“A contemplação de si e a Inação em Voltaire”

A contemplação de si e por si, como ato, é essencialmente imóvel. O que seria da humanidade, se não existisse um movimento dialético que superasse uma infertibilidade e uma imobilidade que condiciona o não agir objetivamente sobre uma realidade concreta?

Concebo a dialética como uma superação de imagens e conceitos falsos, que sendo sempre reafirmados, acabam por se congelar e cair em uma não ação, em um obscurantismo. O movimento dialético pressupõe assençoes e quedas, negações e afirmações em direção a um objeto supostamente verdadeiro, portanto justo ou injusto.

Voltaire, um pensador bastante polêmico (desde o século XVIII até os dias de hoje), com todo o seu cinismo e ironia, tem uma visão extremamente ativa e objetiva da filosofia, onde a inatividade e a imobilidade nao podem imperar. Em sua obra “Cartas Inglesas” afirmará o seguinte: “O que há de ser um homem que não age e que fica contemplando a si próprio? Não somente digo que seria um imbecil, inútil à sociedade, mas digo que não pode existir, pois o que contemplaria? Seu corpo, suas mãos, seus cinco sentidos? Ou seria um idiota, ou usaria tudo isso.”

Podemos perceber os movimentos dialéticos que encontramos na filosofia de Voltaire, em sua própria vida. O exemplo mais famoso dessa “ação filosófica” de Voltaire para superar as imagens e os conceitos falsos que imperavam em sua época (e ainda hoje), é o fatídico caso Calas.

O caso Calas

No dia 13 de Outubro de 1761, o senhor Calas e sua esposa encontram um de seus filhos enforcado, em uma barra de madeira, dentro de sua casa. Com a chegada da polícia, uma multidão aglomera-se do lado de fora da casa, quando alguem grita: “Marco Antonio foi enforcado por seus pais huguenotes (denominação dada ao protestantes franceses, em sua maioria calvinistas, por seus inimigos) porque se converteu ao catolicismo.”

Foi o começo dos rumores e dos falsos juízos de valor da cidade em relação ao caso. Todas as pessoas que estavam na casa foram presas e o processo foi levado até o Parlamento de Toulouse. O jovem morto começa a ser considerado um mártir dos católicos e uma paixão fanática toma conta da cidade.

Padres, civis e as irmandades religiosas exigem reparação, e sobre a pressão passional do público católico, o tribunal condena o pai à tortura e à morte, o irmão Pedro é banido da cidade e as irmãs são colocadas em um convento. Os bens da família são confiscados. A notícia chega aos ouvidos de Voltaire, que fica sem saber que partido tomar. Pede informações sobre o processo ao seu amigo D’alambert.

Voltaire fica bastante intrigado com o caso, pois reconhece sua importancia, pois se  Calas realmente for culpado, matou o filho devido ao fanatismo supersticioso, se Calas for inocente, então o tribunal nao foi neutro, laico, e agiu por motivos religiosos. O caso tomou Voltaire por completo, e através de sua investigação, conseguiu provas que indicavam que estavam diante de um gigantesco erro judiciário.

A filosofia de Voltaire sempre denunciou o fanatismo religioso, o perigo eminente das crenças supersticiosas e a cegueira dos que são tomados pelos discursos dos turiferários religiosos.

Munido de seu engajamento em relação ao desvelamento da verdade no processo jurídico, Voltaire fez um “escandalo” publicitário e voltou todas as atençoes para o caso. Chamou os membros da familia para interrogá-los, em Ferney (onde Voltaire morava na época). Escreve cartas às autoridades, mobiliza os grandes do reino, para atentarem ao fato da grande injustiça cometida.

Publica em 1762 uma “História de Calas” seguindo de uma carta com as assinaturas dos irmãos de Marco Antonio. O caso repercute-se em toda a França, e o povo de Paris começa a se movimentar. Em 1763, Voltaire publica o seu “Tratado sobre a tolerancia”, apresentando a causa dos Calas como a própria causa da humanidade. O cenário provocado por Voltaire é tão grande que o parlamento de Paris revoga a decisão do parlamento de Toulouse. Um ano se passa e o caso é julgado novamente, com a absolvição da familia, considerada inocente.

Voltaire sempre lutou, acima de tudo, pela busca da verdade e da justiça. Sua luta para “esmagar a infâmia” sempre foi concreta e ativa, afirmando os perigos da inação e do fanatismo. Conta-se que, quando o mensageiro trouxe a notícia de que a familia Calas fora inocentada das acusações, Voltaire emocionado, abraçou o mensageiro e disse: “É a filosofia sozinha que obteve essa vitória!”.

Podemos nos lembrar de outro personagem na história da filosofia, que procedeu parecidamente.

Sócrates, embora em contextos diferentes, adiquirindo seu saber negativo (pois negava os falsos conceitos que vigoravam na Pólis), e tempos depois, alcançando seu saber afirmativo (o conhece-te a ti mesmo, a teoria das idéias, a dialética alada de Eros…) ascendeu dialeticamente, rumo às formas puras e verdadeiras, como a justiça, o belo, a verdade(…). Ascenção obtida através do movimento e não da cristalização.

O movimento e a superação de falsas imagens, de sombras, é instrínseco à natureza humana, e à noção de filosofia. Algo sem movimento, não é, porque o que é, muda e o que não é, não muda. O não ser nunca será ser, e se a filosofia é alguma coisa, essa coisa é movimento.

Para compreender melhor a filosofia de Voltaire, segue bibliografia nacional:

Nascimento, Maria das Graças de Souza. Voltaire: A razão militante; São Paulo: Editora Moderna, 1993.

Nascimento, Maria das Graças de Souza. Imagens do materialismo nos contos de Voltaire,in Transformação. Publicações Unesp, vol.7, 1985.

Salinas Fortes, L. Roberto. O iluminismo e os reis filósofos. São Paulo, Brasiliense, 1981.

Chauí, Marilena. Três em uma, in Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo (Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty). São Paulo, Brasiliense, 1981.

Voltaire e Leis (das)

Voltaire

I

Voltaire conta uma ocasião em que uma família israelita de: pai, mãe, filha, filho, cozinheiro, lavrador e vinhateiro, e um capelão viajam mar a fora, mas acabam por ter sua embarcação afundada nas ilhas Maldivas.

Tendo o pai e mãe morrendo, o resto constrói barracas e se alimentam com provisões do barco e da ilha chamada Pedrabranca, esta, que é deserta. O Essênio chorava “talvez não restassem mais judeus, que a semente de Abraão ia acabar”.

Assim, o jovem judeu oferece sua irmã ao essênio, mas ele a nega, justificando-se pelo voto de nunca se casar, ou seja, pelo o que se legislou para tal.

Os outros eunucos não podendo fazer filhos, só restou o jovem judeu para o fazer, pedindo, então, a benção pelo casamento. O capelão se nega a servir ao incesto para a irmã por parte de mãe, se fosse de pai ainda ia, pois, estas, eram suas leis.

Mas, o jovem diz entender que seja incesta, porém, em Jerusalém, na ilha, onde nada existe, é perfeitamente permitido. Deste modo, ele acredita que as leis estão anexadas a seus povos, costumes, cidades.

O judeu casou-se com a irmã e teve uma filha. 14 anos depois a mãe morre, e o pai pede ao capelão para desposá-la. Este último se nega e se muda para a ilha do lado, não querendo ficar ao lado de um homem que faltava à lei – de Jerusalém -, enquanto que o judeu se casa com a filha para não reduzir à nada a semente de Abraão, mas poderia ter dito ao capelão que apenas segue a lei natural.

O essênio chega à ilha Attole povoada e civilizada, mas lá o fazem escravo. Dizem que era lei que todos os estrangeiros que abordassem a ilha seriam reduzidos à escravidão, protesta dizendo que não pode ser lei, já que não está escrito no Pentateuco. Mas, seu amo era muito bom e se afeiçoaram. Quando, um dia, assassinos apareceram para matar e roubar seu amo. Perguntaram aos escravos se estava em casa e se era rico, todos negaram.

Mas, o essênio entendia que a lei não permite mentiras, e disse a verdade, que o amo estava em casa e que era rico. Assim, seu amo morreu. O essênio foi acusado de trair seu amo, mas o essênio disse que por nada mentiria; e foi enforcado.

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II

Voltaire diz depois que, dirigindo-se a Versalhes para tratar de negócios, vê passar uma bela mulher acompanhada de outras. Pergunta a seu advogado quem é e acaba por saber que é a filha do Rei. Dizendo da hipótese dela ser rainha da França, logo, seu advogado lhe informa que é impossível, de acordo com a lei sálica, pois, mesmo o autor sendo desconhecido, acabou-se por adotar essa lei em terras não sálicas também, tendo esta lei que uma mulher não herdaria um chavo em terras sálicas.

Perdendo por unanimidade numa câmara do Parlamento, seu advogado lhe diz que se fosse em outra câmara o resultado seria inverso. Retrucando que “portanto, cada câmara, cada lei”, em reposta, o advogado disse que existem vinte e cinco comentários acerca do que é comum em Paris, por vinte e cinco vezes o comum é equívoco em Paris. Sabendo depois que na Normandia seria julgado muito diferente de Paris, foi para lá. E conheceu um jovem que desesperava por ter um irmão mais velho, pois, aonde se encontravam, a lei dava tudo ao primogênito. Voltaire deu-lhe razão já que estava habituado a onde vivia a partilhar tudo em igualdade, tendo, por vezes, os irmãos não se dando melhor.

Se as leis são como trajes, convenções humanas, não tem como saber como fazer um bom negócio. Um cidadão de Londres disse-lhe uma vez: “A necessidade faz as leis e a força impõe a sua observância”. Porém, quando questionado se a força não faria também as leis, ele diz que sim.

Podemos ver que, para Voltaire, é importante seguir as leis de cada lugar, pois levando em conta a diversidade humana nessas questões, por vezes, o que é legal em uma terra pode ser ilegal em outra. Então conhecer e respeitar essas leis pode dar vantagens e evitar prejuízos, como no seu caso no Parlamento e o essênio na ilha de Attole.

Mas, logo, observando as formas de organizações de alguns seres vivos, percebe que o humano, ao contrário das abelhas e formigas que têm as mesmas leis em qualquer lugar, se assemelha mais ao macaco, pois não parecem reunidos por leis fixas e fundamentais, e afirma que é devido ao dom da imitação, à ligeireza e à nossa inconstância que nunca nos permitiu ter leis uniformes e duráveis.

Resumo do Dicionário Filosófico de Voltaire. Capítulo Leis (das)