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Resumo:
Enrico Berti – As razões de Aristóteles – Terceiro Capítulo: O método da Metafísica. Editora Loyola.
A teologia “dialética”
No fim do livro IV da Metafísica, encontramos uma alusão à parte ‘teológica’ desta ciência, a que trata de Deus:
Ela constitui o desenvolvimento posterior da parte propriamente ‘ontológica’, da teoria do ser enquanto ser, de seus múltiplos significados e de suas propriedades por si, e é exposta detalhadamente nos últimos livros da obra, os de número XII-XIII-XIV. Para dizer a verdade, a ordem na qual tais livros foram transmitidos não parece corresponder à intenção de Aristóteles, como se pode inferir por seu conteúdo e por algumas afirmações explícitas suas. Aquele que se liga, com efeito, diretamente ao livro X ( o último da parte ‘ontológica’, pois o livro XI, como dissemos, é um resumo talvez nem sequer autêntico) não é o livro XII, mas o XIII, o qual inicia declarando que já se tratou da substância sensível, isto é, móvel (nos livros VII-VIII-IX), e que, portanto, resta saber se existe também uma imóvel, como alguns filósofos (os platônicos) pretendem. Tanto o livro XII como o XIV são, com efeito, dedicados ao exame das doutrinas dos platônicos sobre as substâncias imóveis e sobre os seus princípios: no livro XIV, ao contrário, Aristóteles expõe a própria doutrina a respeito, pressupondo já ter criticado as doutrinas dos platônicos. A ordem lógica autêntica dos três últimos livros é, portanto, XII-XIV-XII[1].
A tarefa da filosofia primeira é procurar os princípios, i. é., o “primeiro” entre os sentidos do ser, que é a substância, e o primeiro entre os sentidos da substância, que é a forma, enquanto causa (formal, ou seja, imanente) das substâncias sensíveis. Porém, se existe uma substância imóvel anterior às substâncias móveis, ou seja, é primeira por mais forte razão que as outras. Aristóteles alude isto no livro IV e posteriormente no livro VI, no qual indica o motivo pelo qual podemos denominar da ciência do ser enquanto ser como “ciência teológica”, i. é., teologia científica, e ciência suprema(1, 1026 a 18-32).
Essa nova “substância primeira” não é a primeira em relação às substâncias sensíveis, do ponto de vista lógico-epistemológico. Ela o é apenas “por si”, por natureza e não na ordem do conhecimento, pois são primeiras, neste ponto de vista, as substâncias sensíveis, enquanto “mais próxima às sensações”. Por isso o método para investigá-la não poderá ser mais a análise semântica, como na parte “ontológica”, mas outro que mostraremos agora.
A primeira coisa a fazer (próton) – diz Aristióteles no início do livro XIII – é investigar as coisas ditas pelos outros, para que, se falam alguma coisa não-boa, não estejamos sujeitos a eles, e se há alguma doutrina comum a nós e a eles não nos lamentaremos por nossa conta conosco mesmo; deve-se desejar, com efeito, dizer alguma coisa melhor e outras não pior. Mas duas são as opiniões sobre estas coisas etc (1, 1076 a 12-17).
Portanto, eis seu método: o uso “filosófico da dialética”, em particular da peirástica, isto é, discutir as opiniões alheias, mas com o objetivo de ver o que há de verdadeiro e de falso nelas. A este exame crítico são dedicado os livros XIII e XIV, dois dos três livros “teológicos”.
Todo o livro XIII é dedicado às refutações das doutrinas platônicas, demonstrando que os entes matemáticos nem as Idéias estão a altura da substância imóvel, não por não serem imóveis, mas por não serem sequer substâncias. A crítica à luz das doutrinas das categorias, ou seja, o fruto da análise semântica, mostra dialeticamente sua oposição à teologia platônico-acadêmica com sua teoria das substância imóvel.
Aristóteles no livro XIV continua seu discurso teológico contra os platônicos agora sobre os princípios de todas as coisas. Os platônicos tem como princípio para todas as coisas as substâncias imóveis, ou seja, divinas: o Uno e o “grande-pequeno”, ou Díade indefinida, no caso de Platão, o Uno e o Múltiplo, no caso de Espeusipo, e o Uno e o Desigual (que também é o mesmo “grande-pequeno”, ou Díade indefinida) no caso Xenócrates, isto é, os princípios dos números (XIV, cap. 1). “Aristóteles critica-os todos, acusando os platônicos de ‘ter posto o problema de modo arcaico’ (aporésai arkhaikós), ao modo de Parmênides, sem distinguir os muitos significados do ser e, sobretudo, sem ter em conta a diferença entre a substância e as outras categorias (quantidade e relação) (cap. 2, especialmente 1089 a 1-2).”[2]
Contudo, alem da parte critica há também uma parte positiva no livro XII, cujo vínculo com os livros XII e XIV foi confirmado pelo maior Aristotélico do século XX, Werner Jaeger. Retomando à investigação sobre, Aristóteles antes expõe três possíveis tipos de substância: “a móvel corruptível (as substâncias terrestres), a móvel incorruptível (as substâncias celestes) e a imóvel, observando que a existência das duas primeiras é admitida por todos, porque é atestada pelas sensações, enquanto a da terceira é admitida apenas por alguns (os platônicos), mas – por insuficiência dos argumentos adotados por eles – requer uma investigação posterior (XII, cap. 1).[3]”
Aristóteles, no livro XII, recorda “a prioridade da substância sobre as outras realidades, compreendido o movimento, mas também a eternidade deste último (e do tempo), o que o leva a admitir a necessidade de uma substância que faça as vezes de substrato oara o movimento eterno: trata-se do céu, que gira eternamente sobre si mesmo (1071 b 3-11)(…) Aristóteles observa que é necessário admitir um princípio capaz de mover o céu, o que não podem fazer as Idéias [causas puramente formais] ou outras substâncias a ela semelhantes.”[4] A necessidade, para explicar o movimento, da causa motora, Aristóteles acrescenta que esse princípio deve ser em ato, isto é, deve estar deve estar efetivamente movendo pois, se fosse apenas em potência, poderiam também não mover, e então o movimento poderia também não existir, o que contradiz sua eternidade (1071 b 12-17).
Contudo, até este ponto o princípio de movimento poderia ser deduzido da alma do mundo no Timeu e Leis de Platão. A causa do mundo, para Platão, é “a causa de todos os movimentos, mas também ela se move, enquanto é imanente ao próprio mundo, isto é, ao céu, como as almas dos animais são imanentes a estes últimos: ela é, portanto, princípio semovente”[5]. Aqui Aristóteles mostra sua oposição, mais uma vez, a Platão:
Além disso [não será suficiente] nem mesmo se for em ato, mas sua substância será potência, visto que o movimento nãos era eterno: com efeito, é possível que isso que é em potência não seja. É necessário, então, que haja um princípio tal que sua substância seja ato (1071 b 17-20).
Portanto, um movimento eterno do céu exige um princípio cuja substância seja ato puro, porque, do contrário, graças a seu aspecto de também ser potência, ele poderia não passar a ato e, assim, não mover. Mas este não é o caso da alma do mundo platônica, estando ela própria em movimento, ou seja, em algum aspecto, em potência. Portanto, o princípio que move eternamente o céu só poder um princípio imóvel (o que é puro ato não pode absolutamente mover-se) e imaterial (o que é puro ato é pura forma, porque a matéria é potência) (1071 b 20-22). Pode-se dizer, que esta é uma demonstração dialética por meio de refutação (“elenkticamente”), ainda que sem a mesma força do princípio de não-contradição (porque contém muitos pressupostos).
Ainda mais dialético é o caráter da exposição das quatro possíveis combinações dos termos “movente” e “movido”, isto é, “movido não-movente”, que corresponde as substâncias terrestres; “movido-movente”, que vem a ser desse modo intermediária, corresponde ao céu, portanto – Aristóteles conclui -, sendo real o termo intermediário, deverá haver também alguma coisa que corresponda à terceira combinação, um “movente não movido”, que é puro ato (1072 a 19-26). A quarta combinação, “não-movente não-movido”, não corresponde nada de real (a ela poderiam corresponder as Idéias de Platão, mas elas, para Aristóteles, não existem).
Assim,
Aristóteles, com efeito, mostra que o princípio imóvel é a “substância primeira”, enquanto simples e em ato (não porque seja o Uno – outro tema polêmico contra Platão) -, que move enquanto objeto de inteligência e de amor, que é ato de pensamento porque este é o único ato reamlente imaterial (argumento porque este é o único ato realmente imaterial (argumento extraído da analogia com o pensamento humano, que é, portanto, vida, que sua vida é eterna e feliz e que, por conseguinte, é um deus[6]; enfim, que é dotado de “potência infinita” (no sentido de potência ativa, não de potencialidade) (cap 7).[7]
No capítulo oito, Aristóteles muda o alvo de sua crítica para a teologia mítica. Depois de ter demonstrado que os princípios imóveis são muitos, acrescenta:
Transmite-se em forma de mito dos primitivos e antiqüíssimos aos pósteros a tradição de que estes são deuses e de que o divino envolve toda a natureza. As coisas remanescentes foram acrescentadas miticamente a fim de persuadir muitos e para usá-las em vista das leis e da utilidade. Dizem alguns, com efeito, que estes [deuses] têm forma humana e que são semelhantes a alguns outros animais, e a isso acrescentam outras coisas conseqüentes e semelhantes a estas ditas. Se, após tê-la separado destas últimas, alguém tomasse apenas a primeira afirmação, isto é, que consideravam as substâncias primeiras ser deuses, seria considerado falar divinamente (1074 a 38-b 10)
A crítica aqui sobre a tradição religiosa se foca em acolher o lado demonstrável racionalmente e deixar de lado a parte mais mítica. Aristóteles ainda, em relação aos deuses ou motores imóveis, não hesita em argumentar a favor de que há muitos motores imóveis, e de que, entre eles, há um que é o “primeiro”, isto é, o motor da primeira esfera celeste (1074 a 31-38): “este portanto, pode ser denominado “Deus” com a inicial maiúscula (acredite-se ou não em sua existência, como se faz com “Zeus”)[8].
É só deste motor imóvel, Deus que Aristóteles diz (cap. 9) que é “pensamento de pensamento”; como também que é um bem supremo e transcendente, causa do bem imanente, isto é, da ordem do universo (cap. 10).
No livro XII, Aristóteles discuti mais uma vez contra os outros filósofos, reivindicando o método dialético de desdobrar as aporias para ver quais são absurdas e aceitáveis. “Também no livro XII da Metafísica, portanto, dedicado à exposição positiva de sua teologia, Aristóteles não sabe renunciar à discussão e, com efeito, no breve movimento deste último capítulo consegue oporse a todas as “teologia” dos filósofos a ele precedentes, para criticá-las todas. No final, igualmente, não sabe renunciar nem sequer a um expediente retórico, e termina com a famosa citação de Homero: ‘É mau que muitos comandem; um só tenha o posto de suprema’[9](citação que redimensiona notavelmente o seu “politeísmo”).[10]”
[1] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 104
[2] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 107
[3] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 108-9
[4] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 109
[5] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 110
[6] Eternidade e beatitude eram, com efeito, para os gregos, as prerrogativas da divindade; como tal, ele é absolutamente pessoal, ou seja, “capaz de entender e de querer”, malgrado quanto se costuma dizer da impessoalidade do deus aristotélico. BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 112
[7] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 112
[8] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 113
[9] Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo, Ediouro, sem data; II, 204. [N. dom T]
[10] BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Editora Loyola. P. 114
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