UMA REFLEXÃO A PARTIR DO TEXTO “UM TROTE NO ESTILO SOKAL POR UM FILÓSOFO ANTIRELIGIOSO”.

Por: Carlos Eduardo Bernardo.

“Quem procurar sinais da presença de uma divindade irônica mexendo seus pauzinhos por trás do enorme jogo do mundo, não encontrará nenhum indício disto no gigantesco ponto de interrogação que se chama cristianismo. Veremos que a humanidade se ajoelha diante da antítese daquilo que no início era o sentido e a lei do Evangelho, que no conceito de ‘igreja’ santificou-se justamente o que o ‘mensageiro feliz’ considerava inferior e ultrapassado em relação a esse conceito; porém, procuraremos em vão uma forma maior de ironia da história mundial”.

(Friedrich W. Nietzsche, O Anticristo, 36.)

Introdução.

Diego Azizi, meu amigo, e, articulista deste blog, traduziu o artigo de Jerry A. Coyne[1], Um trote no estilo Sokal por um filósofo antireligioso [sic]. O artigo nos apresenta a faceta do Dr. Maarten Boudry, filósofo antirreligioso. O Dr. Boudry remeteu um “pós-moderno e teologicamente sofisticado […]” resumo para duas conferências de teologia, porém era um resumo “falso”, um texto no estilo Sokal.

Um texto no estilo Sokal é uma fraude acadêmica, um texto verborrágico e prolixo, mas sem sentido algum, propositalmente escrito com grande poder de sedução devido o excesso de palavras difíceis e citações aparentemente eruditas, cujo propósito é testar o rigor acadêmico e a legitimidade de instituições que se pretendem bastiões de cultura acadêmica sobre determinada disciplina[2].

Dadas características desse tipo de escrito, espera-se que nenhuma instituição acadêmica séria aprove sua publicação, todavia o escrito de

Dr. Maarten Budry

Dr. Maarten Boudry (1984). Pesquisador  e Membro Docente do Depto. de Filosofia da Universidade de Ghent (Bélgica) 

Boudry foi aprovado para as publicações.

Este episódio parece comprovar que não apenas a religião cristã, em suas expressões mais populares, mas também suas expressões mais requintadas, representadas pelo labor teológico – os seminários, as conferências, os periódicos e outros – são indignos de crédito.

A Teologia enquanto instituição cristã pretende ser um conhecimento “científico e racional das coisas divinas”, mas não consegue distinguir entre um conhecimento fundamentado de uma fraude acadêmica, na área mesma em que se pretendem especialistas.

O presente escrito pretende refletir sobre o significado da submissão a instituições de ensino e teológico de textos no estilo Sokal, e, também pretende demonstrar que a eficácia desse tipo de teste é garantida por uma defecção intrínseca à constituição do próprio cristianismo.

O Texto.

Se há realmente uma batalha entre a religião e a antirreligião, em especial entre o cristianismo e o ateísmo, é possível considerar cada argumento, cada referência, cada denúncia, cada gesto de um dos lados, em relação ao outro, como se fosse um “ataque” e a reação do outro como uma “defesa”, ou simplesmente um “contra-ataque”.

Por este ângulo a submissão de textos no estilo Sokal às instituições de divulgação e ensino teológico, aparentemente significa que os ateus e outros antirreligiosos consideram a teologia como a “última forma resistente do cristianismo”.

Desde ao advento da Modernidade (séc. XVI) o cristianismo começou a cindir-se em duas ‘instituições’, a igreja e a teologia.

Nos primórdios o cristianismo tinha na vida cotidiana e no serviço da igreja a formação espiritual e intelectual de seus fiéis, inclusive dos líderes, sendo sua ocupação de ordem prática e não teórica.

Ao longo dos séculos este modelo se manteve relativamente inalterado, apesar de, no período medievo, a educação “teológica” ter sido transferida para os mosteiros, ainda assim manteve-se intramuros da igreja.

O século XVI viu o surgimento dos primeiros seminários teológicos católicos, mas foi principalmente a partir dos meados do século XVIII, sobretudo com o advento do ‘movimento evangélico’ e o “boom” do racionalismo, que o cristianismo tomou de empréstimo os modelos seculares de formação, a universidade[3]. Estes modelos sobrepostos aos moldes do ensino teológico protestante de algumas universidades “misturaram- se” à mística da ‘religião do coração’, ensejando o ensino de uma teologia evangélica, biblicista e fundamentalista.

Esta teologia também tomou do racionalismo as categorias discursivas com objetivo de defender a fé e formar líderes competentes para a igreja.

Este é basicamente o momento histórico em que o cristianismo cindiu-se em duas ‘instituições’ diferentes: a igreja e a teologia.  A primeira seria o bastião da fé e a segunda o bastião da intelectualidade cristã.

A teologia se hipostasiou em face da igreja, assim como, o cristianismo, séculos antes, hipostasiara-se em face das comunidades dos fiéis, o que era

uma vida de simples testemunho da fé em Cristo Jesus, foi substituída gradativamente pelo assentimento intelectual num determinado conjunto de doutrinas, alicerçadas numa leitura muito questionável da Bíblia.  De igual modo o testemunho “itinerante” dos fiéis o mundo antigo, nas primeiras comunidades, fora gradativamente absorvido pela imposição de adesão a igreja como estrutura monolítico-centralizada.

Sobretudo a partir do século XIX e em parte do século XX, muitos jovens considerados fervorosos e fiéis na fé, perdiam-se ou sentiam-se fortemente abalados em suas convicções ao ingressarem nos seminários, advoga-se que isso se dava por causa da exigência do uso rigoroso da razão no exercício de análise do conteúdo da fé[4].

Porém, a divisão à qual nos referimos não trouxe benefícios aos cristãos, foi sim malévola, pois enfraqueceu suas fileiras de modo indelével.

Houve um “confinamento” da fé nas congregações, de modo que pessoas mais cultas, sobretudo os não cristãos, começaram a acreditar em um determinado estereotipo: os cristãos nas congregações são pessoas ignorantes, “burras”, estúpidas que se deixam manipular por pastores espertalhões!

Também foi criada a imagem dos teólogos como aqueles que dominam racionalmente a fé, como aqueles que são os únicos habilitados para pastorear a igreja e fazer frente ao secularismo e à crescente onda de incredulidade que “assalta” ao homem moderno.

Em consequência disto o século XX testemunhou muitos conflitos entre os teólogos e os pastores de campo; os primeiros criticavam a fé ingênua e “supersticiosa” da congregação, eles supunham que esta ingenuidade era alimentada por seus pastores, e, os últimos criticavam a atitude acentuadamente teórica dos teólogos, consideravam sua abordagem excessivamente racional, distante da realidade das congregações, além de acusarem os teólogos de se portarem diante dos demais fiéis e líderes com atitude de pretensa superioridade.

O caráter individual de muitos adeptos, suas intenções e seu testemunho não estão em causa. Todavia, analisando com rigor e imparcialidade é difícil negar que a igreja, enquanto congregação, o grupo de fiéis que busca orientar-se quase exclusivamente pela fé, entrou em colapso, e isso devido à sua própria ingenuidade, à superstição sob o título de piedade, mas, sobretudo à corrupção extrema de seus líderes; estes se envolveram no jogo de vaidades e se deixaram dominar pela ambição em conquistar o poder secular.

Esta conjuntura colocou o cristianismo em descrédito diante da sociedade secular e mesmo para muitos fiéis, o que se constata facilmente por meio dos dados de estatísticas acerca da crescente perda de fiéis a cada dia[5]. Muitos ex-adeptos do cristianismo se tornam seus mais ativos opositores, engrossando principalmente as fileiras do ateísmo; a veemência com que negam a fé cristã, estes que outrora a professavam, é proporcionalmente inversa à defesa que dantes dela faziam.

Os teólogos, e, a teologia, representada pelos seminários, aparentemente são a única frente de resistência ainda fortificada contra o secularismo e o ateísmo, ao menos assim tem sido considerado pela igreja, sobretudo em sua corrente denominada ‘evangélica’.

Posto que, a igreja perdeu sua credibilidade e não consegue fazer frente ao

Será  a teologia  o último refúgio do cristianismo?

Será a teologia o último refúgio do cristianismo?

avanço da racionalidade científica e dos ataques do ateísmo “militante”, os teólogos foram reabilitados com o objetivo principal de defender a igreja, supostamente, sobre as mesmas bases científicas e racionais.

Esta atividade teológica, de cunho apologético, tem sido constante principalmente nos Estados Unidos da América (USA), onde o fundamentalismo cristão resiste ao secularismo crescente e às inquirições do ateísmo.

Mas, se pudéssemos provar rigorosamente que as pretensões acadêmicas dos seminários e outras instituições de ensino teológico não se sustentam? Se conseguíssemos demonstrar que todas as verborrágicas obras de teologia, racionalmente justificadas, não passam de quimeras sustentadas apenas pelo envoltório de um bom discurso?  A consequência não seria a desmoralização dos seminários, e, a desarticulação do discurso teológico frente aos nossos contemporâneos?

Aparentemente este é caminho mais eficiente para a derrocada final do cristianismo.

Há tempos livros têm sido escritos e documentários produzidos com o intuito de desmascarar ou refutar teorias acerca da fé ou da religião, tanto por parte de ateus, quanto por parte de religiosos. Há muito, debates públicos entre ateus e teólogos têm sido promovidos com o propósito de “dar a vitória” a um dos lados!

O uso do estilo Sokal parece ser um modo devastador de minar a autoridade das instituições de ensino teológico, pois, seu sucesso indica que apesar de se pretenderem eruditas, não sabem distinguir entre o que seja uma fraude acadêmica e o que seja um escrito sério com fundamentos epistêmicos acerca de assuntos em que deveriam ser exímios especialistas.

A possibilidade de eficácia desta espécie de ataque ao cristianismo tem como fonte a própria natureza desta religião, conforme sua moderna configuração, ou seja, o desvio do cristianismo, enquanto instituição, sua cisão em duas instâncias na tentativa em equiparar-se ao modelo secular, é que possibilita esta investida.

A bifurcação igreja/seminário feriu o principio de unidade do Evangelho, pois dividiu a igreja em uma classe de doutos e outra de símplices[6].

A própria existência de seminários atesta a inépcia da igreja em formar seus membros no Evangelho. A preocupação da igreja jamais deveria ter se demovido da existência em testemunho vivo de Cristo, para a elaboração teórica da fé. Os lideres da igreja nos primórdios se formavam na vivência, no seio das comunidades, eram homens simples, mas envoltos em uma aura de espiritualidade e autenticados pela prática do amor ao próximo, isso de tal modo que impactavam com seu testemunho mesmo aos homens que poderiam ser considerados mais incrédulos.

É possível pensar, de acordo com as características do Evangelho, que o Sokal pode afetar frontalmente a teologia, porque a sua esfera, o seu “lugar” (gr. ho tópos) é a imanência, ela é um exercício teórico marcado pelas contingências históricas[7], assim como os que nela se exercitam. Todavia o Sokal não pode afetar o Evangelho, porque sua essência está na esfera, no “lugar” de transcendência[8]. Dizer isso é assumir que a teologia, bem como a religião, é uma construção humana, e, portanto está marcada pelas contradições que o humano carrega em si enquanto ser de agonia. Mas, esta argumentação é em si mesma uma abordagem teológica, sobre a qual não pretendemos nos debruçar.

Conclusão.

O resultado das articulações políticas de Constantino, no século IV, sofreu dobras e desdobras ao longo dos séculos, marcado por momentos históricos vergonhosos: Cruzadas, a cisão na Reforma, as Guerras da Religião, a Inquisição, o silencio diante das atrocidades do nazismo e a cínica conivência com diversos regimes autoritários e ditatoriais em diversas partes do mundo.  Com este histórico o cristianismo parece ter encontrado o fim de seus recursos.

A Europa, outrora foco disseminador do cristianismo, está tomada por uma onda de incredulidade crescente, e nas Américas as igrejas também sofrem perdas consideráveis.

Se os teólogos conseguiam, de algum modo, salvaguardar as fronteiras da cristandade, sua seriedade teórica, além de ser questionada, está sendo testada e parece não alcançar êxito em seus resultados.

Não é possível terminar este escrito sem retornar, ainda que brevemente, à citação em epígrafe. Dentre os críticos da fé cristã Nietzsche foi o mais agudo e aquele que fez o melhor diagnóstico acerca do cristianismo. Ele pode dizer

Friedrich W. Nietzsche (1844-1900). O mai agudo crítico do cristianismo.

Friedrich W. Nietzsche (1844-1900). O mais agudo crítico do cristianismo.

que no cristianismo “[…] a humanidade se ajoelha diante da antítese daquilo que no início era o sentido e a lei do Evangelho […]”. É visível que ele opõe o Jesus do Evangelho ao cristianismo e o seu Cristo, pois em sua visão, o cristianismo apresenta ao mundo um antievangelho sob o título de Evangelho, além de transformar o ‘mensageiro feliz’ e gracioso no pregador de uma mensagem de ressentimento, que noutra parte, ele, designa pelas expressões “má-nova” e desevangelho[9].

Talvez toda esta situação, a queda do cristianismo, o fim da “civilização cristã”, abra espaço para o Evangelho, para vidas transformadas que não afirmam qualquer superioridade de si, mas se doam em verdade para que todos possam realizar-se em suas possibilidades reais. Talvez, seja necessário o esvaziamento dos templos para que haja o pleroma de Cristo naqueles que realmente a Ele se entregaram e mostram isso na entrega ao outro, na linguagem cristã: na entrega ao próximo.

Da morte de Deus, constatada por Nietzsche, sobe o cheiro pútrido que contamina os ares, e, esse cheiro nada mais é que o próprio cristianismo, suas doutrinas, suas práticas, seus ritos, sua teologia, enfim, tudo o que se constitui em detrimento do Evangelho.

Se as igrejas são túmulos de Deus, suas lapides os seminários são e as teologia o seu epitáfio.

Esperamos que haja realmente “a manhã do terceiro dia”!

Bibliografia.

CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Stromata. In: www.earlychristianwritinngs.com/clement.html

LOUREIRO, Maria Amélia Salgado. (Coord.) História das Universidades, São Paulo, Estrela Alfa Editora, S/D.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: Maldição do Cristianismo. Rio de Janeiro, Newton Compton Brasil Ltda., 1992.

THIELICK, Helmut. Recomendações Aos Jovens Teólogos e Pastores, São Paulo, Editora SEPAL, 1990.

http://whyevolutionistrue.wordpress.com/2012/09/25/a-sokal-style-hoax-by-an-anti-religious-philosopher-2

http://projetophronesis.com/2013/03/26/um-trote-no-estilo-sokal-por-um-filosofo-antireligioso-a-sokal-style-hoax-by-an-anti-religious-philosopher/

http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?view=noticia&id=1&idnoticia=2170&t=censo-2010-numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao.

http://en.wikipedia.org/wiki/Alan_Sokal

 

http://skepp.be/nl/levensbeschouwing-evolutie/vrije-universiteit-voor-schut-met-namaakartikel#.Udg9wzuorqF


[2] Sugere-se como leitura introdutória acerca do que seja o trote no estilo Sokal (Sokal hoax) a página da Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Alan_Sokal

[3] Importante lembrar que as Universidades têm origem ligada às transformações pelos quais passaram os ‘ensinos maiores ou gerais’ (lat. studium generale), importantes conjuntos de escolas monásticas e episcopais da Idade Média. Algumas dentre as mais importantes universidades norte-americanas nasceram com objetivo de reavivar a fé cristã, Harvard (1636) e a Princeton (1896), por exemplo, porém secularizaram-se no decorrer dos séculos.

[4] Sugiro a leitura de THIELICK, Helmut. Recomendações Aos Jovens Teólogos e Pastores, São Paulo, Editora SEPAL, 1990, o livro relata este fenômeno e propõe um lenitivo ao problema, uma espécie de código de ética que gerenciasse suas primeiras experiências nos seminários, este escrito, dentre outros, indica quais eram as dimensões do problema.

[5] O quadro no Brasil é relativamente diferente, enquanto análise estatística, o Censo Demográfico 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou um crescimento na população evangélica, que passou de 15% em 2000 para 22,2% em 2010, embora a maioria religiosa no Brasil ainda se declare de fé católica. Todavia, o mesmo Censo registrou um considerável aumento no número daqueles que se declaram sem religião, em 2000 eram quase 12,5 milhões (7,3%), e, em 2010 ultrapassam os 15 milhões (8,0%). Informações adicionais que revelam o perfil daqueles que integram cada uma das fileiras podem ser obtidas em http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?view=noticia&id=1&idnoticia=2170&t=censo-2010-numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao.

[6] Não ignoramos que na história da igreja este tipo de classificação não é estranha, Clemente de Alexandria, por exemplo, classificava os cristãos entre dois grupos: o simples fiel e o gnóstico, cristão perfeito (Strom. IV, 21; 130,1), porém, este caso se trata de uma topologia que visa um determinado fim no contexto de uma teoria específica. Já no exemplo do cristianismo contemporâneo, se trata de uma práksis que não se presta a uma justificativa teórica, na realidade é vergonhosamente mascarada sob um discurso de igualdade que não encontra qualquer ressonância na realidade.

[7] O próprio Boundry relativiza a importância de seu hoax, ao admitir que toda disciplina científica é suscetível à uma paródia, ainda que considere a teologia como aquela que é mais suscetível.

Vide: http://skepp.be/nl/levensbeschouwing-evolutie/vrije-universiteit-voor-schut-met-namaakartikel#.Udg9wzuorqF

[8] Embora o Evangelho seja de transcendência, sua virtude é exatamente participar, enquanto logoi de Deus, para os que creem assim, da automanifestação do Divino no plano da imanência.

[9] Vide: Nietzsche, O Anticristo, 39.

Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência

A inocência do vir-a-ser é o “grande sim” que Nietzsche buscava com sua filosofia da tragédia, analisa Oswaldo Giacoia. Concepção trágico-pagã de justiça era contraposta às teorias de justiça hegemônicas da modernidade europeia, marcadas pela influência espiritual do Cristianismo.

Por: Márcia Junges

“Um modo de pensamento que fosse capaz de assumir e afirmar a totalidade da existência, na integridade de seus aspectos, incluindo o que nela existe de sombrio e luminoso, de alegre e doloroso, de desfalecimento e exaltação. Trágico é um pensamento capaz de acolher e bendizer tanto a criação como a destruição, a vida como a morte, a alternância eterna das oposições, no máximo tensionamento”. A explicação é do filósofo Oswaldo Giacoia, na entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Antecipando aspectos que aprofundará em sua conferência desta segunda-feira, 24 de maio, intitulada Nietzsche e o pensamento trágico, dentro do Ciclo de Estudos Filosofias da Diferença – Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, Giacoia acentua que uma filosofia trágica “prescinde de uma visão jurídica e culpabilizadora da existência,  acredita na inocência do vir-a-ser, não nega nem condena, mas aceita a vida sem subtração e nem acréscimo”. Segundo ele, Nietzsche queria fazer ressurgir a tragédia porque percebia nela “uma forma de vida marcada pela autenticidade e pela recusa de uma postura ingenuamente otimista, artificiosa, satisfeita e conformada com um ideal de felicidade individual e social reduzida a conforto, segurança, ausência de sofrimento”. O artista que poderia levar a termo tal feito seria Richard Wagner, compositor apto a “fazer reviver o mito pelo espírito da música, redescobrindo a profunda relação entre arte, religião e política, própria dos gregos da era da tragédia”.

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Giacoia é mestre e doutor em Filosofia por esta instituição. É pós-doutor pela Universidade Livre de Berlim, Universidade de Viena e Universidade de Lecce, Itália, e livre docente pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde leciona no Departamento de Filosofia. Especialista em Nietzsche, sobretudo no seu pensamento político, publicou, entre outros: Nietzsche – Para a Genealogia da Moral (São Paulo: Editora Scipione, 2001), Nietzsche como psicólogo (2ª ed. São Leopoldo: Unisinos, 2004), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade (Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2005) e Nietzsche & Para Além do Bem e Mal (2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como pode ser definido o pensamento trágico?

Oswaldo Giacoia – Uma definição resumida do conceito de trágico no pensamento de Nietzsche , que poderia incluir as diferentes tematizações e problematizações desse conceito, seria a de um modo de pensamento que fosse capaz de assumir e afirmar a totalidade da existência, na integridade de seus aspectos, incluindo o que nela existe de sombrio e luminoso, de alegre e doloroso, de desfalecimento e exaltação. Trágico é um pensamento capaz de acolher e bendizer tanto a criação como a destruição, a vida como a morte, a alternância eterna das oposições, no máximo tensionamento. Uma filosofia trágica prescinde de uma visão jurídica e culpabilizadora da existência,  acredita na inocência do vir-a-ser, não nega nem condena, mas aceita a vida sem subtração e nem acréscimo. Uma existência trágica é aquela que, sem depender de uma crença na ordenação e significação moral do mundo, não considera o mal e o sofrimento como uma objeção contra a vida.

IHU On-Line – Qual é o seu contexto de surgimento?

Oswaldo Giacoia – O contexto de surgimento da problemática do trágico no pensamento de Nietzsche encontra-se em suas obras de juventude, nas quais houve um predomínio da arte e da metafísica da vontade, inspiradas em Arthur Schopenhauer  e Richard Wagner . Posteriormente, Nietzsche identificou sua obra juvenil com uma “metafísica de artistas”, que procura julgar a ciência sob a ótica da arte, e esta sob a perspectiva da vida. A despeito das variações internas que a obra de Nietzsche experimenta ao longo da vida e da produção filosófica de seu autor, o tema da tragédia – mesmo que não mais firmado sobre o par conceitual apolíneo-dionisíaco – permanece um aspecto central de sua filosofia.

IHU On-Line – Analisando a obra de Nietzsche como um todo, é correto falarmos numa centralidade do pensamento trágico na sua filosofia? Por quê?

Oswaldo Giacoia – Minha resposta a essa pergunta é afirmativa, como já insinuei na resposta à questão anterior. Os temas cardinais do pensamento de Nietzsche – e aqui me refiro a aspectos por ele reconhecidos como medulares em toda sua crítica da religião, da metafísica e da moral, a saber o problema da culpa, do ressentimento, da responsabilização – estão indissociavelmente ligados à sua concepção de tragédia.

IHU On-Line – Quais são as fontes nas quais Nietzsche busca inspiração para escrever O nascimento da tragédia no espírito da música?

Oswaldo Giacoia – Essas fontes podem ser encontradas em diferentes registros. Os mais conhecidos são a filosofia de Schopenhauer e a estética de Richard Wagner. Mas não se pode desconsiderar a presença de Kant , Schiller , dos românticos alemães, assim a “frequentação” dos textos da antiguidade clássica, filosóficos e poéticos.

IHU On-Line – Nesse sentido, por que o filósofo aposta em Wagner, a princípio, como o artista capaz de fazer renascer a tragédia?

Oswaldo Giacoia – Entre outras razões, porque o jovem Nietzsche julgava perceber em Wagner um vigor artístico, ético, filosófico e político capaz de regenerar a capacidade de re-criar um público de artistas, não entorpecido pelos artificialismos da ópera e da crítica de arte, nem desertificado pela erudição e pelo historicismo. Wagner seria capaz de fazer reviver o mito pelo espírito da música, redescobrindo a profunda relação entre arte, religião e política, própria dos gregos da era da tragédia.

IHU On-Line – E por que Nietzsche queria tanto fazer ressurgir a tragédia?

Oswaldo Giacoia – Porque nela via uma forma de vida marcada pela autenticidade e pela recusa de uma postura ingenuamente otimista, artificiosa, satisfeita e conformada com um ideal de felicidade individual e social, reduzida a conforto, segurança, ausência de sofrimento.

IHU On-Line – Podemos compreender o pensamento trágico ao qual Nietzsche se refere como uma reação, uma contraposição ao pensamento racional, do qual Sócrates  era o grande ícone?

Oswaldo Giacoia – Não creio que o pensamento trágico de Nietzsche se refira a uma recusa do pensamento racional, do qual Sócrates era o grande ícone. Ao contrário, devemos prestar muita atenção para a imensa riqueza das apreciações de Nietzsche sobre Sócrates, o que já ocorre desde O nascimento da tragédia, em que Sócrates figura como o pensador que marca o limiar da modernidade cultural. O que Nietzsche denuncia não é a racionalidade lógica, mas sua tirania, ou aquilo que nela assume a forma delirante de uma compulsão: a pretensão de curar integralmente todas as feridas da existência, de desvendar todos os enigmas do mundo, e não somente conhecê-lo, mas também corrigi-lo.

IHU On-Line – É correto afirmar que a tragédia grega e a filosofia de Heráclito  são a inspiração para o conceito de amor fati? Por quê?

Oswaldo Giacoia – Deleuze  percebeu muito bem que a filosofia de Heráclito é uma verdadeira pedra de toque para se compreender o pensamento de Nietzsche. Penso que o mesmo vale para as tragédias de Ésquilo  e Sófocles  – e mesmo para Eurípedes , a despeito do juízo negativo de Nietzsche quanto ao autor de As Bacantes. Isso porque a tragédia representa, para Nietzsche, a transfiguração da sabedoria de Sileno : para os humanos, o bem maior é o que lhes é inalcançável: não ser, nada ser, pois o mal maior é ter nascido. O outro bem, esse sim acessível aos homens, é morrer logo. A tragédia é a transformação desse horror numa vida da qual não queremos, por nada, nos desprender.

IHU On-Line – De que forma o pensamento trágico nietzschiano é uma crítica à moral cristã?

Oswaldo Giacoia – Sob um aspecto que deve ser bem compreendido para poder ser também justamente avaliado. Parece-me que, do ponto de vista de Nietzsche, o Cristianismo, ou ao menos algumas das vertentes do Cristianismo, concebe a existência sob a ótica da culpabilização e do castigo, e desvalorizam o mundo, a vida terrena, contrapondo-a a uma vida suprassensível, a um mundo ideal, situado no além.

IHU On-Line – Até que ponto estão imbricados o pensamento trágico e a concepção de justiça em Nietzsche? Como essa relação resulta numa ruptura ao conceito cristão de justiça?

Oswaldo Giacoia – A concepção de justiça e o pensamento trágico guardam profunda relação na filosofia de Nietzsche, tanto que essa relação se encontra presente, com muita intensidade, já nos textos de juventude, e assim permanece até seus derradeiros escritos. Em considerável medida, Nietzsche tem a pretensão de contrastar uma concepção trágico-pagã de justiça, em oposição às teorias da justiça hegemônicas na modernidade europeia, todas profundamente marcadas pela influência espiritual do Cristianismo.

5 AULAS SOBRE NIETZSCHE

5ª aula

Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAM


Introdução
Nós chegamos, então, ao final da seqüência que eu havia programado como conteúdo desses nossos encontros. Confesso a vocês que, com surpresa da minha parte, embora seja uma seqüência mínima, e obviamente arbitrária, porque nós temos que deixar de lado muitos outros aspectos que são igualmente significativos para aquilo que nos interessa, mas eu não tinha expectativa muito concreta de que nós esgotássemos todo esse percurso; sobretudo, em função da grande densidade e da grande complexidade de alguns desses textos, especialmente as passagens da Crítica da Razão Pura que, de fato, eram problemáticas, do ponto de vista de um acesso, mais ou menos não traumático. Mas, surpreendentemente, acho que passamos de uma forma, até tranqüila, com todas essas turbulências teóricas; e acho que não houve nenhum trauma mais duradouro. Então, fico contente porque pude constatar que a nossa programação acaba sendo inteiramente cumprida, talvez não dê para a gente explorar um ou outro aspecto em relação aos dois primeiros aforismos desse livro, mas, enfim, sempre tem que ficar alguma coisa mesmo de fora.
Pretendo, hoje, que nós façamos a leitura, pelo menos, do 19 e do 20, dois aforismos centrais, no que diz respeito à temática que nos ocupou durante essa nossa série de encontros. Na verdade, esses aforismos, 19 e 20, da maneira como eu organizei o nosso percurso, seriam um ponto decisivo, a meta mesmo. E vocês verão porque razões. Antes de fazer propriamente a análise do 19, eu só queria antecipar algumas linhas, pedindo a vocês que mantenham presentes na memória a maneira como Nietzsche havia procedido em relação a sua crítica ao ‘eu-penso’ cartesiano, a crítica que ele havia feito à proposição ‘eu-penso’, e à intenção de Descartes ao empreender a demonstração da existência a partir do pensamento; e lembrem que Nietzsche havia tomado o ‘eu-penso’ como se ele fosse algo de simples e complexificado aquilo que, em aparência apenas, era simples; ele havia mostrado que na proposição ‘eu-penso’ não se tratava de modo nenhum de uma presença imediata do objeto à consciência, como queria Descartes, com o conceito de certeza imediata, mas que havia uma série de processos lógicos presentes naquele enunciado; que, na verdade, se tratava muito mais de inferências ou afirmações sem fundamento do que propriamente de intuição ou de certeza imediata.
Esse mesmo procedimento ele vai repetir precisamente através da análise de uma outra proposição que se pretende uma certeza imediata, que é não mais ‘eu-penso’, mas o ‘eu-quero’. Então, assim como ele desconstituiu a pseudo-simplicidade e pseudo-certeza, ou a pseudo-evidência do ‘eu-penso’ cartesiano, agora ele vai desconstituir a pseudo-evidência do ‘eu-quero’ schopenhaueriano. Num procedimento que é, na minha opinião, simetricamente idêntico ao procedimento que ele usou quando fez a desconstituição da evidência da certeza cartesiana da existência a partir do pensamento. Apenas para que vocês tenham vivo na memória o aforismo 16 e os Fragmentos Póstumos que nós examinamos; eles traçam perfeitamente bem o procedimento que Nietzsche emprega para construir o seu próprio argumento.
Eu pediria que vocês dedicassem, pôr favor, um minuto de atenção a essas linhas do texto do prefácio Além do Bem e do Mal. Pôr acaso vocês tiveram a oportunidade de ler esse prefácio? É um prefácio muito interessante, extremamente significativo.

Falando seriamente há boas razões que abonam a esperança de que todo dogmatizar em filosofia, ainda que se tenha apresentado como algo muito solene, muito definitivo e válido, talvez não tenha sido mais do que uma nobre infantilidade e coisa de principiantes. Talvez esteja muito próximo o tempo em que se compreenderá, cada vez mais, o que é que propriamente bastou para pôr a primeira pedra desses sublimes e incondicionais edifícios de filósofos, que os dogmáticos vieram levantando até agora.

Apenas para chamar a atenção de vocês a expressão “sublimes e incondicionais edifícios teóricos”, é uma expressão de Kant, que Nietzsche cita aqui sem referência, mas com intenção evidentemente paródica. Então, essa é uma idéia muito própria de Nietzsche. O que é a primeira pedra desses sublimes edifícios teóricos? Qual é o seu alicerce?

Uma superstição popular qualquer procedente de uma época imemorial como a superstição da alma, a qual, enquanto superstição do sujeito e superstição do eu, ainda hoje não deixou de causar dano, talvez um jogo qualquer de palavras, uma sedução por parte da gramática ou uma temerária generalização de fatos muito reduzidos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos.

A idéia é que é muito provável que na base de toda filosofia, de todo sistema teórico, nós não encontraremos outra coisa do que uma espécie de superstição popular teoricamente consagrada. Na maioria das vezes uma espécie de sedução da gramática. Essa sedução, que a gramática exerce, é uma espécie de direção inconsciente do pensamento pelas categorias fundamentais da gramática. É exatamente isso que Nietzsche denunciava quando ele fazia análise do cogito cartesiano; isso que está chamando agora, aqui, ironicamente, de superstição do eu ou de superstição da alma. Ele vai fazer exatamente isso com o ‘eu-quero’. Vejam, já começa provocativamente em relação aos filósofos. Para ele os filósofos são, em geral, dogmáticos.
Aforismo 19 de Além do Bem e do Mal

Os filósofos costumam falar da vontade como se esta fosse a coisa mais conhecida do mundo; Schopenhauer deu a entender que a vontade era a única coisa que nos era propriamente conhecida, conhecida inteiramente, conhecida sem subtração nem acréscimo.

No nosso encontro anterior tentei traçar, em grandes pinceladas, qual era a posição de Schopenhauer a esse respeito. Para Schopenhauer, portanto, a primeira evidência não era a evidência do ‘eu-penso’, que era uma evidência apenas ligada à representação, mas a evidência da vontade, do querer, querer este do qual o meu próprio corpo não é senão uma objetivação. Então, Schopenhauer dava, por assim dizer, por admitido que todo mundo sabe imediatamente o que é que significa querer. Todos nós sabemos o que é que significa um ato de vontade. Nós não somos outra coisa senão atos de vontade, para ele.

Mas a mim, continua me parecendo que também neste caso, Schopenhauer, não fez mais do que aquilo que os filósofos justamente costumam fazer: tomou um preconceito popular e o exagerou.

Então, Schopenhauer fez aquilo que é próprio e típico da filosofia. Entendo, aqui, por filosofia toda a disciplina teórica, toda a disciplina especulativa. Ou seja: os pensadores do século XIX não conheciam ainda a diferenciação que é nossa, entre filosofia e ciência. Então, todos os filósofos procedem da mesma maneira, partem de uma superstição popular, que não reconhecem como superstição, mas que a travestem em teorias. Então: tomou um preconceito popular que o exagerou.

Para mim a volição me parece antes de tudo algo complicado, algo que só como palavra forma uma unidade – e justamente na unidade verbal se esconde o preconceito popular que se assenhorou da sempre exígua cautela dos filósofos.

Então, a vontade é uma palavra que pretensamente indica algo simples, como se a unidade verbal correspondesse a uma unidade real, isto é, algo de ontologicamente uno. Então, tudo se passa como se ao termo, à palavra vontade, correspondesse uma coisa ou um objeto vontade, que se fosse um objeto simples, um objeto identificado. Esse é o pressuposto que está na base da teoria filosófica da vontade, especialmente da teoria filosófica da vontade de Schopenhauer. Ou seja, o que Nietzsche está dizendo é que nós admitimos que existe vontade e que vontade é algo identificável, algo simples; mas precisamente aí já ocorre o primeiro nível de sedução; sedução significa aqui uma espécie de enfeitiçamento do pensamento… Aliás, é interessante isso; vocês me desculpem aqui um certo desvio, em alemão as ações de “seduzir” e “desencaminhar”, “tirar do caminho”, são expressas pela mesma palavra, pelo verbo Verführen, que significa tanto führen, conduzir, daí o Führer, etc., o condutor; e Verführen significa desencaminhar, seduzir. Então, é a mesma palavra que indica um descaminho e uma sedução; e seduzir aqui significa justamente tirar do caminho certo, quer dizer, desgarrar, fazer errar. E, precisamente, o primeiro nível de sedução aqui, consiste justamente em acreditar que a unidade da expressão verbal, corresponde a uma unidade ontológica; ou seja: a unidade da palavra vontade denota um objeto, ele próprio simples. Então, desencaminhado pela ilusão da simplicidade real gerada pela simplicidade terminológica, a simplicidade verbal, o pensamento admite, compra, toma como dado, algo que está muito longe de ser demonstrado.

Sejamos, pois, mais cautelosos, sejamos afilosóficos (ou seja: não filosóficos) – digamos, em toda volição há, em primeiro lugar, uma pluralidade de sentimentos,

Então, antes de qualquer outra coisa, qualquer ato de vontade, em qualquer volição, você não tem nenhuma unidade, você tem uma pluralidade; e aqui uma primeira pluralidade é uma multiplicidade de sentimentos.

a saber, do sentimento, do estado de que nos afastamos, o sentimento do estado ao qual nós tendemos, o sentimento desse mesmo “afastar-se” e “tender”, e além disso um sentimento muscular concomitante que, para uma espécie de hábito entra em jogo, tão logo quanto “nós realizamos qualquer volição”, ainda que não ponhamos em movimento “braços e pernas”.

Comentário: Eu estou com a tradução, aqui, para o português, de Portugal. E aqui em vez de sentimento, ele usa “na pluralidade de sensações”…
Professor: Não. Eu vou verificar… Não, Gefühl é sentimento. Então, uma pluralidade de sentimentos, ou seja: o sentimento do estado do qual nós nos afastamos, o sentimento do estado ao qual nós tendemos, o sentimento do afastar-se e do tender, e esse misterioso sentimento muscular que acompanha qualquer volição, ainda que a gente não se movimente do ponto de vista corporal.
Pergunta: Aí sim não seria mais cabido sensação, por se tratar de muscular?
Professor: A palavra que o Nietzsche usa é Gefühl, que é sentimento. Porque a palavra sensação, ela é muito carregada do ponto de vista semântico em relação a tradição da teoria do conhecimento. Ela está ligada à psicologia associonista, está ligada ao empirismo, e muito provavelmente Nietzsche não está querendo aqui correr o risco de incorrer numa espécie de identificação, nem com o sensualismo, por exemplo; nem com a psicologia associonista. Por isso ele usa o termo Gefühl, que é sentimento, e aí fica claro que você não está se referindo apenas à sensação, no sentido da sensação tal como ela é entendida na tradição da teoria do conhecimento.
Mas percebam que vocês têm, então, um primeiro nível de complexificação daquilo que aparentemente é simples; quando você tem um ato volitivo qualquer, em qualquer ato volitivo você já tem, de saída, esta multiplicidade de sentimento. Quer dizer, em qualquer ato de vontade, em qualquer desejo se encontra aspiração à uma meta, à um alvo que se põe como objeto da volição, como objeto de desejo. Todo desejo – se nós pudéssemos utilizar uma palavra contemporânea -, na sua própria estrutura implica este alvo para o qual o sujeito desejante tende, implica esse estado do qual ele parte neste movimento de tender e implica também esse movimento que o impulsiona na direção do seu objeto. Então, existe não somente o sentimento do estado de onde se parte, como sentimento do estado para o qual se tende, como existe o sentimento precisamente deste “de onde se parte” e desse “tender”; assim como essa espécie de movimento muscular, que é mais imaginário do que efetivamente real, que seria esse deslocamento no espaço e no tempo, que acompanha toda e qualquer volição, todo e qualquer desejo, mesmo que você não mova o músculo. Há, na verdade, esse primeiro grau de complexificação.

E assim como temos que admitir que o sentir e, desde logo, um sentir múltiplo (e aqui de novo é Gefühl, sentir mesmo), é o ingrediente da vontade, assim devemos admitir também, em segundo lugar, o pensar.

Pergunta: Tenho uma outra pergunta, também de tradução. Aqui na nossa tradução está “ingrediente do querer”. E o hábito de querer é a mesma coisa que um ato de volição, e é aí é eqüivalente?
Professor: Pode ser ingrediente do querer. O querer é pensado aqui como faculdade da volição, em geral. Enquanto que os atos particulares são os nossos desejos concretos, os nossos desejos particulares. O querer é pensado aqui como a faculdade de desejar. Então, querer não é somente uma multiplicidade de sentimentos, ao querer pertence, além da multiplicidade de sentimentos, também o pensamento.

Em todo ato de vontade há um pensamento que manda, e não se creia que seja possível separar esse pensamento da volição como se então já só restasse vontade.

Ou seja: a isso que nós chamamos vontade pertence essencialmente todo esse complexo de sentimentos, a que nós nos referimos, e pertence também um pensar. Então, querer não exclui o pensar, mas querer tem o pensar como um dos seus momentos constitutivos. No ato volitivo há um pensamento que manda. A idéia é: todo ato volitivo é, no fundo, um jogo de forças. Se nós quisermos usar uma expressão nossa, contemporânea, é a expressão de uma correlação de força entre tendências ou moções de forças.

Em terceiro lugar, a vontade não é só um complexo de sentir e pensar, senão, sobretudo, além disso, um afeto.

Então, o aspecto afetivo da vontade é um dos seus elementos, aliás, é o seu elemento nuclear. Por isso Nietzsche diz: Em terceiro lugar, a vontade não é só um complexo de sentir e pensar, mas sobretudo, além disso, um afeto. Aliás, a palavra “afeto”, Nietzsche escreve Affekt, ele usa o termo latino para mostrar justamente esse lado da afecção, ser afetado por.
Pergunta: E é só um? Não é múltiplo?
Professor: O elemento afetivo ainda é um ingrediente a mais da vontade, e o que ele está falando aqui é de um afeto particular. E é esse que vai nos interessar aqui fundamentalmente. O que caracteriza a vontade fundamentalmente, para Nietzsche, a sua característica mais importante, é este afeto, não que não haja outros, mas o afeto do comando. Percebam, por conseguinte, que se trata manifestamente de uma relação de mando, de obediência, portanto, uma relação de força entre uma diversidade de afetos. Então, trata-se desse múltiplo de sentimentos e de pensamentos, comandado, na verdade, por um tônus afetivo fundamental, que é o comando. Isso vai ser fundamentalmente importante, do ponto de vista de Nietzsche, porque ele vai desconstituir, precisamente por aí, a teoria tradicional do livre arbítrio. Ou seja: a idéia de uma liberdade da vontade. A vontade não é livre como se a liberdade fosse uma espécie de propriedade inata da vontade, mas o sentimento de liberdade da vontade é precisamente a tradução metafísica desse afeto do comando. Ou seja: o que acontece com a teoria do livre-arbítrio é um erro de tradução. Nós traduzimos para a linguagem do arbítrio livre essa imensa complexidade e, sobretudo, essa relação tensa entre impulsos que obedecem ao comando de um impulso mais forte; então nós julgamos a liberdade da vontade como uma propriedade simples da vontade, ela própria pensada como simples, quando, na verdade, nós simplesmente perdemos de vista toda essa multiplicidade e, sobretudo, essa multiplicidade complexa que estabelece ajustamentos hierárquicos entre energias intra-psíquicas.

O que se chama “liberdade da vontade” é essencialmente o afeto de superioridade com respeito aquele que tem que obedecer: “eu sou livre, ‘ele’ tem que obedecer” – em toda vontade se esconde essa consciência e da mesma maneira aquela tensão da atenção, aquela olhada reta que se fixa exclusivamente numa só coisa, aquela valoração incondicional, “agora se necessita disto e não de outra coisa”, aquela certeza interna de que se nos obedecerá e tudo de mais que forma parte do estado próprio de quem manda.

Então, vejam: o que nós vemos num ato volitivo é esta multiplicidade, uma multiplicidade que diferencia tanto sentimentos, quanto pensamento, quanto afetos em geral; mas você tem um afeto, entre essa multiplicidade toda, tem um ou alguns afetos que são aqueles que comandam. Ou seja: aqueles que, na posição da relação entre as diversas forças, implicadas num ato volitivo, são aqueles que exercem a posição do mais forte.
Pergunta: Mas existe algum movimento?
Professor: Sim, o tempo todo é um movimento. É precisamente sobre isso que eu gostaria de chamar a atenção. Então, o mais aparentemente elementar ato volitivo já porta nele toda essa multiplicidade. E este equilíbrio do afeto que comanda é sempre instável, é sempre mutável, porque este afeto que, num determinado momento é posto como meta, como alvo desse afeto, não é desde sempre e nem para sempre fixado como superior; é numa determinada correlação e aparece como um alvo principal, mas que, em instantes seguintes, justamente em função deste jogo de tensão entre aquele que domina e aquele que é dominado, pode ocorrer uma subversão.
Pergunta: Agora, o que é que determina? Ele fala alguma coisa sobre o que é que determina ou quem determina que em um certo momento seja assim, e depois em outro seja diferente?
Professor: Ele não está falando neste ponto, mas o que determina é precisamente a vida. A consecução ou a obtenção dos alvos do desejo, na verdade.
Pergunta: Isso não poderia ser livre-arbítrio? Um aspecto do livre-arbítrio?
Professor: Mas é muito curioso esse livre-arbítrio, porque trata-se aqui, na verdade, de um livre-arbítrio muito sui generis. Porque, em geral, quando você pensa na propriedade da vontade como livre, no livre-arbítrio, você pensa, em última instância, pelo menos tal como sempre pensou a tradição, a possibilidade absolutamente essencial para a vontade de, em virtude das suas próprias convicções internas, dar ou não o seu consentimento a alguma coisa. Ou seja: escolher A ou B. A teoria do livre-arbítrio supõe necessariamente a escolha.
Pergunta: Mas sob o comando de um afeto não tem essa escolha?
Professor: Aí é que está: o problema é que esta escolha, que caracteriza a teoria tradicional do livre-arbítrio, supõe uma espécie de neutralidade, de desinteresse fundamental da vontade, que pode ser inclinada para um ou para outro dos membros possíveis de uma disjunção, por razões que são absolutamente próprias da pessoa. A pessoa pode ser levada pelas suas paixões, pelas suas inclinações, pelos seus apetites, ou pode ser conduzida para o outro extremo da decisão a ser tomada por uma convicção intelectual. Veja: você pode ter o maior interesse, por exemplo, em perseguir uma meta qualquer, um desejo qualquer, mas você pode exercer sobre você mesma um certo controle e, portanto, renunciar ao alvo do seu desejo por alguma razão que você se convence ser justa, ou adequada, ou correta. Então, a liberdade da vontade supõe aqui, nesse caso, esta capacidade de decidir por A ou por B, por motivos, pura e simplesmente, internos.
Pergunta: Está ligada a consciência?
Professor: Está ligada a consciência, necessariamente ligada a consciência. Agora, o que Nietzsche está tentando mostrar aqui é que em cada ato volitivo existe uma multiplicidade de instâncias psíquicas, que estão em permanente disputa pelo comando.
Comentário: E não numa unidade contida…
Professor: E não numa unidade plácida, calma, tranqüila.
Comentário: É a mesma coisa que ele faz com o pensamento.
Professor: Justo. Então, você não tem uma espécie de dimensão psíquica intelectual, que seria inteiramente objetiva e neutra em relação ao pólo do desejo, do apetite, da paixão, do impulso, da inclinação. Você não tem mais o conflito tradicional entre sensibilidade e intelecto. Você tem uma série muito grande de instâncias psicológicas que estão numa relação de oposição entre si e de combate pela supremacia, pela predominância; complexidade esta de que cada elemento representa um certo ponto de vista. Então, exagerando um pouco as coisas, qualquer uma dessas instâncias e qualquer um dos seus impulsos é igualmente interessado. Então, não há, de um lado, um intelecto puro, que seria neutro e imparcial, com relação aos seus objetos e, de outro, um desejo, uma paixão, um interesse completamente cego e unicamente fixado naquilo que representa a sua unilateralidade. Ao contrário, todos os pontos são igualmente interessados e todos os pontos representam precisamente um, uma perspectiva, um certo ângulo de visão. Então, nesse sentido aquele afeto que comanda é da mesma natureza do que os outros; e o fato dele ter obtido o comando depende exatamente da intensidade da sua energia. Ele não é fundamentalmente diferente dos outros; você não tem, de um lado, por exemplo, a pura racionalidade e, de outro, as emoções ou o plano do desejo. A gente poderia, parodiando um pouco Deleuze, dizer: tudo se passa em um cenário onde os elementos são da mesma natureza, todos eles são desejantes. Apenas que, se é o componente intelectual quem obtém, num determinado momento, o predomínio, esse predomínio é devido unicamente a sua qualidade de ser, nesse momento, o mais forte e mais nada.
Quer dizer então: é sempre essa idéia de superioridade em relação àquele que obedece que caracteriza a liberdade da vontade. A liberdade da vontade significa aqui, em última instância, de novo um afeto, o sentimento de ser livre, sentimento esse que acompanha precisamente esse estado em que uma instância comanda e outras obedecem. Ou, determinados arranjos, organizações, configurações de relação de poder, entre as diferentes instâncias psíquicas envolvidas no ato da vontade, segundo o que algumas se subordinam a uma ou a algumas, de tal maneira que se torna possível fixar uma meta exclusiva; ou seja: aquele alvo que se põe como alvo dominante, como alvo exclusivo. Aquela valoração de que agora se tem necessidade, e não de outra coisa. Ou seja: o predomínio de uma certa perspectiva.
Obviamente que o predomínio de uma certa perspectiva, significa o predomínio de uma perspectiva de valor, de valoração; e de valoração determinada a partir da instância também psiquicamente dominante. Então, quando uma volição se completa quando algo é, enfim, querido e posto como sendo o mais importante a ser alcançado, isso significa que o ponto de vista valorativo da instância psíquica para a qual aquele objeto se revela como fundamental, é o ponto de vista valorativo triunfante, isto é, o mais forte. Por conseguinte, todos os outros elementos, todas as outras instâncias, têm que obedecer ao comando daquele afeto. Querer significa precisamente querer algo em especial, significa precisamente a expressão do domínio de uma determinada instância psíquica atualmente dominante. Então, quando se quer alguma coisa, se conquista com isso a certeza de que, nessa multiplicidade inesgotável que nós somos, uma determina configuração de relação de forças se estabeleceu, se consolidou, a tal ponto que se tornou possível, então, o predomínio e a determinação de uma certa perspectiva de valor; e com isso, de um certo objeto do desejo.
Comentário: Mas isso não quer dizer que não tenham outras que tenham ficado contra, só que não venceram.
Professor: Com certeza absoluta. Aí é que está todo problema: sempre que algo se define como objeto da volição, necessariamente vários outros impulsos se apresentam concomitantemente como dominados e que, portanto, se determinam em relação ao impulso dominante de várias maneiras, como simples oposição ou como cumplicidade. De tal forma que, nesse momento, definiu-se algo como efetivamente desejado, querido, o que significa dizer que, com inteira necessidade, há uma infinidade de outros objetos, que foram preteridos em função da determinação deste ato de volição. O que mostra, por conseguinte, que todo ato de volição, que todo objeto do desejo, é necessariamente precário, porque ele representa o triunfo de um ponto de vista, isto é, de uma perspectiva necessariamente parcial. Ou seja: o triunfo de uma perspectiva cujo domínio se deve a uma complexa configuração de forças, portanto, a um jogo de pactos, alianças, resistências e oposições.
Vocês percebam como é frágil o equilíbrio que existe em cada volição. E é precisamente por isso que em cada volição você tem não apenas a unilateralidade de uma direção sozinha, autárquica, mas a unilateralidade de uma direção, isto é, um ponto de vista valorativo, que se faz justamente a partir de uma imensa rede de resistências e oposições. Daí toda a ambivalência, ambigüidade do querer.
Comentário: Então, uma direção posterga o seu oposto.
Professor: Isso. Mas veja, ela posterga, mas não anula. Aquilo convive e, como em toda relação de dominação, convive a tensão entre o dominante e o dominado. Como neste caso se trata de ordens complexas, de uma multiplicidade de diversas ordens, que vai desde o sentir até o pensar, então a todo momento em que se estabelece uma certa hierarquia e que, portanto, se define algo como objeto do querer, necessariamente, essa definição supõe a acomodação, de alguma forma, dessa multiplicidade, sob a forma dos pactos de cumplicidade, das alianças, das satisfações parciais; por conseguinte, ao buscarmos satisfazer um desejo dominante, com toda certeza, há satisfações parciais de outros desejos que não estão claramente manifestados aqui. Mas há resistências também. Há resistência precisamente daquilo que deve obedecer. Ou seja, daquilo que não pode se expressar plenamente, não pode ainda alcançar a sua expressão a nível de afeto dominante.
Pergunta: Posso divagar um pouquinho? Será que isso tem alguma coisa a ver com questões mais amplas de dominação?
Professor: Mas é lógico. O que Nietzsche, no fundo, está querendo dizer aqui é que, para você poder explicar o que é que significa a vontade, você não pode partir de uma entidade simples; que a vontade talvez encontre o seu espelhamento mais claro justamente no ato político. Ou seja: que aquele que quer, ao querer tem de estabelecer o mesmo tipo de relações de cumplicidade, aliança e oposição, que se estabelece na determinação da vontade política de uma comunidade.
Então, o que Nietzsche está querendo dizer aqui, é que a alma que tradicionalmente sempre se pensou como uma entidade simples, é na verdade melhor expressa se você a pensa sob o ponto de vista – usando uma metáfora -, das relações políticas.
Pergunta: O que Nietzsche está fazendo não é legitimando as estruturas de poder com esse pensamento?
Professor: Não necessariamente as estruturas de poder. O que Nietzsche está dizendo é que não existe nada que não seja relação de poder. Não são determinadas estruturas que se consolidam desta ou daquela maneira; é que a relação de poder é a relação mais fundamental com a qual você pode esbarrar, mesmo a nível das instâncias psíquicas, mesmo a nível daquilo que você pode chamar de psiquismo ou eu; eu, na verdade, é fundamentalmente um nós, e principalmente um nós que se estabelece a partir de relações de força e dominação. E não somente o eu, pensado como sujeito, mas cada ato específico de cada uma das suas faculdades. Ou seja: sem relação de poder não se determina absolutamente nada, em qualquer uma das nossas dimensões psíquicas.
Comentário: Sim, então ele está dizendo que não só tem que existir um dominado e um dominador, como isso é correto e inevitável, porque é a vida e a natureza.
Professor: É isso mesmo. Ou seja: o último elemento ao qual você pode chegar, o último dado de realidade, são relações de dominação, são relações de poder. Isso que você observa, portanto, no plano macro-político da relação entre os homens, você observa também no plano microscópico da sua própria individualidade.
Comentário: Mas aí dá para pensar que, por essa multiplicidade interna, o ser humano desenvolveu multiplicidade social.
Professor: Ou vice-versa… Você pode pensar nas duas direções. Você pode pensar que é justamente em função dessa multiplicidade interna que você tem a organização política das relações entre os homens, o estado, ou seja: que o estado, na verdade, não é senão uma espécie de sucedâneo da hierarquia das funções psíquicas. Ou você pode pensar o contrário: que a hierarquia das funções psíquicas é uma espécie de introjeção das relações sociais de mando e de obediências, das relações políticas. As duas coisas, as duas vias são perfeitamente trilháveis. Tanto a estrutura das nossas faculdades psíquicas, isto é, a diferenciação dos nossos estados e das nossas faculdades anímicas, pode servir de base para organização hierárquica das relações sociais sob a forma do Estado, quanto você pode perfeitamente pensar que a complexidade das funções psíquicas e a sua organização hierárquica é, na verdade, resultado de um trabalho de introjeção da organização política das formas sociais de dominação.
Agora o fundamental, para Nietzsche, é renunciar de vez essa idéia de uma unidade substancial. Ou seja: como se sujeito ou subjetividade fosse algo simples e pudesse se identificar, por exemplo, com a consciência. Ou seja: a subjetividade e qualquer uma das suas manifestações é complexa, e não somente o pensamento é complexo; a vontade é igualmente complexa; e você não encontra simplicidade em nenhuma instância da psique. Ao contrário, o que você encontra, é em cada manifestação de qualquer dimensão da subjetividade, a pluralidade das relações de poder.
Comentário: Posso falar só uma coisinha? Esse trecho, aqui, da vontade, ele é ultra hobbesiano; quando o Hobbes enfrenta Descartes, desconstitui a noção de livre-arbítrio do mesmo jeito.
Professor: Muito hobbesiano. Aliás, a relação de Nietzsche e Hobbes, é uma relação muito próxima.
Comentário: Mas é demais. Estou cada vez mais convencida de que Hobbes e o Nietzsche estão próximos. Porque se pensarmos a guerra “de todos contra todos” podemos pensar através das paixões e isso aproxima do Nietzsche.
Professor: Sem dúvida. É a questão do power after power, do Hobbes; é exatamente isso aqui, é a essa relação “poder sobre poder”, é a isso que você chega, se você quiser analisar qualquer dado da personalidade. No fundo, para Nietzsche, qualquer dado do real. Percebam a primeira frase desse texto é, na verdade, uma aplicação da teoria do Prefácio desta mesma obra de que o que os filósofos são, na verdade, uns míopes, eles tomam um preconceito popular e o consagram teoricamente. Descartes consagrou, metafisicamente, o preconceito popular da unidade do eu como substância pensante. Schopenhauer consagrou o preconceito popular da unidade do eu como vontade. Dos dois lados a mesma cegueira, o mesmo feitiço da categoria de unidade, que ele está justamente aqui se encarregando de desfazer. Quer dizer, a unidade gera esse feitiço, essa sedução do simples, que a crítica nietzschiana se encarrega de dissipar.

Mas observe-se agora o que é mais assombroso na vontade – esta coisa tão complexa para designar a qual o povo não tem mais do que uma única palavra: na medida em que, em um caso dado, nós somos, a uma vez, os que mandam e os que obedecem…

Vejam: nós mesmos, no interior de cada ato volitivo, exercemos essa função paradoxal de sermos tanto os que mandam como os que obedecem. Agora vem a questão que você coloca. Mas, então, quem é esse nós? Percebe que o eu pensado como algo simples, como a consciência ou o núcleo da personalidade, simplesmente desapareceu. Nós somos os afetos que comandam, mas nós somos também os afetos que obedecem; nós somos essa multiplicidade em permanente oposição, em permanente tensão. E, por conseguinte, quando dizemos “nós”, nós nos identificamos com um ou alguns partidos e não com outros. E quando nós dizemos que a nossa vontade é livre é porque nós nos identificamos com o partido que governa e não com o governado. Ou seja: nós nos identificamos com o dominante. E é por isso que o afeto do domínio é nosso. Quer dizer, nós assimilamos como identidade nossa precisamente o afeto que predomina.
Comentário: E chamamos de livre-arbítrio… Temos a sensação de livre arbítrio.
Professor: Quer dizer, nós somos aquele dominante, mas igualmente o dominado. E, sobretudo, num jogo de alternância entre dominante e dominado que é perpétuo. Isso significa que nós não somos permanentemente iguais a nós mesmos. Porque aquilo com que nós nos identificamos hoje pode não ser mais aquilo com que nos identificaremos amanhã. Logo, a idéia de uma subsistência do eu, de um eu invariável, desapareceu. Ou seja: você tem a consciência como identidade do eu, mas uma identidade puramente ilusória, porque a consciência não é senão a percepção dos estados dominantes. E necessariamente a ignorância desta multiplicidade de dominados, que são justamente a base da organização.
Pergunta: O que seria, talvez, o inconsciente?
Professor: Isso também seria o inconsciente, cujos reflexos aparecem na consciência, mas apenas parciais, necessariamente parciais. Aquilo a que a consciência tem acesso é limitado. Por que? Porque a consciência é precisamente o afeto dominante. Logo ela é ciente, mas apenas no seu próprio ponto de vista perspectivo.
Pergunta: Sobre o que ela comanda apenas?
Professor: Claro. Mas ela é também inconsciente quanto aos demais, ela não sabe das condições sobre as quais repousa o seu domínio, isto é, do conjunto, do complexo jogo das alianças e de resistências que tornam possível a expressão do domínio da consciência, ou seja: que tornam possível a identificação entre o eu e a consciência. Portanto, este eu que a consciência diz que “eu sou”, é o eu do ponto de vista da consciência. Mas ela exclui necessariamente de si tudo aquilo ao qual ela não tem acesso. Este outro eu que é infinitamente maior do que o eu consciente.
Pergunta: Quando Freud diz que o trabalho e ser feito é expandir a consciência para dentro do inconsciente, ou seja: tornando o material inconsciente cada vez mais consciente, isso, segundo Nietzsche, seria possível?
Professor: Sem dúvida. Porque na medida em que você recebe indícios na consciência, reflexos na consciência dessa base sobre a qual a consciência repousa, é obviamente possível estabelecer um certo tipo de contato, de comércio, vamos dizer assim, entre governante e governado. Mas, por outro lado, é preciso ver que a consciência é necessariamente perspectiva e que, portanto, todos os sinais que ela recebe são traduzidos na sua linguagem e, por conseguinte, inseridos na ótica própria da consciência. E, a partir daí, eles escapam, ou algo deles necessariamente escapa, à consciência e jamais será capturado inteiramente por ela.
Comentário: Isso que é importante saber, que não vai ter conhecimento integral…
Professor: Integral não. Porque a condição da consciência, inclusive a condição desta diferenciação entre funções psíquicas superiores e inferiores, a condição de que essa ordem hierárquica se estabeleça, é exatamente que a consciência não seja capaz de saber integralmente sobre o que ela repousa.
Comentário: Ou seja: é uma ilusão necessária. Mas o objetivo, talvez, seja para o consciente chegar a essa transparência, para Nietzsche.
Professor: Mas, para Nietzsche, não se chega a isso. Não tem outro caminho, a não ser tentar estabelecer o máximo possível de comunicação entre o dirigente, no caso, a consciência, as funções psíquicas superiores, e aquilo sobre o que ela repousa, a base pulsional sobre a qual ela se constrói.
Comentário: Mas isso traz uma sensação de busca de transparência, essa última fala, eu acho que saber-se perspectivo, ainda que sobre uma base na qual eu não alcanço, ainda mais a perspectiva da subjetividade nietzschiana.
Professor: Sem dúvida. A idéia de transparência, Amnéris, a meu ver, para Nietzsche, é necessariamente uma ilusão porque aquilo que ela supõe é irrealizável. O máximo que a consciência pode fazer é alargar um pouco mais a sua perspectiva, sem deixar de ser perspectiva.
Comentário: Mas tem uma hora que ela pode explodir sem se saber perspectiva.
Professor: Tem, mas nesse momento ela tem de renunciar ao seu ideal de onisciência.
Comentário: E de transparência.
Professor: E de transparência, é claro. Ela tem de chegar à consciência da sua própria, não propriamente opacidade, mas da sua própria impossibilidade de ver tudo.
Eu gostaria de saber se ficou claro essa idéia do eu como necessariamente se decompondo em uma complexidade de um grau infinito.
Comentário: A consciência, eu acho, que tem essa limitação, exatamente para poder existir, porque sem a limitação, não dá para existir.
Professor: Exatamente. Não somente para existir como consciência, mas a própria existência desta multiplicidade sob o comando aparente da consciência, que a consciência exerça esta aparente autarquia, liderança, é uma condição de possibilidade para que esse todo que nós somos viva, que exista.
Comentário: É como a história do marido que pensa que manda em casa…
Professor: É isso mesmo. Na verdade você pensa que quer algo, e que esse algo expressa integralmente aquilo que é o mais ardente objeto do teu querer. Mas ao afirmar aquele algo, necessariamente estão postergados infinitos outros algo, que poderiam ser igualmente objeto de um ato de volição. E que o predomínio daquele objeto não significa negação dos outros. Significa negação provisória. Eu não sei se vocês prestaram atenção para os ecos, ao mesmo tempo paródicos e provocativos, da expressão “só uma coisa é necessária”. Inclusive, se o tradutor, Paulo César, tomou o cuidado deveria ter grifado esta frase. E da mesma maneira aquela tensão da atenção, aquele olhar reto que se fixa exclusivamente em uma só coisa.
Professor: Como é que ele pôs?
Resposta: “Isso e apenas isso é necessário agora”. E está entre aspas.
Professor: Agora isto é necessário e nenhuma outra coisa. Vocês identificaram esse texto ou não? O que é que Nietzsche provavelmente está se referindo? É a famosa passagem do evangelho, em especial do Evangelho de Lucas (10:38,42). É aquela famosa passagem de Marta e Maria, em que o Cristo diz: ela escolheu a melhor parte e você está preocupada com muitas coisas, mas uma só coisa é necessária. Essa é uma frase que marcou Nietzsche profundamente, por razões inclusive biográficas, porque o pai dele era pastor, e sob o púlpito de onde o pai dele pregava, havia exatamente a inscrição dessa frase: “Uma só coisa é necessária”.
Então, aqui, ele tenta mostrar como este “uma só coisa é necessária”, profundamente arraigado na nossa tradição judaico-cristã, esse “uma só coisa” encobre uma relação de força e de dominação. E aquilo que é essa “uma só coisa que é necessária”, é um alvo de um certo tipo de vida. Ou seja: ela expressa uma valoração de um certo tipo de vida. Então…

na medida em que, em um caso dado, nós somos, a uma vez, os que mandam e os que obedecem, e além disso conhecemos enquanto somos os que obedecem, os sentimentos do coagir, urgir, oprimir, resistir, morrer, os quais costumam começar imediatamente depois do ato da vontade; na medida em que, por outro lado, nós temos o hábito de passar por alto, de esquecer enganosamente essa dualidade, graças ao conceito sintético “eu”, ocorre que da volição se enganchou, além disso, toda uma cadeia de conclusões errôneas e, portanto, de valorações falsas da própria vontade, de modo que aquele que quer crer de boa-fé, que a volição basta para a ação.

Então, na medida mesma em que, como aqueles que mandam, nós nos identificamos com os sentimentos próprios do que manda e que, por conseguinte, coage, urge, oprime, e nós nos esquecemos que a todo coagir, urgir e oprimir existe um resistir contraposto, nós esquecemos a dualidade necessariamente pensada em toda coação, e pensamos apenas sobre a falsa impressão de uma unidade do eu. É isto que Nietzsche está chamando de conceito sintético. Ou seja: nós estabelecemos uma síntese do múltiplo na unidade do eu, e nós temos então a ilusão de uma simplicidade lá onde existe, na verdade, um jogo de resistência e de oposição. E por isso nós pensamos, por exemplo, que a vontade basta para a ação. Ou seja: para que nós sejamos levados a uma ação basta queremos; daí a liberdade da nossa vontade. É como se nós tivéssemos uma cadeia causal tal que a vontade fosse motivo suficiente para o agir.

Dado que na maioria dos casos realizamos uma volição unicamente quando resultava lícito, esperar também o efeito do comando, quer dizer a obediência, quer dizer a ação -, ocorre que a aparência se traduziu no sentimento de que existe uma necessidade do efeito;

Ou seja: na medida em que, na maioria das vezes, nós queremos ou desejamos aquilo que nos é possível, aquilo que nós podemos licitamente esperar o efeito, a volição realizada é uma volição que nos é possível, então na maioria das vezes nós queremos aquilo que nós podemos fazer, gera-se a partir daí a impressão de que basta que eu queira para que eu o faça, basta que eu queira para que eu o realize. E, portanto, nós passamos por cima, precisamente, desta dualidade, desta oposição e desse jogo de resistências. Mas basta que, apenas em um ou alguns casos, nós não tenhamos o direito de esperar o efeito da volição, ou seja, basta que em um ou alguns casos o efeito das resistências seja mais forte do que o efeito do comando, para que nós saibamos exatamente quanto de complexidade existe em cada ato do querer. Está claro isso?

em suma, aquele que quer crê com elevado grau de segurança, que vontade e ação são de algum modo uma única coisa – ele atribui o bom resultado a execução da volição, à própria vontade, e com isto desfruta de um aumento daquele sentimento de poder, que todo bom resultado leva consigo.

Quer dizer: como na grande maioria das vezes nós queremos aquilo que nós podemos realizar, então geramos em nós mesmos a ilusão de que basta que queiramos para que o realizemos. E extraímos daí a idéia de uma necessidade do efeito; ou seja: ele acredita, de boa consciência, que basta a vontade como causa do seu agir; ou seja, que existe uma relação causal e necessária entre a vontade e a ação.
Comentário: Agora está ficando muito clara a história da loucura, porque Foucault mexe tanto na questão da vontade cartesiana.
Professor: A vontade cartesiana também se encontra criticada nesse mesmo movimento.
Comentário: Então, é exatamente por isso, porque a complexidade da noção de vontade não era absolutamente vista por Pinel, como para a psiquiatria.
Professor: Justamente. E principalmente, vai dizer Nietzsche, pelo seu grande teórico: Schopenhauer, que escreve um livro sobre o mundo como vontade, não percebe que a vontade é exatamente um complexo desta ordem. Então, aquele que quer, na verdade, além de todo esse complexo de sentimentos e de pensamentos e de afetos, ele goza de uma espécie de aumento de sentimento do poder, que todo bom resultado leva consigo. Ou seja: todo resultado bem sucedido provoca um incremento do sentimento de poder. Então, a cada ação realizada e pensada como conseqüência da vontade junta-se a esse emaranhado complexo de pensamento, sentimento, afeto, etc., além disso, junta-se o sentimento de poder. O sentimento de poder que brota, necessariamente, da experiência de gratificação, chamemos assim, do triunfo.

“Liberdade da vontade”, essa é a expressão para designar aquele complexo estado prazeroso daquele que quer, o qual manda, e ao mesmo tempo se identifica como executor – e desfruta também enquanto tal o triunfo sobre as resistências, mas dentro de si mesmo julga que é a sua vontade a que propriamente vence as resistências.

O sujeito que quer se identifica com o afeto que comanda, por conseguinte, se identifica com as instâncias que exercem o comando, e participa precisamente do tipo de prazer ou de gozo envolvido no comando obedecido. Está certo? E se identifica como executor e desfruta também, enquanto tal, o triunfo sobre as resistências.
Comentário: E se sente sujeito.
Professor: Exato. É isso que significa sentir-se sujeito. Sentir-se sujeito significa esta identificação entre a consciência e uma certa acomodação dos mecanismos psíquicos; significa esta identificação precisamente entre a consciência e um certo tipo de relação entre as forças psíquicas, que é o triunfo sobre as resistências; tem-se a impressão de que é a vontade quem propriamente vence as resistências. Quando é exatamente o contrário disso. A vontade é precisamente um efeito do jogo das relações de poder, isto é, do jogo entre mando e obediência. Então, não é a vontade quem triunfa sobre as resistências, o ato volitivo, qualquer ato volitivo, é simplesmente uma expressão de uma acomodação de instâncias em conflito.
Então, não existe propriamente liberdade da vontade, não existe propriamente vontade, o que existe é um jogo de força entre as instâncias psíquicas, cuja acomodação necessariamente precária, necessariamente instável, determina qualquer ato de vontade. Vejam: a inversão completa da perspectiva. Nós partimos da idéia de que existe uma vontade e de que a vontade é uma faculdade expressa pelo termo vontade. Vontade como uma espécie de faculdade de desejar. E agora nós vimos que essa faculdade não existe, e que cada ato volitivo concreto expressa simplesmente um certo tipo de acomodação entre alvos psíquicos, entre forças psíquicas, entre forças ou disposições.
Pergunta: Não existe liberdade, então?
Professor: É exatamente isso. A não ser o seu próprio poder… Ou seja: tirou todo o poder da consciência. Tirar todo o poder da consciência significa: destitui-la da sua onipotência ilusória. Mas você mantém em poder da consciência aquilo que é próprio dela, isto é, o cumprimento das suas próprias funções.
Pergunta: Onde fica o corpo em tudo isso?
Professor: Pois é, é isso que é o eu, o eu é corpo, o eu não é mais o núcleo da consciência, ou a consciência não é mais o núcleo do eu. Para você poder pensar o eu, você tem que pensar justamente nessa pluralidade de forças em relação, com ponto, constelações ou hierarquias entre forças. Você tem que pensar o eu como se fosse uma sociedade, uma sociedade que funciona a partir de pactos, de aliança e de resistência. Portanto, este eu que você fala é necessariamente ficcional, é uma ficção, é uma ficção lingüística; ao falar “eu” você opera uma síntese, então o famoso conceito sintético, que gera a ilusão de uma unidade, lá onde nenhuma unidade existe. A unidade é apenas o efeito a nível da consciência desta acomodação.
Comentário: Hobbes vai entender que o sábio tem liberdade; e a liberdade dele é de conhecer as determinações corporais; esse mecanismo é exatamente da vontade.
Professor: Isso é bem do Nietzsche, porque a sabedoria consiste justamente em conhecer tanto quanto possível as suas próprias determinações. Não como uma faculdade livre.
Comentário: Não é livre-arbítrio, mas a liberdade de conhecer esse mecanismo mesmo que é o ato volitivo.
Professor: Tanto quanto possível, ou seja: jamais conhecer integralmente. É exatamente isso; em resposta a Camila eu disse: do que a consciência está privada é da sua ilusão de onipotência, ou de onisciência, ou de transparência, se quiser. Significa dizer que a consciência é um nada, significa…
Bom, eu quero ver se eu consigo, pelo menos, entrar um pouquinho no 20, gente, senão eu vou ficar com a minha consciência muito pesada…
Sei que o nº 19 é um texto muito complexo e é muitíssimo rico, mas eu acho que, toda essa idéia da ilusão gerada a partir da lógica da linguagem, vai se explicitar no nº 20. Então, esta unidade, este algo, este eu ampliado que é o corpo, justamente por causa da sedução da linguagem vai se transformar num eu simples, vai se transformar num eu sujeito, e exatamente como sujeito de qualquer proposição, suporte de predicados, a gramática atuando a nível da organização mesma das nossas impressões; nós percebemos em última instância segundo as sugestões às quais nós somos, de alguma forma, induzidos pela lógica da nossa gramática. Então, nós falamos de coisas, de atributos de coisas…
A grande originalidade de Nietzsche é que estas categorias da gramática e da lógica não são, como para Kant, princípios e conceitos transcendentais, mas eles são históricos, são culturais, são etimológicos, na verdade.

Ao seu sentimento prazeroso de ser o que manda, aquele que quer ajunta, assim os sentimentos de prazer dos instrumentos que executam, que têm êxito, das serviçais “subvontades” ou sub-almas. Nosso corpo, com efeito, não é mais do que uma estrutura social de muitas almas. O efeito sou eu.

Vejam que inversão incrível. Na verdade, o nosso corpo não é senão a estrutura social de muitas almas. Vale dizer, cada uma das nossas células é ao mesmo tempo alma. E que cada uma de nossas células é ela própria volição. Todo o nosso corpo é um tecido de volições. Vale dizer, todo o nosso corpo é esta correlação de força, que se expressa em cada um dos nossos atos volitivos conscientes.
Comentário: É a mesma história das perspectivas, então?
Professor: É exatamente isso. É a mesma coisa. Para que o nosso corpo se configure como unidade, é preciso que uma ou algumas perspectivas se apresentem como dominantes. Então, aquilo que faz do nosso corpo uma unidade organizada, é o mesmo princípio que faz da nossa alma ou da nossa psiquê uma unidade organizada. Veja, Amnéris, que precisamente o pressuposto dualista que distingue psíquico e corporal, que distingue, por conseguinte, espiritual/intelectual e corporal, é precisamente isso que está sendo colocado em questão. Ou seja: o eu psíquico é exatamente o efeito de todos esses ajustamentos entre as diferentes instâncias, que ocorre tanto a nível da psiquê quanto a nível do corpo. Aliás, a organização da psiquê não é senão uma extensão desta mesma organização, que é o corpo. A psiquê é, na verdade, um sistema ou subsistema dentro desse sistema geral que é o corpo. Então, isso que está sendo chamado aqui de sub-alma ou subvontades, são exatamente estas instâncias dentro do psíquico, essas instâncias diferentes dentro do psíquico, que se colocam em relação de hierarquia, de mando e de obediência; a em relação de poder entre os diferentes órgãos e os diferentes tecidos.
Comentário: Então, alguns órgãos e alguns tecidos que têm uma ascendência sobre os outros.
Professor: Isso, como o cérebro, por exemplo.
Pergunta: E quando há células que não querem obedecer, que se revoltam e geram um câncer, por exemplo.
Professor: Isto. É perfeitamente compreensível em termos de Nietzsche. É exatamente isso que acontece. Não somente uma revolta como qualquer tipo de subversão de uma relação de poder estabelecido.
Comentário: É exatamente o que Humbeto Eco falar no Pêndulo de Foucault. É exatamente esse conceito.
Professor: É verdade. Agora, veja, o mais importante na minha opinião, é que o eu não é colocado como unidade substancial, mas justamente como efeito; o eu é efeito das relações de poder. Isso aqui é uma antecipação, a meu ver, absolutamente explícita de toda a obra de Michel Foucault. Aliás Foucault é absolutamente consciente disso. Quer dizer, o sujeito é uma criação do poder.
O que Nietzsche faz é dar a ela uma forma absolutamente clara, e sobretudo em estreita oposição a toda tradição da metafísica. E aqui, vocês percebem, que ele escolhe o adversário a dedo: Descartes, Kant e Schopenhauer. Nós fizemos todo esse percurso para chegar exatamente até aqui.

Ocorre aqui o que ocorre em toda coletividade bem estruturada e feliz, que a classe governante se identifica com os êxitos da coletividade.

Então, aqui está claro o paradigma da relação de poder por excelência, isto é, a relação política. A classe dominante, a consciência, se identifica com o quê? Com os êxitos da coletividade. A consciência é justamente um efeito de relações de poder. Na medida mesmo em que a comunidade, isto é, esta multiplicidade organizada como um, na medida mesmo em que esta coletividade bem estruturada tem êxito, a consciência se identifica com esse êxito, e se dá a si mesma o nome de eu. Então, ela identifica a si a própria coletividade, a própria organização social. Então, a consciência empresta a isso o seu nome, chama de eu; ela identifica como si mesmo, na verdade, o resultado bem sucedido desta organização.

Toda a volição consiste simplesmente em mandar e obedecer sobre a base, como dissemos, de uma estrutura social de muitas “almas”:

Portanto, nós não somos uma psique, nós somos várias psiques. E nós somos uma psique estruturada socialmente, ou seja, disposta sob a forma da hierarquia, da estrutura.

por isso um filósofo deveria se arrogar o direito de considerar a volição em si, desde um ângulo moral – entendida a moral, desde logo, como doutrina das relações de domínio em que surge o fenômeno “vida”. –

Porque todo ato volitivo já expressa uma relação de poder, a vontade está imediatamente colocada sob o domínio da moral; moral entendida aqui, exatamente, como doutrina do poder. E o que expressa a moral? Expressa as relações que tornam possível o fenômeno vida, ou seja: a moral é uma expressão de condições de vida.

Aforismo 20 de Além do Bem e do Mal

Que os diversos conceitos filosóficos não são algo arbitrário, algo que se desenvolva por si, mas que cresce em relação de parentesco mútuos, que, ainda que em aparência se apresentem de maneira súbita e caprichosa na história do pensar, formam parte, no entanto, de um sistema, como formam todos os membros da fauna de uma parte da terra – isto é algo que definitivamente se denuncia na segurança com que os filósofos mais diversos cumprem, uma e outra vez, um certo esquema básico de filosofias possíveis.

Isso é de uma atualidade absolutamente fora do comum. Nietzsche não está se referindo aqui apenas à filosofia segundo o nosso entendimento, mas ao conjunto de nosso saber especulativo ou teórico; então, os diferentes conceitos filosóficos, os mais importantes, mais fundamentais, não são arbitrários, mas guardam uma relação sistemática da mesma natureza que a relação sistemática entre os membros de uma determinada flora ou fauna, isto é, aquilo que aparece da maneira mais visível é como os filósofos realizam sempre um mesmo esquema de filosofias possíveis. Então, tudo se passa como se você tivesse certos esquemas possíveis de constituição de teorias e a sucessão da história da cultura não fosse senão o preenchimento desses esquemas de pensamentos possíveis nas mais diferentes épocas.
Pergunta: Mas sem conhecer a lógica?
Professor: Ao contrário, a conexão que é determinada exatamente pelo parentesco entre os diversos conceitos. É a mesma coisa quando você tem uma fauna, é óbvio que cada uma das espécie está articulada à outra por uma rede cerrada de relações. Então, Nietzsche vai dizer: se você examina os principais conceitos da filosofia verá que eles se encontram numa mesma rede cerrada de relações que as diversas espécies de uma mesma fauna; e é exatamente por isso, que se você observa a história do pensamento no Ocidente vai verificar que a cada época tem sempre a repetição de um mesmo esquema de filosofias possíveis e que os filósofos, invariavelmente, repetem ou preenchem esse esquema de filosofias possíveis. A mesma coisa como as diversas espécies de uma fauna, você tem – embora, os indivíduos que fazem parte dessas espécies pereçam -, você tem sempre, a cada nova geração, o preenchimento desse mesmo esquema de espécies possíveis no interior de uma mesma fauna. É como se os diferentes conceitos estivessem em relação entre si da mesma forma que as diversas espécies de uma mesma fauna.

Submetidos a um feitiço invisível, voltam a percorrer uma vez mais a mesma órbita, por muito independentes que se sintam uns dos outros com a sua vontade crítica ou sistemática,

Por mais que os filósofos tenham a consciência da sua própria independência, na verdade, orbitam sempre, com as suas teorias, ao redor de um eixo, ou de um núcleo, que eles não determinam, mas que determina precisamente o seu percurso.

algo existe neles que os guia, algo os empurra a se sucederem a uma determinada ordem, precisamente aquele inato sistematismo e parentesco dos conceitos.

Então, esta órbita que as filosofias traçam se determina também do ponto de vista da sucessão histórica, de tal maneira que os diferentes sistemas de filosofia se constituem internamente e se sucedem uns aos outros, sempre no mesmo sentido, num sentido orbital que é determinado em função de um eixo, desse algo neles que é esse inato sistematismo dentro dos conceitos.
O pensar dos filósofos não é de fato tanto um descobrir, mas um reconhecer, um recordar de novo, um voltar para trás, um repatriar-se até aquela distante e antiquíssima economia global da alma da qual havia brotado em um outro tempo aqueles conceitos.
Essa expressão economia global da alma é extremamente importante, na medida em que indica que todos os sistemas de filosofia se determinam justamente a partir de uma espécie de acervo conceitual básico, fundamental, que constitui essa economia global da vida anímica. E é em torno desse dispensário, ou desse acervo de conceitos, que se constroem os mais diferentes sistemas de filosofia.

Filosofar nesse aspecto é uma espécie de atavismo do mais alto nível.

Atavismo por que? Porque, na verdade, filosofar não é tanto o descobrir, mas simplesmente o recordar desse acervo fundamental, com o qual todas as filosofias têm se construído.
Pergunta: É o pensamento platônico?
Professor: É o pensamento platônico da reminiscência, exatamente.

O assombroso parentesco de família de todo filosofar hindu, grego e alemão, se explica com bastante simplicidade. Justamente ali onde existe um parentesco lingüístico, se torna absolutamente impossível evitar que, em virtude da comum filosofia da gramática, quero dizer, em virtude do domínio e da direção inconscientes exercidos por funções gramaticais idênticas, tudo se ache predisposto, de antemão, para o desenvolvimento de uma sucessão homogênea dos sistemas filosóficos.

Ou seja: nós explicamos claramente porque é que o filosofar hindu, grego, alemão, judaico-cristão é parecido, precisamente porque aquilo que está na base de todo filosofar do ocidente é, em última instância, um parentesco comum de funções gramaticais. Dito de forma mais concreta: nós estamos, todos nós, mergulhados em uma raiz comum, que é constituída pelas funções gramaticais fundamentais das línguas hindu-germânicas; isto é, de certa maneira, porque nós somos provenientes de uma raiz lingüística hindu-germânica, as funções lógicas e gramaticais mais fundamentais dessa raiz lingüística determinam todo o nosso sistema de representação. Ou seja: a direção e o domínio destas funções gramaticais inconscientes determinam os rumos do pensamento. É exatamente ela que determina a órbita dos diferentes sistemas filosóficas, embora os filósofos tenham a impressão de que eles sejam, eles mesmos, inteiramente autárquicos em relação ao seu próprio pensamento.

Tudo se acha predisposto de antemão para o desenvolvimento de uma sucessão homogênica nos sistemas filosóficos, da mesma forma como parece estar fechado o caminho para certas possibilidades distintas de interpretação do mundo. Os filósofos da área lingüística uralo-altaico (no qual o conceito de sujeito é o pior desenvolvido), olharão com grande probabilidade… (Olha, a imensa ironia.) “o mundo” de maneira distinta que os hindus-germanos ou os muçulmanos. O feitiço de determinadas funções gramaticais é, em definitivo, o feitiço de juízo de valor fisiológico e de condições raciais. Tudo isso para refutar a superficialidade de Locke no que se refere à procedência das idéias.

A posição de Locke diz: Nada há no espírito que não tenha passado pelos sentidos. Nietzsche está querendo dizer aqui que o mundo não existe. O que existe são os sistemas de representação do mundo, isso que nós chamamos de real é a realidade tal como nós a estruturamos a partir do nosso aparelho cognitivo, cuja raiz última é lógico-lingüística. Então, para que nós possamos falar sobre o mundo, ou sobre algo no mundo, nós falamos segundo a maneira como nós estruturamos as nossas proposições. Portanto, porque nós temos uma sentença gramatical fundada na diferença essencial entre sujeito e predicado, nós construímos o nosso mundo sobre a base da diferença entre substância e atributo.
Comentário: Nós fundamos a metafísica.
Professor: Isso. Nós não escapamos jamais da metafísica. Porque a metafísica está enraizada no nosso discurso, na nossa condição de falar. Ou seja: ao estruturamos a menor das nossas proposições como, por exemplo, ao dizer: a água é fria; o livro é azul; nós já trazemos aqui na estrutura da sentença gramatical, a diferença entre sujeito e predicado, entre substância e atributo, entre causa e feito. Os nossos compromissos ontológicos estão todos eles já pré-elaborados ou pré-figurados na estrutura gramatical das nossas sentenças. Isso significa que nós olhamos o mundo pela ótica da nossa lógica e da nossa gramática, isso que nós chamamos de “o mundo” não tem nenhuma subsistência fora dessa lógica.
Comentário: Essa interpretação é violenta a isso que se chama realidade e lhe dá um estatuto.
Professor: Claro. Essa interpretação constitui, institui essa realidade. Não existe um real prévio a essa organização
Comentário: Quer dizer, os uralos-altaicos não têm interpretação.
Professor: Se eles não têm o conceito de sujeito, eles jamais dirão o livro é verde.
Pergunta: E quem são os uralos-altaicos?
Professor: É uma raiz lingüística, independente do mundo europeu, que se situaria na região dos Montes Urais. Não é necessariamente uma das línguas eslavas, é uma certa família delas. E eles não teriam uma metafísica semelhante a nossa, mas uma metafísica correspondente à gramática deles.
Pergunta: Mas isso não faz parte um pouco da singularidade de cada cultura? É uma coisa que entra nessa pluralidade também.
Professor: É exatamente isso. O que está no fundo sendo discutido aqui é o seguinte: não existe um mundo senão a partir de perspectivas que estruturam um real. Isso só é possível por meio do discurso, por meio da linguagem. Aliás, só é possível por meio do logos, logos não significa outra coisa a não ser: palavra.
Comentário: Isso é para neutralizar a pretensão de Kant de que a lógica seria para o universo todo, não só a Terra. Se alguém em Marte fosse pensar, pensaria com as categorias dele.
Professor: Vocês chegaram agora, exatamente aonde é a última camada da filosofia de Nietzsche, quer dizer, todos aqueles nossos compromissos, como por exemplo, a possibilidade de uma distinção entre o que é real e o que é aparente, está exatamente colocada em questão, porque não existe real senão um real que nós estruturamos a partir da nossa linguagem.
Tudo é ficção e, na verdade, nós acreditamos que este real do qual nós falamos é o real em si.
Pergunta: As linguagens que não são hindu-européias são excluídas dessa metafísica, então, o chinês também.
Professor: O chinês, por exemplo, tem uma metafísica completamente diferente, mas é outra metafísica. Por exemplo, é uma metafísica que você não tem, por exemplo, o conceito de substância. Agora, veja se você consegue pensar se você fizer abstração do conceito de substância. Simplesmente você não pensa, pois o nosso conceito de substância é o nosso conceito identificador por excelência; é a nossa coisa, é o nosso isto. Não dá para pensar sem ele e não se consegue falar, se você não supuser a diferença entre o sujeito e predicado.
Comentário: Então, pensando assim, essa maneira de imitar as coisas orientais, tais como fazer yoga e todas essas práticas orientais é meio que macaquear a realidade. É tentar entrar em contato como uma outra metafísica, que não corresponde, que não diz nada para nós.
Professor: Para Nietzsche, sem dúvida. Porque se você depois for falar disso, você vai falar certamente segundo as categorias do teu discurso que é ocidental.
Comentário: Mas não precisa ser só ocidentais, ele coloca os hindus junto com essa metafísica da gramática.
Professor: Os hindus certamente. Vejam: o que ele está querendo mostrar é que, em termos muito gerais e críticos, todos os nossos principais conceitos do mundo ocidental são repetições de esquemas culturais que você encontra na Índia, na Grécia e na Europa. O idealismo alemão é tão parecido com os sistemas filosóficos hindus, porque é a mesma estrutura gramatical, é a mesma raiz lógico-gramatical.
Pergunta: O que Nietzsche diria da globalização? Nasce um sujeito na China, depois vai estudar na Inglaterra, depois ele vem morar o Brasil, depois ele volta para … sei lá…
Professor: É exatamente isso. Eu acho que Nietzsche é extremamente contemporâneo por isso, porque à medida em que você destrói as culturas e as diferenças entre as culturas, você está preparando justamente o caminho para isso que você chama globalização e que Nietzsche chamaria, provocativamente, de rebanho universal. Você estabelece que há uniformidade mesmo, a uniformidade universal. Todos são iguais, todos comem no MacDonald’s. O que aconteceu? Simplesmente você apagou a diferença entre as culturas e entre os indivíduos, aliás indivíduos, já nem existe mais, porque se tratando da mesma matriz, tudo é a mesma coisa; assim, nós somos, na verdade, apenas peças descartáveis infinitamente substituíveis. É uma imensa maquinaria.
Comentário: O que permanece é a gramática que vai passando de geração para geração.
Professor: É nós universalizamos planetariamente a nossa gramática. Os chineses, os japoneses, hoje precisam saber a nossa língua, se eles quiserem fazer computação. E como nada ocorre senão pela via da informática… Ou seja: isso é razão instrumental em escala planetária.
Pergunta: Isso dá o poder para consciência, não dá?
Professor: Nossa! Mortal.
Pergunta: Indo por este caminho da gramática compreende-se que só existe a multiplicidade e não tem nada que dá base. Uma vontade de poder, uma unidade primeira que articulasse a diversidade é esse o caminho que você faz. Ou seja: só existe a multiplicidade, porque você faz esse viés pela gramática nessa estruturação. Por isso a vontade de poder não subsiste como unidade.
Professor: Não pode subsistir. Não há unidade a não ser ficcional.

AULAS SOBRE NIETZSCHE – 4/5

4ª aula

Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP


Introdução
Hoje nós vamos entrar em uma questão central, decisiva, para compreensão aprofundada do problema que nós estamos examinando e espero termos a oportunidade de fazer uma explicitação tão clara e tão exaustiva quanto possível desse nº 19; espero não cansá-los muito com um certo tipo de jogo de vai e vem; no comentário que farei desse aforismo, vou voltar com alguma insistência a certas questões que nós já vimos na análise dos aforismos e dos fragmentos anteriores. Mas essa repetição não é simplesmente um amor obstinado pela repetição em si mesma, mas acho que nós teremos a oportunidade privilegiada de ter diante dos olhos, de forma muito viva, determinados tipos de procedimento que Nietzsche utiliza. Ou seja: gostaria de mostrar para vocês, com uma certa abundância de detalhes, como é que Nietzsche trabalha, precisamente nesta questão. Qual é a tática ou o procedimento que ele usa; e para que possa isolar esse procedimento, precisamos vê-lo em ação em alguns momentos, para poder, comparando os dois textos, mostrar como é o mesmo procedimento que está sendo usado. É por isso que vou ter de voltar para Fragmentos, que nós já examinamos. Eu tinha dito a vocês também, que toda essa questão que nós estamos vendo, na verdade, todo o nosso curso, tinha por objetivo a desconstituição da unidade do sujeito fundada na unidade da consciência, que desembocava em Nietzsche, em sua raiz última, numa filosofia da linguagem, numa crítica da linguagem. E hoje nós vamos nos encaminhar decisivamente nessa direção e, se conseguirmos dar conta de tudo aquilo que eu me propus para hoje, nós vamos ver esta ancoragem da crítica da subjetividade, da crítica do eu, na análise da linguagem, que é uma coisa extremamente contemporânea. Boa parte da nossa reflexão filosófica atual está voltada para uma análise da linguagem, para uma crítica da linguagem. Estou me referindo agora não apenas à boa parte da tradição da filosofia analítica, mas também à grande parte da chamada linha hermenêutica de interpretação, que se funda nesta exigência prévia de uma análise da linguagem, de uma crítica da linguagem, como o modo próprio de se dissolver pseudo problemas, ou seja, como é que uma crítica da linguagem pode evitar que nós nos envolvamos com problemas que não são problemas, são simplesmente aparências de problemas. De certa forma, portanto, o que quero dizer aqui é que pode-se encontrar nesse aspecto particular da filosofia de Nietzsche, uma espécie de antecipação daquilo que vai ser a discussão filosófica dos nossos dias.
Aforismo 19 de Além do Bem e do Mal
Bom, então, comecemos pela análise do aforismo nº 19.

Os filósofos costumam falar da vontade como se esta fosse a coisa mais conhecida do mundo, mais ainda Schopenhauer deu a entender que a vontade era a única coisa que nos era propriamente conhecida, conhecida por inteiro, de todo, conhecida sem subtração nem acréscimo.

Bem, as primeiras frases do texto nos remetem a relação entre Nietzsche e Schopenhauer; e aparentemente nós estaríamos, então, num outro domínio de investigação, que não aquele que nós vínhamos examinando até aqui. Nós, no fundo, nos dedicamos a examinar a relação Nietzsche-Descartes, Nietzsche-Kant, Descartes-Kant… Por enquanto não vimos nada relativamente a Schopenhauer. Eu quero mostrar a vocês que, se Nietzsche no aforismo 17 e nos outros aforismos anteriores, naqueles Fragmentos Póstumos que nós examinamos, se ele tratou do problema do pensamento e, mais particularmente ainda, da unidade subjetiva fundada na imediatidade a si da consciência, na substância pensante, agora vai examinar a questão com base na vontade. O que estabelece a ponte, aqui, entre pensamento e vontade ou, se vocês quiserem, Descartes e Kant de um lado, Schopenhauer do outro, é, para Nietzsche, sempre a mesma questão, é que se Descartes e Kant pensavam a substância ou o pensamento sobre o ponto de vista da unidade, se a unidade do sujeito se fundava no pensamento, seja a modo cartesiano da substância pensante, seja a modo kantiano da síntese originária da percepção, Schopenhauer está em busca da mesma coisa, isto é, Schopenhauer também quer uma unidade, e esta unidade ele vai buscá-la precisamente na vontade. Então, assim como, para Descartes, era o cogito, o “eu penso”, quem estabelecia o princípio de unidade, lá se encontrava o que Nietzsche está chamando de a única coisa propriamente conhecida, a coisa inteira, sem acréscimo e nem subtração, Schopenhauer não vai encontrar isso no pensamento, mas vai encontrá-lo na vontade. E vou, entre parênteses, de forma muito breve, tentar mostrar, porque é que, para Schopenhauer, esta unidade não pode ser dada no pensamento. Antes de fazer isso quero deixar claro para vocês qual é o elemento de ligação, porque o próprio Nietzsche não deixa isso claro aqui. Nós estamos sempre, de certa forma, gravitando em torno do mesmo problema, o da unidade, onde reside a unidade: de um lado no pensamento, de outro na vontade; mas no fundo a categoria básica, aquilo que está sendo buscado, aquilo que se trata de encontrar, de descobrir, é precisamente a unidade, a unidade fundante do sujeito.
Pergunta: Posso colocar só uma coisinha? O Christopher Türcke, ele fala da unidade, em Nietzsche, a partir da vontade de saber; e a partir daí derivando a idéia de uma multiplicidade, mas ele aceita sem problemas que Nietzsche tem uma metafísica.
Professor: Mas isso é muito problemático. Nós vamos verificar aqui o horizonte último dessa metafísica e mostrar até que ponto Nietzsche pode ir e o que é que ele pode dizer, em última instância, e a partir de que limite ele não pode dizer mais coisa nenhuma. A partir de que limite a sua crítica da metafísica necessariamente tem que se deter como que diante da sua última fronteira. Este tipo de trabalho Türcke faz em parte, não completamente. Acho que nós vamos ter oportunidade de caminhar, boa parte desse percurso, supondo a leitura do Türcke entre outros comentadores; não sei quantos que vocês chegaram a ler, mas nós vamos avançar um pouco mais. Então, peço a vocês um pouco de paciência, uma forte dose de benevolência, mas acho que a gente chega até lá.
O que gostaria de ver, por exemplo, e agora já começo a fazer os meus saltos para trás, é que se vocês forem no texto dos Fragmentos de Nietzsche, quando ele se referia a Descartes, na página 10, ele vai dizer: “Pensa-se, logo existe algo pensante”. Aqui, desemboca a argumentação de Descartes, mas não é a realidade de um pensamento que ele queria, pois ele queria, para além da imaginação, atingir uma substância que pensa e imagina; quer dizer, Descartes queria encontrar algo de real, algo de efetivamente existente, uma substância, ou seja, isso que o nosso texto aqui está chamado “algo por inteiro”, conhecido integralmente, sem nenhuma distorção. Como é que Descartes conseguia obter isso, que poderia ser conhecido sem nenhuma distorção? Quando eliminava todo e qualquer tipo de conteúdo do conhecimento e se reportava unicamente à forma do conhecimento, à pura forma do pensamento. Ele dizia: independentemente de qualquer tipo de conteúdo do objeto do pensamento, tudo aquilo que eu penso pode ser falso, mas eu não posso duvidar do pensamento enquanto pensamento, porque duvidar do pensamento significa exercer um ato do pensamento, e, por conseguinte, duvidar disso significa reafirmar o próprio pensamento. Portanto, eu que penso, enquanto penso, sou; eu sou uma substância cuja essência ou natureza consiste no pensar. Aqui está algo, diz Descartes, essa substância do pensamento, que eu não posso negar sob pena de reafirmá-la. Então, Descartes encontrava aqui a realidade da qual ele não precisaria nem acrescentar e nem subtrair coisa nenhuma, porque ela lhe dava ao mesmo tempo uma espécie de indicativo de realidade plena, ou seja: um conhecimento de que ele não poderia duvidar de forma nenhuma. Isto que o Nietzsche chama aqui de não apenas o pensamento, mas uma substância.
Muito bem, nós vimos como Kant, na crítica que faz a Descartes, desconstitui a certeza dessa substância. Kant vai dizer: Não, não há nenhuma substância. O que a proposição “eu penso”, “eu sou”, me dá é simplesmente a forma vazia da consciência, essa função de síntese que eu tenho que supor desde que haja qualquer pensamento; para que haja pensamento há que haver a unidade da consciência, mas eu não tenho nenhum objeto, eu não tenho propriamente nenhuma substância, nenhum dado, nenhuma coisa dada na proposição “eu penso”. E Schopenhauer vai dizer, mais ou menos, o seguinte: “Não, quando eu digo eu penso, eu não encontro nenhuma substância, nenhuma coisa em si mesma. O que eu encontro quando eu digo eu penso? Ou aquilo que Kant já havia dito, isto é, a pura forma da consciência, a unidade de síntese, a unidade transcendental, mas nenhum objeto; ou se eu encontro o objeto, se eu tenho alguma experiência do meu eu, enquanto eu sujeito do pensamento, este eu que eu me represento como pensando, é uma experiência empírica que eu tenho de mim mesmo.”
Então a experiência que eu tenho a respeito da minha própria existência, é exatamente da mesma natureza que a experiência que eu faço em relação a todo e qualquer outro objeto; ou seja: experimento a mim mesmo como um objeto qualquer; tenho percepção de mim mesmo, como tenho percepção de qualquer outro objeto. O que significa dizer, em última instância: eu me represento a mim mesmo. Ora, se eu me represento a mim mesmo, então aquilo que a experiência de mim mesmo me dá não é eu tal como sou enquanto coisa em si, mas tal como eu me represento, isto é, eu enquanto elemento da representação. Logo, a experiência do eu, a percepção, a auto-percepção, não me dá nenhuma coisa em si, mas apenas representações que tenho de mim mesmo, por meio do meu sentido interno. Assim como as representações do sentido externo me dão objetos no espaço, a representação do sentido interno me dá a representação de minha própria existência no tempo. Então, eu não me apreendo tal como eu sou, digamos assim, enquanto realidade em si independentemente da representação, eu me apreendo enquanto realidade representada, isto é, no tempo. Ora, como o tempo é uma forma da sensibilidade, então o que eu tenho de mim mesmo são percepções fenomênicas e não percepção de uma realidade independente da própria percepção. Logo, o auto-conhecimento não me dá uma realidade sem subtração e nem acréscimo; a percepção não me dá uma realidade plena independentemente do sujeito cognocente, a experiência que eu tenho de mim mesmo fornece simplesmente fenômenos, como o conhecimento que eu tenho dos outros, dos demais objetos. Schopenhauer vai dizer: Bom, se a auto-reflexão, ou seja, se o conhecimento que eu tenho de mim mesmo enquanto substância pensante ou enquanto eu pensante não me dá nada mais do que fenômeno, será que eu posso ter acesso àquilo que não é fenômeno? Ou seja: aquilo que seria o “em si”, independentemente da representação? E Schopenhauer vai dizer sim. Só que isto não pode ser dado pelo pensamento, mas sim pela vontade. Então, no querer, na experiência do querer, da vontade, eu tenho acesso aquilo que é propriamente a coisa em si ou a essência do mundo.
Pergunta: Isso através da intuição?
Professor: Da intuição. Na verdade, a experiência, chamemos assim, por meio do que, eu tenho o acesso aquilo que eu efetivamente sou, exatamente enquanto vontade, e não enquanto representação.
Pergunta: O que é que ele entende por vontade?
Professor: Vontade não enquanto eu me represento um objeto qualquer, como objeto de uma aspiração ou de um desejo, mas a vontade é exatamente aquilo cuja materialização é o meu próprio corpo. Ou seja, o corpo é, tal como nós o vemos, objetivação da vontade. A vontade se faz objeto no corpo. Ora, isso significa para Schopenhauer, que em todos os atos particulares da vontade, ou seja: do ponto de vista das carências corporais e representacionais também, se expressa sempre esse mesmo movimento, essa fratura interna da vontade, que se caracteriza precisamente como vazio, como ausência, que tem que ser preenchida; como uma carência que tem que ser suprida, mas cujo suprimento é absolutamente impossível. Por que? Porque essa fratura interna ou essa carência é impreenchível; todo e qualquer objeto pelo qual eu satisfaça um desejo particular ou singular, na medida mesmo em que eu o satisfaço, esse desejo se repõe sobre uma outra forma, sobre uma outra modalidade.
Um Sofrimento … Metafísico
Comentário: Por isso que a vida é um sofrimento…

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AULAS SOBRE NIETZSCHE – 3/5

3ª aula

Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP


Introdução
Passemos direto ao número 17. Vocês devem se lembrar que eu passei a vocês um texto de um fragmento que eu traduzi avulsamente, eu acho que todos vocês têm essa tradução. Este texto é uma versão preparatória desse aforismo número 17. Em boa medida ele coincide com o aforismo número 17, mas evidentemente ele é uma versão preparatória. O curioso em Nietzsche é que, às vezes, as versões preparatórias são mais claras do que o texto definitivamente publicado. Isto corresponde a uma maneira muito peculiar de Nietzsche lidar com os seus próprios textos. Ou seja, Nietzsche é um pensador e ao mesmo tempo um escritor que gosta de produzir determinados efeitos de estilo, e um desses efeitos de estilo é, na verdade, não apresentar os seus pensamentos de uma forma absolutamente inequívoca, ou seja, apresentá-los de alguma forma ambígua. Existem efeitos de fachada nos textos por Nietzsche publicados que enganam muito; as pessoas menos atentas ficam presas nas fachadas e realmente perdem aquilo que está nos bastidores do texto. Enquanto que nos textos que são versões preparatórias, ele mostra, ilumina esse bastidores; então alguns deles ficam muito mais simples, mais claros para você ler um texto não publicado na versão preparatória do que um texto publicado. Um dos objetivos de eu ter trazido este fragmento para vocês é exatamente esse, para vocês perceberem as diversas camadas de elaboração do texto que Nietzsche faz até a sua definitiva publicação. Esse é um efeito absolutamente voluntário e visado, se vocês pensam, por exemplo, que o subtítulo do Assim Falou Zaratustra: é um livro para todos e para ninguém, ele tinha plena consciência de que os escritos não seriam completamente entendidos ou inteligíveis no seu tempo. Portanto, a frase clássica que ele escreve no final da vida, na sua autobiografia: “Eu nasci póstumo”, quer dizer, meu pensamento não é para o meu século é para daqui alguns séculos. Isso é muito interessante, no caso dele, porque esse estilo de escrever é algo que ele cultiva com maestria. Se vocês lerem o prefácio de Para a Genealogia da Moral, ele vai dizer o seguinte:

“Os meus escritos são compostos de tal maneira que interpretá-los exige uma faculdade muito especial, que os homens modernos não têm, uma faculdade de ruminação; para entender os meus escritos precisa ser de alguma forma vaca, isto é, precisa ter capacidade de ruminar e perder tempo com eles”

Comentário: Ele tem toda a razão. É tão desconcertante a gente ouvir isso, porque li e fiquei tão abismada, que eu não conseguia achar nada, então fiquei ruminando.
Professor: Ele diz: especialmente nós homens modernos temos a ânsia do tempo, quer dizer, nós estamos o tempo todo apressados e entendemos, por conseguinte, pela rama, pela superfície. Agora, para entender os meus escritos é preciso ser capaz de ruminação, de mastigar, devolver, voltar a mastigar, etc. Então, é por isso que muitos são os exemplos de textos que são definitivamente publicados numa versão que não é tão clara quanto as versões preparatórias.
Comentário: Por um outro lado teríamos de entender que o pensar não é a função principal de todas as pessoas e que um indivíduo, que não é tipo pensamento, tem uma grande dificuldade de ficar ruminando pensamentos, de trabalhar com pensamentos e que esses indivíduos vão por outros caminhos que não o do pensamento.
Professor: Nietzsche tem isso muito claro para ele; quer dizer, de fato somente algumas pessoas teriam condição de se apropriar inteiramente dos escritos, mas isso não somente dele, mas de qualquer texto teoricamente denso, porque, para ele, pelo menos – se a sua teoria tem sentido ou não, isso é uma outra coisa – o tempo do pensamento é um tempo próprio, a temporalidade do pensamento é uma temporalidade, digamos, sui generis, e esse é o grande truque da modernidade: consiste justamente em esterilizar o pensamento por meio da destruição do seu pressuposto temporal de maturação. Quer dizer então, que não é por acaso que o mundo moderno é mundo da mídia, o mundo da imprensa, o mundo da opinião pré-fabricada, mas precisamente por isso não é o mundo do pensamento, não é o tempo da reflexão. E de fato acho que, desse ponto de vista, Nietzsche tinha toda razão, nós depois da revolução industrial e, sobretudo, depois da ampla difusão da indústria cultural, de fato nós perdemos, em grande medida, a capacidade da reflexão e do pensamento original. Os gostos são pré-formados, as opiniões são pré-formadas, os gêneros são pré-formados, a ponto de hoje em dia a mídia escolher, por exemplo, nosso vocabulário. Dependendo da forma como você escreve, como você se expressa, você não encontra espaço absolutamente nenhum em órgão de comunicação, se não usar o vocabulário da moda, simplesmente você não é ouvido.
[Nota: Houve neste momento uma discussão sobre se o acesso total aos escritos de Nietzsche é facilitado pelos indivíduos introvertidos ou não. E parece que isso independe um pouco do tipo de tendência da psique e depende muito mais de se permitir fazer a experiência do pensamento, ou seja, mergulhar de fato na interioridade de si para buscar a si mesmo e não ser conduzido pela mídia. É isso que Nietzsche está propondo.]
Professor: Há uma frase de um texto tardio de Nietzsche que diz o seguinte: “Eu não sei o que significa uma verdade objetiva, todas as verdades são para mim verdades sangrentas”. No fundo, para usar outra imagem do mesmo período, se você não escreve com seu próprio sangue, a sua relação com aquilo que você escreve, pensa, e eventualmente divulga, é uma relação simplesmente exterior e artificial. E não é exatamente esse o tipo de leitor ideal para Nietzsche, pois, para ele, o leitor ideal é aquele que, não necessariamente concorda com aquilo que lê em um autor, mas que realmente assimila, do ponto de vista das suas vivências mais profundas, aquilo que lê. Ou seja, aquele para quem o problema da verdade, o problema da autenticidade numa teoria, não é simplesmente um problema lógico.
Comentário: Às vezes ele faz uma provocação, porque ele rompe com qualquer idéia de previsibilidade, ele é muito imprevisível. Eu não tinha lido antes e então você vai completamente leiga neste caso, mas é inteiramente imprevisível e desmonta todas as tuas verdades e não só elas, mas também sua maneira de pensar e de argumentar. É muito desconcertante… Quando eu passava naqueles pontos que seriam, politicamente, os mais incorretos, ele fala de homens, mulheres e judeus, aquela coisa de louco, eu não conseguia nem ficar na chamada, entendeu? Então, veja, não dá para entrar numa interpretação literal, que muitas vezes é a maneira mais fácil de dizer que ele era conservador… etc. É tão desconcertante!…
Professor: É verdade. O primeiro efeito que Nietzsche produz e, talvez seja o mais devastador, é este de intranqüilizar mesmo, de desestabilizar aquelas trilhas habituais do pensamento, isso realmente desarruma a casa.
Comentário: Completamente. Eu não conseguia achar nada, a não ser ler.
Aforismo 17 de Além do Bem e do Mal
Professor: Bom, podemos começar aqui no 17 com essa observação acerca do estilo apenas para introduzir.

“Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: mas que este “isso” seja precisamente o velho e decantado “eu” é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma “certeza imediata”. E mesmo com “isso pensa” já se foi longe demais; já o “isso” contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo. Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: “pensar é uma atividade, toda a atividade requer um agente, logo -“. Continuar lendo

AULAS SOBRE NIETZSCHE 2/5

2ª aula

Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP

Fragmentos Póstumos (Parágrafo 40(21)) (Cont.)
Se eu não me engano, nós não tínhamos terminado a leitura desse fragmento. Estou na página nove.

“Ponto de partida: do corpo e da fisiologia: por quê? Nós obtemos a correta representação da espécie de nossa unidade subjetiva, a saber, como governantes à testa de uma comunidade, não como ‘almas’ ou ‘forças vitais’; do mesmo modo, da dependência desses governantes com relação aos governados e às condições da hierarquia e divisão do trabalho como possibilitação simultaneamente das singularidades e do todo.”

Quer dizer, o problema aqui é precisamente o corpo sendo tomado como ponto de partida, isto é, o corpo fornecendo o modelo propriamente da unidade do sujeito. Então, imagino que devem estar suficientemente recordados disso, que tanto para Descartes quanto para Kant, o ponto de partida era a unidade da consciência entendida como intelecto, enquanto que, precisamente para a toda a tradição da metafísica, da psicologia racional, esses atributos – simplicidade, unidade e imaterialidade – era precisamente aqueles que caracterizavam a teoria tradicional da alma ou do sujeito. Percebam que o ponto de partida que Nietzsche toma aqui representa uma inversão da metafísica tradicional. Não se trata de unidade; pelo contrário, trata-se de multiplicidade; não se trata de imaterialidade, ou se vocês quiserem, espiritualidade, pelo contrário, trata-se da física, da questão física do corpo. Então, o corpo é tomado na sua materialidade, na sua multiplicidade constitutiva e em especial na sua complexidade. Então, são as imagens, a fisiologia entendida como organização do corpo e, por outro lado, essa metáfora da subjetividade ou da unidade subjetiva, pensada como corpo e como polis, como comunidade organizada.
Pergunta: Isso que ele chama de governantes e governados?
Professor: Isso. A idéia de uma unidade política, precisamente como uma organização política é uma unidade. Você tem o um, mas esse um é, na verdade, composto de uma multiplicidade. Você tem governantes, governados, mas governantes e governados compõem um único organismo, um único corpo, ou seja, uma comunidade.
Pergunta: Ele estaria se referindo também à cabeça e ao corpo?
Professor: Isso. É extremamente oportuna a sua observação porque essa frase quer dizer exatamente isto: hierarquia e divisão de trabalho, possibilitação simultânea das partes e do todo; então, da mesma maneira como você tem o corpo, a cabeça e os membros, e a cabeça tem uma função diretora em ralação ao restante do corpo, a função de determinar a orientação geral, por exemplo, o sentido da atividade do corpo, da mesma forma um governante traça o regime do governo. Porém, isso não significa dizer que o governante ou a cabeça seja possível autarquicamente, ela é na verdade definida pela sua função no interior dessa organização. Então, ela cumpre uma parte do trabalho comum e a função que ela cumpre é dependente do todo, e o todo é garantido precisamente pela divisão do trabalho. Ou seja, assim como numa sociedade você tem o governante; esse governante é responsável pela manutenção e pelo progresso da comunidade, mas esse governante não poderia absolutamente nada sem aqueles a quem ele governa, que por sua vez também se beneficiam das diretrizes gerais do governo. É exatamente esse o tipo de unidade que Nietzsche diz que é a unidade subjetiva. Então, a cabeça seria a consciência. Veja, a consciência é metaforicamente expressa como uma espécie de governante dentro de um estado; ele governa, traça direção, dá as pautas mais gerais da vida em comum, mas evidentemente não é onipotente. Esse governo é garantido precisamente pelas diversas alianças que são mantidas dentro do todo estado. Da mesma forma como a consciência não é onipotente em relação ao restante da vida corporal.

“Do mesmo modo, como as unidades viventes – (por unidades viventes entendam aqui simplesmente organismos) – permanentemente surgem e morrem e como ao ‘sujeito’ não pertence eternidade; de que também no obedecer e comandar se expressa o combate e de que à vida pertence um cambiante determinar fronteiras de poder.”

Ou seja, a unidade do sujeito é semelhante à unidade de qualquer organismo. Entre os diferentes órgão e as diferentes funções existe uma permanente tensão, e essa tensão faz com que as fronteiras do poder, quer dizer, com que os diferentes ajustes no interior de cada unidade orgânica varie permanentemente. Nada é estabilizado definitivamente desde que se trate de uma unidade vivente, ou seja, de um organismo.
Pergunta: Assim como também não é sempre a consciência que vai estar com a predominância?
Professor: Obviamente. O mais importante do texto é a partir deste ponto:

“Pertence às condições segundo as quais pode haver governo certa incerteza em que o governante deve ser mantido a respeito das disposições particulares e até das perturbações da comunidade.”

O que Nietzsche está dizendo aqui é que há de se valorizar positivamente, inclusive o não-saber, ou seja, a ignorância:

“Pertence às condições segundo às quais pode haver governo – (ele está tomando o governo aqui claramente como metáfora da unidade do sujeito) – uma certa incerteza em que o governante deve ser mantido a respeito das disposições particulares e até das perturbações da comunidade.”

Ou seja: para que a unidade subjetiva, pensada segundo o modelo do corpo, possa existir é necessário que a consciência ignore determinadas perturbações dos demais órgãos que compõem essa mesma unidade complexa. Ou seja, para que a consciência possa manter e fazer funcionar adequadamente a sua função diretiva é preciso uma certa ignorância; com a completa transparência ou com a consciência absolutamente onisciente muito provavelmente não haveria possibilidade de que pudesse exercer adequadamente a sua função.
Comentário: O que acontece num indivíduo hipocondríaco.
Professor: É justamente isso. Ou seja, uma certa ignorância de base é condição fundamental do exercício otimizado da função superior da consciência.
Pergunta: Essa ignorância de base é não ter o controle total, é admitir que tem partes que escapam?
Comentário: E funciona automaticamente. O hipocondríaco quer ter o controle de tudo. Ele quer dar conta conscientemente de todas as funções dos órgãos … se uma coisa escapa, ele quer saber porquê, pois ele não confia que o coração funciona automaticamente, que o intestino funciona…
Professor: Isso mesmo. Nós vamos ver isso de modo preciso em relação a esse texto que eu traduzi para vocês. Mas, percebam que isso daqui é uma coisa assim extraordinariamente diferente da posição iluminista tradicional, que justamente apostava o máximo possível na completa transparência da consciência.
Comentário: Como se a consciência tivesse a total hegemonia!…
Professor: Exatamente. Quanto, na verdade, esse ideal de completa transparência é ele próprio posto como uma figura da ilusão? A consciência tem a ilusão dessa onipotência, mas essa onipotência é justamente ilusória. Por quê? Porque a condição para que a consciência possa se exercitar é essa ignorância que terá de ser mantida a respeito do funcionamento geral do corpo, basicamente.

“Em resumo: obtemos uma apreciação também para o não-saber, o ver por alto, o simplificar, o falsear, o perspectivo. O mais importante, porém é: que nós entendemos o comandante e seus subalternos como sendo de idêntica espécie, todos sensíveis, volitivos, pensantes e que por toda a parte onde vemos ou adivinhamos movimento no corpo, nós aprendemos a ‘inferir’ uma vida complementar, subjetiva e invisível. Movimento é uma simbólica para o olho; ele indica que algo foi sentido, querido, pensado.”

Vejam, o mais importante neste texto aqui, com essa metáfora do governante e o governado, ele está, no fundo, se referindo à famosa oposição entre impulsos, afeto, paixões, racionalidade, inteligência, consciência, ou seja, ele está se referindo à diferença, à diversidade da vida psíquica. Porém, quando ele está dizendo que o mais importante é que o comandante, – isto é, a consciência, a razão – e seus subalternos, – isto é, os impulsos, os afetos – são de idêntica espécie. Ele está dizendo que aquilo que nós costumeiramente identificamos com o racional é também impulsivo, sensitivo, volitivo, ou seja, que na verdade a racionalidade é apenas uma transformação de um material pulsional, e que o próprio material pulsional, afetivo, etc é também pensante. Ou seja, existe um componente de pensamento nos impulsos assim como existe um componente pulsional no pensamento. É precisamente isso que o corpo expressa, ou melhor, dito de outra maneira, é exatamente isso que o corpo constitui como unidade. A unidade desta acomodação, desse arranjo, desse ajustamento entre os diferentes componentes da vida, tanto da vida somática, quanto da vida psíquica.
Comentário: O que Leibniz chama de mônadas.
Professor: Isso. Vindo da tradição leibnitziana você pode dizer que de certa maneira Leibniz também já dizia mais ou menos a mesma coisa. Acontece que, para Nietzsche, e agora isso vai ficar cada vez mais claro para nós, espero eu, a própria idéia de mônada como idéia de uma unidade simples é um equívoco da mesma natureza que o equívoco cartesiano da alma substancial ou da unidade originária kantiana da apercepção.
Pergunta: É possível o senhor repetir?
Professor: Sim. O Dornelis se refere à mônada leibnitziana. O que é a mônada? A mônada é o átomo, a unidade mínima, a unidade elementar que contém nela mesma todo o universo; a mônada é para Leibniz tanto apetitus, impulso, quanto percepção. O universo é composto de mônadas. Cada mônada contém, ela própria, na sua radical singularidade, o universo condensado. Ora, precisamente porque, para Nietzsche, a idéia de unidade, de unidade simples é ficcional, a metafísica leibnitziana vai estar presa exatamente no interior da mesma ficção. Agora, o mais curioso para mim, aliás, não só para mim, mas para todos os estudiosos do Nietzsche que se dedicam a essa questão, é perceber que a racionalidade é investida pelo elemento pulsional; da mesma maneira o elemento pulsional, também ele, é investido de uma certa racionalidade, a racionalidade não da pequena razão, mas da grande razão nos termos dos Desprezadores do Corpo que nós já examinamos.
Comentário: Mas eu acho que a racionalidade está investida de uma pulsionalidade através do poder, quando usada através das idéias como um poder.
Professor: Sem dúvida. Ou seja, para Nietzsche fica muito claro desde sempre como existe uma vontade de poder, inclusive nas formas mais sublimadas da atividade intelectual.
Comentário: Agora, este conceito que ele apresenta aqui é muito próximo do conceito de energia vital na homeopatia, é uma energia que circula pelo corpo…
Professor: Exatamente. O corpo é um sistema de energia, exatamente o que você está dizendo, e ele é esta tensão permanente em diferentes centros de força. Ou seja, você não pode ter a idéia de uma unidade simples se você parte da matriz ou do ponto de partida do corpo, porque o que Nietzsche está querendo passar aqui é que o corpo fornece uma indicação do tipo de sujeito que nós somos, na medida em que esse sujeito que o corpo é, é constituído a partir de múltiplos centros de força.
Comentário: Fica mais fácil pensar isso de um ponto de vista junguiano, porque para Jung, todas as partes são instintos, todos estão numa fonte comum, cada um tem a sua característica, mas é sempre o mesmo.
Professor: Para Nietzsche igualmente. Inclusive o pensamento lógico.
Comentário: Para Jung também, inclusive a cultura, a espiritualidade…
Professor: Exatamente. A raiz disso é, do ponto de vista do Nietzsche, e eu não sei até que ponto Jung o acompanha, é que não há dissociação, é sempre o mesmo elemento, se você quiser, a mesma materialidade do impulso que se ramifica, que se diversifica indefinidamente, infinitamente; então, ele se sublima como espiritualidade, mas ele se realiza materialmente como órgão do corpo e, sobretudo, isso que você está dizendo dos diferentes centros do corpo, cada célula do corpo é um centro de forças desse ponto de vista, ou seja, cada menor porção do organismo já carrega nela uma relação de tensão com todas as outras células. Então, é essa complexidade extrema que constitui a unidade do ser vivo, entendido como organismo. E o curioso é que isto é expresso em termos de movimento do corpo. Então, a idéia do movimento como simbólica para o olho, a idéia de uma espécie de semiótica ou semiologia, como sendo precisamente a maneira de interpretar aquilo que se passa a nível dessa grande unidade subjetiva que é o corpo. Ou seja, em todo o lugar que há movimento no corpo é preciso interpretar, é preciso descobrir aquilo que é querido, pensado, sentido.

“O questionar direto do sujeito sobre o sujeito e toda a auto-reflexão do espírito tem aqui os seus perigos: que o interpretar-se falsamente poderia ser útil e importante para a sua atividade.” Continuar lendo

AULAS SOBRE NIETZSCHE – 1/5

1ª aula

Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP

Aforismo 354 da Gaia Ciência
Lembro-me de ter dito a vocês, na semana passada, que passassem os olhos pelo aforismo 354, da Gaia Ciência, não sei se vocês tiveram ocasião de fazê-lo ou não. Então, eu pediria, por favor, se vocês não trouxeram o texto, que tivessem a paciência de prestar atenção na minha leitura. Bom, já faz muito tempo, mas eu me lembro que eu tinha dito a vocês, quando nós nos encontramos, acho que foi no segundo encontro, que este problema da unidade do sujeito em Nietzsche, pode ser tratado de diversos pontos de vista. E o primeiro deles ia ser aquele que, ao mesmo tempo, consistiria num intróito do nosso curso, que é aquele texto sobre Os Desprezadores do Corpo, sob a ótica da relação entre a grande razão e a pequena razão. Este ponto, ele ainda não está esgotado, pretendo voltar a ele ainda, mas depois desse percurso por Descartes e por Kant. Pretendo trabalhar agora com um outro aspecto da relação entre consciência e subjetividade, mas um aspecto que diz respeito à relação entre consciência e linguagem. Foi uma coisa, de certa maneira, difusamente presente em Os Desprezadores do Corpo, mas que a gente vai explorar nesse aforismo aqui. Esse aforismo que nós vamos ler, não é o único a respeito dessa questão, existem vários outros; eu vou tomar este aqui como ponto de partida, porque ele condensa, segundo minha opinião, muitos dos aspectos mais essenciais da discussão que Nietzsche faz a respeito. Então, o que nós vamos ver hoje é a questão da unidade subjetiva em Nietzsche, vista sobre o ponto de vista da relação entre consciência e linguagem. Nos nossos próximos encontros, aqueles para cuja preparação pedi que vocês lessem os aforismos de Além do Bem e do Mal, nós vamos ver ainda um outro aspecto, aspecto esse que diz respeito a uma relação mais estreita com aquilo que nós vimos nas análises de Descartes e de Kant. Portanto, o que vamos trabalhar agora, é uma espécie de pequeno refrigério, um tema menos árido, mas não menos essencial, na minha opinião, em relação a essa questão que estamos examinando.
Esse aforismo 354, faz parte do quinto livro da Gaia Ciência. Esse livro foi acrescentado por Nietzsche aos outros livros em 1886, portanto, é bem posterior à primeira edição do livro, a Gaia Ciência, e este parágrafo 354 é contemporâneo de uma série de questões que Nietzsche, em parte, já tinha trabalhado no Zaratustra, entre elas, aquelas presentes lá em Os Desprezadores do Corpo e boa parte continuará a trabalhar nas suas obras posteriores. Todo esse parágrafo 354 é dedicado então à famosa consciência. O aforismo se chama do Gênio da Espécie. Eu queria, antecipadamente, dizer que o título do Gênio da Espécie é uma provocação maldosa, que a gente vai ver no que consiste só depois ter lido o texto.

O problema do ter-consciência (mais corretamente: do tomar-consciência-de-si) só se apresenta a nós quando começamos a conceber em que medida poderíamos passar sem ela: e é nesse começo do conceber que nos coloca a fisiologia e a zoologia (as quais, portanto, precisaram de dois séculos para alcançar a premonição de Leibniz, que voava na sua dianteira).

Bom, em primeiro lugar qual é a premonição de Leibniz que ele se refere aqui? O fundamental na metafísica de Leibniz é que o homem, o ser humano não é só ser racional, ele não é só racionalidade, mas ele é também apetite, a famosa frase de Leibniz diz que o ser humano é perceptio, quer dizer, representação; e apetitus, isto é, vontade, desejo. Então, Nietzsche já começa aqui, provocativamente, estabelecendo um curto-circuito entre o tema do tornar-se consciente-de-si e o tema da fisiologia e da zoologia. Quer dizer, uma ligação que é efetivamente uma provocação. Ou seja, Nietzsche no fundo quer dizer o seguinte: se você observa a fisiologia e a zoologia verá que o problema da consciência é, na verdade, um problema simplesmente superficial. Ou seja, que aquilo que define o essencial do sujeito não é, como pretendia a tradição filosófica, a sua capacidade de tomar-consciência-de-si, mas a consciência precisamente é um fenômeno secundário. O problema do ter-consciência, é precisamente aquilo que se constitui como problema. Ou seja, por que é que nós tomamos consciência de nós mesmos, em que medida isto é importante, tanto mais quanto nós podemos perfeitamente bem passar sem isso. Então, a fisiologia e a zoologia aqui, na verdade, simplesmente comprovam aquilo que Leibniz já tinha dito. Ou seja, que a consciência não é o essencial do sujeito, da subjetividade; mas a consciência é, na verdade, uma ínfima porção da subjetividade. Você pode ter vida, tanto animal quanto humana, sem que necessariamente o fenômeno da consciência-de-si tenha que se apresentar.

Poderíamos, com efeito, pensar, sentir, querer, recordar-nos, poderíamos igualmente “agir” em todo sentido da palavra: e, a despeito disso, não seria preciso que tudo isso nos “entrasse na consciência” (como se diz em imagem).

Comentário: Recordar, aqui, fica difícil de aceitar isso.
Professor: Por que?
Comentário: Não sei. Recordar, sem consciência?
Professor: Sim.
Comentário: Não sei, fica…
Professor: Logo para frente Nietzsche vai dizer, um pouco ironicamente, que isso poderia soar muito estranho nos ouvidos de um filósofo mais velho. E esse filósofo mais velho é uma referência, é uma remissão à tradição, essa tradição que a gente procurou verificar. Por que? Porque para Descartes, não sei se vocês lembram, que o sentir, o querer, o imaginar e o recordar eram formas do pensar, e o pensar era o ato por excelência da consciência. Se vocês voltam aqui a Kant e vêem que a consciência pensada como uma apercepção transcendental, esse eu-penso que é precisamente o veículo, uma unidade originária tem que ser necessariamente postulada como condição de todas as representações. Vocês vêem a importância da consciência como origem ou unidade originária, que sintetiza ou que unifica, que dá unidade ao eu enquanto o eu do pensamento, enquanto sujeito do pensamento, inclusive, a memória. Ou seja, o que Nietzsche está pensando aqui, muito concretamente, é na memória como recolhimento e processamento de informação.
Pergunta: Ou seria a memória como instinto?
Professor: Por exemplo, o que significa simplesmente informação recebida, incorporada e processada…
Pergunta: Aí sim, eu acho que a memória como instinto, vamos dizer, um pássaro que tem um ritual, daí dá para entender…
Professor: Claro. Daí a referência zoologia e a fisiologia. O ouvido do filósofo mais velho, aqui não é só Kant, Descartes, mas é Platão. Porque a recordação, como você lembra muito bem, o que era para Platão? Era a sabedoria por excelência, era filosofia. Ninguém, no fundo, aprende coisa nenhuma, você só se recorda. Mas essa recordação…
Comentário: Mas o texto é muito irônico.
Professor: Mas esse texto é irônico o tempo todo. Inclusive, o Gênio da Espécie, eu repito, é uma maldade terrível, porque esta recordação é um ganhar consciência de coisas que você inconscientemente tinha vivido, que a alma já tinha vivido antes da encarnação, etc.; enquanto habitante do mundo das puras formas de Platão ou habitante do mundo das idéias.

A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, se visse no espelho: como, de fato, ainda agora, entre nós, a parte preponderante dessa vida se desenrola sem esse espelhamento – e aliás também nossa vida de pensamento, sentimento, vontade, por mais ofensivo que isso possa soar a um filósofo mais velho. Para que em geral consciência, se no principal ela é supérflua?

Ou seja, essa idéia da consciência como espelho, Nietzsche está se referindo à reflexão, à consciência como superfície de reflexão daquilo que se passa na nossa vida mental, na nossa vida anímica. Então, segundo ele, toda a vida, tanto mental quanto sensível, como volitiva, etc., seria perfeitamente possível sem que ela tivesse que refletir no espelho da consciência.

Ora, parece-me, se se quer dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua suposição talvez extravagante, que o refinamento e força da consciência estão sempre em proporção com a aptidão de comunicação de um ser humano ou animal…

Então, o primeiro elemento, isto é, o refinamento da consciência e a força da consciência é uma função ou está em relação ou em proporção com a capacidade ou aptidão da comunicação, de um animal ou de um ser humano.

…e a aptidão de comunicação, por sua vez, em proporção com a necessidade de comunicação: isto entendido, não como se o próprio homem singular, que é precisamente mestre em comunicar e tornar inteligíveis suas necessidades, fosse também, ao mesmo tempo, aquele cujas necessidades mais o encaminhassem aos outros.

Ou seja, a equação que Nietzsche monta aqui é entre a capacidade ou entre o refinamento da consciência e a capacidade de comunicação, por um lado. Por outro, entre a capacidade de comunicação e a necessidade de comunicação; mas essa necessidade de comunicação não pensado do ponto de vista do indivíduo singular ou do homem enquanto indivíduo, mas sim em função de cadeias de gerações, raças inteiras como ele vai dizer aqui.

Mas bem me parece ser assim no que se refere a raças inteiras e gerações sucessivas: onde a necessidade, a indigência, coagiram longamente os homens a se comunicarem, a se entenderem mutuamente com rapidez e finura, acaba por haver um excedente dessa força e arte da comunicação, como que uma fortuna que pouco a pouco se acumulou e agora espera por um herdeiro que a gaste perdulariamente.

Bom, então, o plano em que Nietzsche coloca a reflexão não é o plano singular dos indivíduos, mas é o macro-plano da sucessão das gerações, da cultura, da espécie, e a relação continua sendo mantida entre a necessidade, a indigência e, precisamente em função disso, o progresso da comunicação.
Comentário: Ele coloca, então, a consciência como a comunicação. Consciência surgiu da necessidade da comunicação.
Professor: Olha, eu vou dizer até uma coisa a mais, e há aqui uma outra maldade; se vocês lerem o texto aqui, a tradução do Rubens, que é realmente preciosíssima, vocês terão lá essas indicações que eu estou dando para vocês. Em alemão, você tem dois termos com os quais você pode se referir à sociedade e comunidade. Por um lado, Gesellschaft se diz sociedade, e Gemeinde é o termo usado para comunidade. Por exemplo, uma igreja se diz uma Gemeinde, ou um certo grupo se diz uma Gemeinde, é uma comunidade. Só que Gemeinde, Nietzsche usa, numa relação, como filólogo deve saber o que está falando, ele usa em relação ao adjetivo gemein, e gemein, quer dizer comum e vulgar. Ele faz um jogo de palavras extraordinário com isso em que ele liga como sociedade, enquanto comunidade, àquilo que é comum, vulgar, medíocre. Tudo sob esse eixo do Gemeinde, gemein, Gesellschaft, etc., que vai acabar por estabelecer uma espécie de ligação entre aquilo que é social, comunitário e comum, e daí com comunicação. Por conseguinte, comunicar-se é se tornar comum. E a consciência é precisamente o modo pelo qual você se torna comum. Vamos chegar a ler exatamente esse movimento aqui. E como é que você se torna comum? Pela linguagem.
Pergunta: Agora, comum, ele toma no sentido do pejorativo?
Professor: No duplo sentido. É um jogo consciente com a equivocidade de comum, comum no sentido daquilo que pertence a ambos, mas também no sentido daquilo que é medíocre.
Comentário: E é completamente oposto ao conceito do verbo divino … da palavra…
Professor: Claro. Ou desta consciência pensada como unidade originária, que nós vimos aqui. Aqui o que nós vamos assistir neste texto é a gênese simultânea, para Nietzsche, da consciência, da linguagem e da sociedade. Este texto aqui é no fundo isso. É isso que significa o Gênio da Espécie.
Comentário: Então, mas é uma crítica imensa.
Professor: Claro. E é a melhor forma de você fugir-de-si. Ou seja, a melhor forma de você, em boa consciência, esquecer daquilo que é absolutamente singular, daquilo que não pode ser comunicado, porque ao ser comunicado se torna comum.
Comentário: E aí entra o cristianismo…
Professor: Sem dúvida. Com toda essa equivocidade. Isso é proposital, não é por acaso, não é que ele não considerou, evidentemente que ele considerou; sobretudo, porque ao longo da tradição havia esse primado da consciência como fonte, sede, locus da racionalidade; pensar era igual ser consciente.
Comentário: E daí a linguagem.
Professor: Claro. É o Logos. A palavra. Aliás, a mesma palavra para linguagem e razão. Bom, vamos prosseguir um pouquinho. Agora, o interessante é que, precisamente nesta relação entre a indigência, a carência, a necessidade e o poder de comunicação, com isso se cria uma fortuna; o Rubens traduz Vermögen em alemão, por fortuna, a palavra quer dizer tanto a fortuna no sentido material, quanto poder no sentido de faculdade, capacidade. Ou seja, esta capacidade de comunicação é algo com que o homem se enriquece, e é precisamente esta capacidade de comunicação, que uma vez acumulada, tornada desenvolvida, é depois, com o progresso da cultura, gasta perdulariamente. Aqui, ele vai dizer:

(- e os assim chamados artistas são esses herdeiros, do mesmo modo que os oradores, pregadores, escritores: todos os homens que sempre vêm no final de uma longa série, sempre “nascidos tarde”, no melhor sentido da palavra, e, como foi dito, por essência perdulários).

Mas, então, é preciso que esta capacidade de comunicação seja…

Suposto que esta observação é correta, posso passar a suposição de que a consciência, em geral, só se desenvolveu sob a pressão da necessidade de comunicação. Continuar lendo

Kierkegaard & Nietzsche. Repetição a Novidade Categorial da História e da Fé.

Kierkegaard

Introdução.

                                                                                                            

Nietzsche

Carlos Eduardo Bernardo

Na memorável tese “Diferença e Repetição” (1968), o filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) propõe diversas leituras ousadas acerca do pensamento de Kierkegaard (1813-1855), Nietzsche (1844-1900) e Peguy (1873-1914) e outros – que não intentamos abordar neste escrito, mas que são igualmente gigantes do pensamento Ocidental. Naturalmente muito do que está posto nesta obra de Deleuze não é aceito de modo unânime por vários filósofos e, sobretudo por aqueles que têm se dedicado ao estudo das obras dos dois primeiros aqui mencionados, antes sua tese sofreu e sofre ataque constante em alguns dos principais elementos que a compõe, destacando-se a necessidade inerente de localizar e explicitar uma divisão ternária no pensamento e nos escritos dos autores, excetuando Kierkegaard, tal empreendimento requer um esforço intelectual, e ainda mais imaginativo – diriam alguns de seus críticos – que põe em lume à originalidade do autor. Outro ponto crítico é a prevalência dada por Deleuze ao tempo

Não ousaremos neste breve escrito aprofundar na rica e variada tese de Deleuze e tampouco nos afastaremos demasiadamente de suas linhas mestras gerais, nosso intuito é de pensar, de modo breve, um problema proposto no movimento O trágico e o cômico, a história, a fé do ponto de vista da repetição no eterno retorno[1]. Neste contexto o problema está na explicitação da novidade categorial da história e da na obra de Kierkegaard e Nietzsche, considerando suas semelhanças e dessemelhanças, assim como as vê Deleuze.

A Repetição na tese de Deleuze.

Deleuze faz da Repetição um tema central, para tanto propõe que esta seja tratada numa estrutura ternária, ou seja, constituída ou efetuada em três momentos que ele assim identifica: (1º) Trágico; (2º) Cômico Grotesco – & (3º) Drama. Correspondendo esta tríplice à clássica divisão temporal Passado; Presente & Futuro. Suas justificativas fundamentais para tal divisão não são oriundas da Filosofia ou da História, antes, são retiradas do âmbito da Arte. Deleuze, de modo semelhante a Hegel (1770-1831), faz uso do Teatro com seus principais componentes – o cenário, os atores, os atos e os gêneros teatrais – e através destes perfila a história da Repetição no âmbito da humanidade extraindo nas obras dos filósofos supra as bases conjecturais de sua tese.

Faz-se necessário apontar um dado que é muito interessante, porém não muito explorado, o problema da tríade na tese de Deleuze parece imiscuir-se no âmbito filosófico tendo como pano de fundo um conceito teológico, a saber, a Trindade; essa possibilidade de leitura, da obra deleuziana, se insinua ao observador atento à referência feita ao pensador Joachim de Fiore (1135-1202).

Dado as figuras usadas por Deleuze para abordar os três momentos da Repetição podemos detectar em sua teoria uma priorização o Tempo e a oposição entre a generalidade e a particularidade que joga com o valor da novidade inerente a cada Instante. Neste ponto temos que nos reportar a Kierkegaard não apenas como aquele que introduziu a Repetição no âmbito da reflexão filosófica existencial – ou Existencialista –, mas, sobretudo, como aquele que valorizou a novidade do Instante como núcleo de resistência à generalização.

Kierkegaard e o tema da Repetição.

            O filósofo dinamarquês tem o mérito de ser considerado o precursor das mais variadas correntes filosóficas de caráter existencial. Como é notório Kierkegaard propõe um itinerário espiritual ao homem em três estádios: o Estético, o Ético e o Religioso. Cada estádio caracteriza-se do modo que lhe é peculiar.

            Kierkegaard nos apresenta a Repetição nos estádios, condenando a repetição estética, pois, segundo ele, esta seria uma repetição da natureza, o esteta não conseguiria escapar ao poder de suas determinações instintivas[2].

A significação da Repetição para Kierkegaard está relacionada com a imutabilidade e a necessidade do ser, por este motivo Kierkegaard a aproximou da expressão aristotélica quod quid erat esse aquilo que o ser era[3] – ou seja, sua Repetição.

A Repetição ética se contrapõe a repetição estética no sentido de que esta põe ao individuo a possibilidade de escolha repetida de sua tarefa, escolha essa cujo emblema, o símbolo é o matrimônio.

 

 

 

 

Nietzsche e a Repetição além dos círculos do conhecido.

Duas concepções de Repetição ligadas à idéia do eterno retorno eram comuns nos dias de Nietzsche: (1º) repetição mecânica, simbolizada pela fala do anão (2º) a repetição cósmica, aquela da natureza, simbolizada pela fala dos animais. Nietzsche se opõe à ambas, sua proposta enigmática aponta para uma a Repetição que funda uma nova era, uma nova forma de viver no mundo, uma nova filosofia. Neste ponto partilhamos com Deleuze da noção de que esta Repetição, ou o eterno retorno é seletivo, somente aquilo que extravasa, que ultrapassa, que sobeja aquilo que é mais – ümber – é que retorna.

Por isto vemos no Prólogo[4] do Zaratustra a afirmação do retorno dos homens que são qualificados como ümbermensch – além homem.

Ora, essa Repetição ultrapassa o âmbito do conhecido, falar da Repetição nestes termos é falar de modo diferente e desconhecido dos homens de uma determinada época, Zaratustra veio cedo demais, Nietzsche igualmente!

 

Leitura do movimento: O trágico e o cômico, a história, a fé do ponto de vista da repetição no eterno retorno.

Como sabemos Deleuze propõe um movimento tríplice para a Repetição, o trágico correspondendo a primeira repetição, o cômico correspondendo a segunda e sua grande inovação, o drama correspondendo à terceira.  O trágico corresponde ao passado, o cômico corresponde ao presente, mas o drama corresponde ao futuro, a primeira síntese do tempo tem seu núcleo no hábito que relaciona os tempos passado e futuro numa dependência fundamental para sua efetivação no presente vivido.  A síntese seguinte, a segunda, da memória coloca no passado a limpidez que o qualifica enquanto algo puro. Já a terceira síntese opera como um ator ou autor, pois como este introduz no futuro a categoria da própria Repetição que já se pronunciara nas sínteses anteriores.

Bem, segundo Deleuze, o problema da Repetição coincide em Kierkegaard e Nietzsche, supondo haver em ambos a introdução de novidades categoriais que, embora distintas e diferentes, trazem algo analogamente novo.

Qual é o terreno palmilhado por Deleuze na elaboração desta perspectiva?

Ele não supõe qualquer identificação entre o Deus de Kierkegaard e o Dioniso de Nietzsche, mas supõe, baseado nas características intrínsecas ao pensamento de ambos, que as suas filosofias, na verdade, se constituem em ultrapassagens da própria filosofia, para ambos sua filosofia seria uma superação da filosofia.

Na crítica kierkegaardeana à concepção de Repetição presente em Hegel, está contida a afirmação contundente da necessidade do movimento real, para Kierkegaard o movimento dialético tão enfatizado nos círculos do hegelianismo era um movimento ilusório, um falso movimento. É fundamental também para Nietzsche a ultrapassagem deste movimento que em Kant (1724-1804) se caracterizará como movimento lógico. O problema destas duas concepções é que ferem o movimento ao transferi-lo para o âmbito metafísico, ele – o movimento – perde sua realidade e, portanto, não toca o homem naquilo que realmente é mais importante, sua alma – espírito. As concepções criticadas imiscuem o homem no âmbito da generalidade, por exemplo, por mais que ela se afirme ela não se põe ao nível do individuo, necessita, pois de uma mediação, Kierkegaard e Nietzsche põem a Repetição no âmbito do individuo. O geral é aquele que norteia as velhas concepções do antigo mundo Oriental, o sacrifício do primogênito era uma concepção geral à qual Abraão aparentemente submetera-se, todavia.

[…] O paradoxo da fé perdeu a instância do intermediário, o geral. Por um lado, a fé é a expressão do supremo egoísmo: realiza o terrificante, realiza-o por amor de si próprio; por outro lado é a expressão do mais absoluto abandono, actua por amor a Deus […] o cavaleiro da fé não encontra absolutamente nenhuma expressão do geral (concebido como moral) capaz de o salvar […]

(Kierkegaard, 1990,pp.92-93&96)

            No esquema de Deleuze, a categoria da fé, proposta por Kierkegaard, se opõe à repetição do hábito, correspondente ao passado e ao estádio estético, posto que este tenha por hábito a repetição de sua ação “livre” de busca por novos prazeres.  A fé também se opõe à repetição da memória, correspondente ao estádio ético, posto esta insere o homem no dever de sempre lembrar os preceitos morais e de viver sob a égide desta moral do gênero. A fé lança os dados no futuro, ela transvasa a própria Repetição, pondo-se como uma categoria a realizar-se escatológicamente.

Esta repetição suprema como categoria do futuro era por eles confiada à fé. Ora sem dúvida, a fé tem suficiente força para desfazer o hábito e a reminiscência, o eu dos hábitos e o deus das reminiscências, a fundação e o fundamento do tempo.

(Deleuze, 1988, p.163)

Já o problema em Nietzsche toma rumos um pouco diferentes, pois a categoria historial, segundo Deleuze, não poderá ser fundada na fé, antes encontra outro móbil que não está devidamente explicitado nos escritos de Nietzsche, já que, ainda conforme Deleuze, ele jamais chegou a escrever o terceiro ato.

Esse terceiro ato traria a lume o resultado do processo seletivo do eterno retorno, resultado que, em certo sentido, fora prognosticado por Zaratustra nas suas críticas às concepções comuns do mesmo. Todavia, o encontro entre o pastor e o anticristo é marcado por uma visada ao futuro, à inauguração de um novo teatro, de uma nova filosofia de um movimento que Kierkegaard diria ser o saltar ao qual Nietzsche certamente oporia o dançar.

Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, São Paulo, Editora Martins Fontes, 1999.

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, Rio de Janeiro, Editora Graal, 1988.

KIERKEGAARD, Soeren Abye. Temor e Tremor. Lisboa, Guimarães Editores, 1990.   

NIETZSCHE, Friedrich W. Assim Falava Zaratustra – Um Livro para Todos e Para Ninguém. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995.

 


[1]Vide in: Deleuze. Diferença e Repetição. Capítulo II – A Repetição para si mesma.

[2] Instintivas: Fazemos uso de um termo que, até onde sabemos não figura na obra de Kierkegaard.

[3] Devemos esta observação a Abbagnano – Dicionário de Filosofia. Verbete: Repetição.

[4] Temos em mente, principalmente o Prólogo 4º e 5º – Assim Falava Zaratustra.

Resumo da “Origem da Tragédia”, De Nietzsche

Feito pelo colaborador:

André Luiz Avelino

Graduando em Filosofia – FFLCH – USP

Helenos

Os gregos, na antiguidade clássica, se caracterizavam por uma sensibilidade exacerbada para o sofrimento e uma grande sensibilidade artística que se explica pela força de seus instintos. Por causa da força de seus instintos a vida dos helenos era rica em sofrimentos.

Perigo de vida – O Pessimismo.

A dolorosa violência da existência, devido à força de seus instintos, pode levá-los ao pessimismo, a negação da própria existência, o aniquilamento da vida. A materialidade deste pessimismo é a “sabedoria popular” ou “filosofia do povo”.

O Antídoto.

A arte grega tem origem nesta problemática. O mesmo instinto que cria a arte cria a religião. Os gregos criam a religião, os deuses olímpicos, para tomar a vida desejável. A criação da arte apolínea é expressão de uma necessidade, pois a vida só se torna possível pelas miragens artísticas. Para que o grego, povo exposto ao sofrimento, pudesse viver foi necessário mascarar os terrores e atrocidades da existência com os deuses olímpicos, da alegria e da beleza, filhos do sonho. A arte Apolínea é um modo de reagir a um saber pessimista do aniquilamento da vida. Os deuses olímpicos não foram criados como uma maneira de escapar do mundo em nome do além-túmulo, nem como forma de ditar um comportamento religioso baseado na ascese, na espiritualidade, no dever. A religião grega é expressão de uma religião de vida, inteiramente imanente, que diviniza (torna belo) o que existe. Para escapar do saber pessimista, o grego cria um mundo de beleza que ao invés de expressar a verdade do mundo, é uma estratégia para que ela não ecloda.

O Conceito de beleza.

Para os helenos beleza é medida, harmonia, ordem, proporção, delimitação, calma e liberdade com relação às emoções (serenidade). Contra a dor, o sofrimento, e a morte, o grego diviniza o mundo, torna-o belo, criando a beleza. Não existe belo natural, o belo é uma aparência (critica a Sócrates e a Platão). A beleza (aparência) é um fenômeno, uma representação que tem objetivo de mascarar, velar a verdade essencial do mundo – a Vontade, o Uno primordial.

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Nietzsche e o Preconceito dos Filósofos

Primeiras questões:

Admitindo que a verdade seja uma jovem mulher, pela história da humanidade se vê como os filósofos são inábeis e desonestos para obter a graça de tal ser feminino – ou das mulheres em geral – por meios dogmáticos. Para isto, Nietzsche dirá: “certamente ela não se deixou conquistar[1].

Mas, contrariamente à relação filósofo-verdade, a relação inversa, verdade-filósofo desde a muito tempo é correspondida. Pois, a verdade seduziu todo os filósofos, brotando neles a vontade de verdade.

Porém, se perguntará Nietzsche: “por que não uma vontade por mentira, incerteza ou a própria ignorância”? Qual é o valor desta vontade? Ou mesmo, qual o valor desta verdade em que gerações foram seduzidas? Mas propor tais problemas parece ser algo inusitado e há grande perigo em afrontá-los parecendo Nietzsche ser o primeiro. E ainda porque “talvez seja o maior de todos os perigos”[2].

Crítica ao Platonismo:

Na filosofia de Nietzsche, podemos identificar que um de seus primeiros passos é resolver os problemas que a história da filosofia deixou para os seus descendentes. Um destes é assumir a impossibilidade de uma coisa ter origem no seu contrário. Por exemplo, a verdade no erro e vice-e-versa.

A origem das coisas só pode estar “no seio do ser, do imperecedouro, do deus escondido, da ‘coisa in ‘se’”[3] e não na crença dos metafísicos na antítese dos valores.  Em outras palavras, não no Platonismo.

Assim, Nietzsche põe em dúvida a existência das antíteses e se elas mesmas não passariam de meras perspectivas. Ainda em “Humano Demasiado Humano” afirmará que na efetividade, não existem opostos. Todos vêem contrários, onde há apenas transições.

Reconstrução:

Desta forma, pensando nestes primeiros e primordiais erros da história da filosofia, a saber, esta vontade inquestionável pela verdade e a antítese dos valores, é que Nietzsche vê que é preciso desaprender tudo e reaprender.

Este “conhecer-se” não pode opor-se ao instinto, dirá o filósofo alemão, então,  quase todo o pensar consciente do filósofo é guiado pelo instinto, e todo instinto visa a conservação da própria vida. Mas até onde ele pode ir para favorecê-la?

A nova forma de pensar que visa esta filosofia é a de não negar a vida e, ainda, o de não renunciar aos juízos falsos, ou seja, “admitir o erro como condição da vida é rebelar-se contra os atuais conceitos de valor, e uma filosofia que a tal se atreve coloca-se por isso além do bem e do mal”[4].

Filósofos e vontade de potência:

Os sábios seres, que se proclamam filósofos, que percorreram toda a história, com facilidade se equivocam e se desviam do caminho, não sequer tocando o problema da veracidade. O que batizam como verdades absolutas são, sob a perspectiva de Nietzsche, preconceitos, idéias, sugestões, não passando de uma mera confissão de seus autores. O conhecimento aqui não passa de um instrumento para o impulso do homem, do filósofo que tende ao domínio e, por conseqüência, a filosofar.

Da mesma forma acontece com a Natureza, se supomos a máxima “viver segundo a Natureza”, ou seja, no fundo, “viver seguindo a própria vida”, não há como agir diferente. Porém, quando se propõe a decifrar os versos e entrelinhas da Natureza, se depara precisamente com o contrário, “autores maravilhosos e enganadores de vós mesmos”[5].

Com tanta vontade de verdade, o filósofo incorpora sua moral à Natureza, desta forma, contemplando falsamente a própria Natureza, ou vida. Faz de sua própria vida uma generalização do estoicismo com tanto esforço até não poder mais vê-la de outra forma. Tiraniza-se tanto a Natureza que, por sua vez, a Natureza assume e tiraniza o estóico. Mas, afinal, que é o estoicismo se não a tirania de si mesmo?

O filósofo ou estóico cria o mundo à sua aparência com seu instinto tirânico, com seu impulso que tende ao domínio, “a mais espiritual ‘vontade de potência’ da ‘criação do mundo’, a vontade da ‘causa primeira’”[6].

Europa: metafísicos x niilistas x perspectivistas:

E este é o problema que toda a Europa enfrenta, a saber, o do “mundo real e do mundo aparente”. Este continente está separado em alguns casos raros, os dos metafísicos, que preferem “um punhado de certeza a uma carrada de belas possibilidades”[7], e os niilistas, que preferem “um certo nada um incerto qualquer coisa[8].

Mas, contrariamente ao fluxo do pensamento europeu, que vangloria o “achado” ou a “invenção” da faculdade dos juízos sintéticos a priori de Kant, há ainda pensadores cheios de vida, que pronunciam contra a aparência a palavra “perspectiva”. Estes adeptos do perspectivismo, antes de se perguntarem, como Kant, se são possíveis tais juízos, se perguntam, “por que devemos acreditar neles”? Pois, de qualquer forma, nada os impede de serem falsos!

Dois grandes exemplos, segundo Nietzsche, foram Copérnico, que contra toda a evidência dos sentidos provou que a Terra não era imóvel, e Boscowitch, que “nos ensinou a abandonar a crença na ‘substância’, na matéria, no ´resíduo terrestre’ e numa partícula do átomo: este foi maior triunfo que na terra se obteve sobre os sentidos”[9]. Assim, declarando guerra também à “necessidade atomista”.

A própria vida é vontade de potência e seus instintos por auto-conservar-se se fundam em expandir o domínio de sua força, ou seja, em colocar mais de si no mundo, na Natureza, ou, ainda, na própria vida. Quanto mais se pensa que chega, cria ou acha a (sua) verdade, que não passa de uma perspectiva para Nietzsche, ele chega ao tão ambicionado patamar de metafísico, filósofo, estóico, porém, ao mesmo tempo, se torna também um enganador, um ilusionista em que o alvo e objeto são si mesmo, pois isto mesmo nega a própria vida.

O Problema do Universal, do Absoluto:

A física já não interpreta a natureza, ela a explica, se fundando na fé dos sentidos, “seguindo instintivamente o cânone da verdade de um sensualismo eternamente popular[10]. E, enquanto possui o caráter “explicativo”, não se questiona, apenas se apreende, se aceita sua universalidade quando é apenas uma perspectiva, podendo ser muito bem ainda, como dizem os pintores, uma perspectiva de rã.

Platão mesmo mostrava uma repugnância pela óbvia evidência dos sentidos, considerando como maior triunfo tornar-se dono dos sentidos. Porém, o físico por criar sua explicação da Natureza através de seus sentidos e universalizando-o como verdade, acaba por desapropriar-se de sua própria interpretação, de seu próprio domínio de poder, e cria uma física que, posteriormente, tiraniza os próprios físicos.

Em suma, o particular cria o universal por seu instintos de domínio e auto-preservação, mas, como efeito colateral, é subjugado pela sua criação, interpretação, vontade de potência.

Ademais, este não é apenas o caso do físico, mas de todos aqueles que foram seduzidos pelos encantos da verdade, por exemplo, os já citados filósofos.

O Problema da causa de si e da causa-e-efeito:

Mas ainda tudo isto decorre do desejo da “liberdade da vontade” do homem, que visa atribuir a si toda a responsabilidade por seus atos, desobrigando toda espécie de outro, desejando levantar-se pelos cabelos e ser “causa de si”, que Nietzsche julga ser

A mais formosa autocontradição que foi até agora pensada é uma espécie de estupro da lógica, é algo contra a natureza; mas o desmedido orgulho do homem chegou a envolver-se profunda e terrivelmente nessa coisa sem sentido.[11]

Se este homem por um lado, sendo causa sui, vem a ser a partir de si mesmo, por outro não podemos dizer que ele venha a ser de qualquer maneira, porque ele sendo causa de tudo que vem a ser sempre foi, uma vez que é sem princípio. Portanto, a causa sui implica dizer que o pretenso homem “vem a ser a partir de si mesmo” e também que “não vem a ser uma vez que sempre é”.

Mas, ainda, ao contrário deste homem causa de si, ainda há aquele que pensa não ter uma vontade livre, que não passa de um abuso de causa e efeito. Nietzsche afirma que não há “necessidades” ou “determinismos psicológicos” que validem o efeito de uma causa ou a causa de um efeito, para ele, “ali não manda nenhuma lei. Nós, nós somente, inventamos as causas, as sucessões, a relatividade, a necessidade, o número, a lei a liberdade, o motivo, o fim; e se misturamos às coisas reais este mundo de signos, como ‘em si’, continuamos fazendo mitologia, como sempre fizemos”[12]. Desta maneira, estas ficções designam apenas a compreensão, mas não “esclarecem”. Não será a hora do filósofo elevar-se sobre a gramática e declarar-se inimiga da fé dispensada aos governantes?[13]

Conclusão sobre a filosofia:

Assim, Nietzsche enfatiza sua interpretação sobre a filosofia, que suas idéias não devam ser arbitrárias ou causas de si mesmas, mas gerem-se em afinidade entre si e encham certo esquema fundamental das filosofias possíveis, das perspectivas. Pois, todo aquele que propor uma verdade, que criá-la, vê em erro a “necessidade” e o “calculável”, onde não pode haver ou ser regido por leis, mas por mesmo carecer em absoluto de lei, e toda força em todo o momento, alcança suas últimas conseqüências.[14]


[1] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 7

[2] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 12

[3] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 13

[4] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 15

[5] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 18

[6] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 18

[7] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 19

[8] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 19

[9] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 22

[10] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 24

[11] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 30

[12] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 31

[13] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 47

[14] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Editora Vozes. São Paulo. 2009. P. 32