressupor justamente o que pretende demonstrar pura e simplesmente. “Pelo contrário, o ‘demonstrar elenkticamente’ deixa, por assim dizer, que esse erro lógico seja cometido por quem pretende contradizer o princípio: quando essa pessoa comete o erro, basta ressaltar isso, e com isso se o terá refutado. Contudo, a refutação de quem nega equivalerá à demonstração do princípio, porque mostrará que é impossível negá-lo, que é impossível que as coisas sejam diferentemente de como ele diz, o que dá lugar àquela necessidade característica das conclusões de toda demonstração”[3].

Mas, para a própria refutação, ou seja, o confronto, é necessário duas teses contrárias. E, através deste confronto de contrários é que se efetua o procedimento dialético. “Todavia, no caso em questão, a refutação consegue dar lugar a uma verdadeira demonstração, mesmo que a uma demonstração sui generis, isto é, diferente daquelas da matemática[4]. Refutar uma tese para que outra a defenda se tratará sempre de “pedir” e “conceder” alguma coisa. Não se trata de pedir a quem contradiz de dizer que uma coisa é ou não é, pois, em tal caso, logo pressuporia o princípio em questão, desta forma, cometeria uma petição de princípio. Assim, não mais o faria. O que se trata em refutar é  pedir a quem contradiz que apenas diga algo que esteja dotada de significado. Pois, é disto que se trata uma discussão: tese contra antítese, esta é a condição do discurso, ou seja, da comunicação com os outros e consigo próprio.

Uma vez que quem contradiz diz uma única coisa com significado, defini-se que sustenta uma coisa e não outra, expressando pela oposição de afirmação e negação o que consiste do princípio de não-contradição. “Desse modo, no momento mesmo em que se chega a defender sua tese, vale dizer, a negação do princípio de não-contradição, quem contradiz não nega, mas admite o princípio de não contradição, isto é, sustenta sua tese (negação) destruindo-a (porque admitir o princípio equivale a destruir sua negação)”[5]. Cai apenas aquele que contradiz o princípio, mas, mesmo assim, a refutação equivale à demonstração do princípio, a uma “demonstração por meio da refutação”.

Assim, este é o caso no qual a dialética exprime toda a sua força, a saber, a demonstração que tem todo caráter de necessidade próprio das demonstrações matemáticas, que se desdobra dialeticamente, e o princípio de não-contradição pressuposto.

Não se limitando a isto, ou seja, enunciar a forma geral desta demonstração, Aristóteles também confirma, mais uma vez, o caráter dialético de seu procedimento, precisamente, “peirástico”, isto é, crítico das opiniões alheias dos que negavam direta (alguns sofistas) ou indiretamente (alguns filósofos pré-socráticos), o princípio de não-contradição.

No capítulo 7 e 8, Aristóteles realiza operação análoga a que discutimos a propósito do princípio do terceiro excluído, mas se diferencia uma vez que pressupõe o princípio de não-contradição. Entre estes argumentos, particularmente interessantes estão no último do livro IV,  que  veremos agora aprofundadamente.

As duas negações em questão, que são negações do princípio de não-contradição, são formuladas, primeiro, é aquela pela qual elas se configuram respectivamente como a tese de que “todas as proposições são verdadeiras”, e a tese de que “todas as proposições são falsas”. São denominadas de “enunciações de sentido único e a respeito de todas as coisas” (to monakhós legómena kai katá panton). Elas negam o princípio de não-contradição e o do terceiro excluído, porque negam a própria oposição entre verdadeiro e falso, ou seja, admitem que duas posições entre si contraditórias podem ser ambas verdadeiras  (negação do princípio de não-contradição) ou ambas falsas (negação do princípio do terceiro excluído)”[6].

Para estas, Aristóteles apresenta duas refutações, uma com base na exigência de dar significado às palavras “verdadeiro” e “falso”, “a qual mostra que isso é possível apenas com a condição de estabelecer entre elas uma oposição e, por isso, de renunciar às ‘enunciações de sentido único’. A outra com base na observação de que tais enunciações se autodestroem”[7].  Vejamos esta última, a famosa refutação do ceticismo absoluto – e respectivamente do absoluto dogmatismo:

Quem, com efeito, diz que são verdadeiros todos os discursos, torna verdadeiro também o discurso oposto ao seu, e por isso não-verdadeiro o seu ( visto que o discurso oposto diz que seu discurso não é verdadeiro),  enquanto quem diz que são todos falsos diz ele mesmo que também o seu próprio [é falso]. E há algumas exceções, alguns dizendo que apenas o discurso oposto ao seu não é verdadeiro, outros dizendo que apenas o seu não é falso; apesar de tudo, segue-se a eles dever postular infinitos discursos verdadeiros e falsos, visto que o discurso que diz que o discurso verdadeiro é verdadeiro é, ele mesmo, verdadeiro, e assim ao infinito (8, 1012 b 15-22).[8]

Imediatamente sucessiva é a aplicação  de duas teses importantes na metafísica por Aristóteles, provando que a refutação não seja formalista, isto é: a afirmação que “tudo está em repouso”, ou seja, o eleatismo, e aquela que afirma que “tudo está em movimento”, ou seja, heraclitianismo. Aristóteles diz no fim do livro IV da Metafísica:

É claro, pois, que não dizem o verdadeiro nem os que afirmam que todas as coisas estão em repouso, em os que afirmam que todas as coisas se movem. Se, com efeito, todas as coisas estão em repouso, as próprias proposições seriam sempre verdadeiras e sempre falsas, enquanto é evidente que esta situação muda (aquele, com efeito, que fala, ele próprio já um tempo não existia e [em outro tempo] de novo não existirá); se, ao contrario, todas as coisas se movem, nada será nunca verdadeiro e, por isso, todos os discursos serão falsos; mas se demonstrou que isso é impossível (1012 b 22-28).[9]

A reivindicação contra o eleatismo, ou seja, parmenidiano, é talvez um pouco amarga, mas eficaz, como o é “a redução do mobilismo ao absoluto ceticismo, baseada na observação de que ao menos alguma verdade deve permanecer, sob pena de autodestruição da própria teoria. Contudo, o resultado desta dupla refutação, isto é, desta refutação de dois extremos opostos, que se revelam, assim, ser contrários entre si, e não contraditórios – é a demonstração da tese contraditória a ambos, isto é, oposta às ‘enunciações de sentido único’, aquela pela qual algumas proposições são verdadeiras e outras falsas, ou algumas estão em repouso e outras em movimento”.

A primeira conseqüência se mostra neutra e aceitável por todos, ao contrário da segunda, “porque consiste nada menos do que âmago mais ‘duro’ e difícil de aceitar da metafísica aristotélica, a existência de uma realidade imóvel, separada das realidades móveis[10].  Consciente Aristóteles disto, com efeito, conclui o livro dedicado à defesa do princípio do terceiro excluído:

Mas também não é possível que as coisas em certo momento estejam todas em repouso ou todas em movimento, pois há alguma coisa que sempre move as coisas movidas, e isso é o primeiro motor imóvel (1012 b 29-31)[11].

Esta é a soma de duas impossibilidades, tudo estar parado e tudo estar em movimento. “Contudo, sua conseqüência é que alguma coisa é sempre imóvel (o ato puro, isto é, Deus) e alguma coisa é sempre movimento (o céu, isto é, o universo em seu complexo, que segundo Aristóteles, é eterno e gira incessantemente sobre si mesmo), ou seja, uma metafísica da transcendência[12].

Continua aqui.


[1] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 94

[2] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 94

[3] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 95

[4] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 96

[5] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 97-8

[6] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 99

[7] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 100

[8] ARISTÓTELES. Metafísca. 1012 b 15-22. In BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 100

[9] ARISTÓTELES. Metafísca. 1012 b 22-28. In BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 101

[10] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 102

[11] ARISTÓTELES. Metafísca. 1012 b 29-31. In BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 102

[12] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 102