O livro VI se conecta ao V no momento em que todos concordam que o filósofo deve governar a cidade, pois ele conhece a essência das coisas; é mais capaz de guardar as leis e os costumes da cidade; é avesso à mentira; é moderado, justo, bom e dotado de uma alma superior.
Adimanto volta à “realidade” e diz a Sócrates que o filósofo na verdade é muito diferente do que se há dito até então. Ele é um ser extravagante, senão desonesto, e, ainda por cima, inútil para a cidade. Todavia, por justamente os governantes de “hoje” e a maioria da população não entenderem a essência que o filósofo conhece, pensam ser extravagante, inútil e tagarela: os papéis estão invertidos.
Desta forma, estas qualidades pejorativas que o filósofo possui pelo povo são nada menos que um engano. Pois, este ama a verdade, tem coragem, é generoso, tem facilidade no aprendizado e boa memória. De fato, é muito útil para a cidade. Estas qualidades pejorativas miram na verdade àqueles que apenas tem pretensão de serem filósofos, os philodóxos, que foi visto no último livro, os que têm uma mera opinião das coisas. Estes são os sofistas, mercenários do saber, que buscam mais o agrado da multidão que o encontro com a verdade. Sendo assim, é muito claro que os sofistas sejam adorados, enquanto o filósofo, odiado, uma vez que fala da essência que apenas poucos conhecem.
Interessante o fato de a crise da sociedade grega, dar à luz aos sofistas e aos filósofos, no entanto, estes últimos se encontram numa posição muito menos agradável. Pois, são alvos do orgulho ferido dos outros, sendo inventados contra si intrigas da vida privada e processos públicos, o que com efeito serve de empecilho para que governe e salve a cidade.
Então, resta a questão de Adimanto: qual dos governos atuais é adequado à filosofia? Sócrates responde com um retumbante: “nenhum!” E, ainda completa, por esta mesma razão que todos os governos se degeneram. Desta maneira, é preciso decidir uma maneira para a cidade se relacionar com os filósofos para não perecer.
Aqui começa uma crítica severa para a formação atual dos filósofos. Para Sócrates, ou talvez seja melhor dizer Platão aqui, é preciso de uma educação gradual desde a infância para dominar a educação do corpo até a dialética. Assim, no final de suas vidas teriam liberdade para não governar a cidade, mas para dedicar-se totalmente à filosofia.
A hostilidade para com o filósofo se deve aos maus filósofos ou falsos, que vivem se insultando e que visam apenas interesses individuais. Sendo que o verdadeiro filósofo visa transformar a cidade ao transformar as leis, visando a justiça, a beleza, a moderação e as virtudes. Por esta razão, é capital que se escolha bem os melhores guardiões, pois o governante deve conhecer dentre todas as coisas, o bem, já que todas as outras virtudes se tornam úteis a partir dele. No entanto, o que seja o bem não é algo unânime na discussão.
Entretanto, Sócrates julga que tratar sobre o bem é demais para a ocasião e se propõe a falar sobre o filho do bem, prometendo pagar a dívida sobre o pai posteriormente. Ele começa dissertando sobre os sentidos, mas em especial a visão, que precisa diferentemente dos outros, de um terceiro elemento para se efetivar: a luz![1]
O Sol é a causa da luz, mas não é o olho, nem a visão. No entanto, a visão é o mais solar dos sentidos[2]. O Sol é a causa da visão que pode ser vista por ela. No mundo das essências o Bem é o mesmo que o Sol para o mundo das coisas sensíveis.
Quando a alma se fixa em algo iluminado pela verdade e o ser, ela compreende, sabe e parece possuir inteligência; mas quando se fica no que está mesclado com obscuridade, no que vem a ser e deixa de ser, ela opina e fica turva, muda suas opiniões voluvelmente e parece privada de inteligência.
Portanto, o que concede verdade às coisas conhecidas e o poder de conhecer ao conhecedor é a forma (Idéia) do bem. E embora seja a causa do conhecimento e da verdade, também é um objeto de conhecimento. Tanto o conhecimento quando a verdade são coisas belas. Mas o bem é distinto deles e os supera em beleza. No mundo visível é com acerto que se considera a luz e a visão como solares ou semelhantes ao sol, mas é equívoco pensar que são o mesmo que o Sol, tal como aqui é acertado considerar o conhecimento e a verdade como semelhantes ao bem, mas equívoco pensar que um ou outra é o mesmo que o bem; este é ainda mais valioso.[3]
Ou seja, o que transmite a verdade às coisas é a essência do bem. O Bem não é algo solar, mas o próprio Sol. Daí a dificuldade de falar sobre o pai. Pois, apesar de a verdade e o conhecimento serem semelhantes ao Bem, não o são. Deste modo, é preciso ter uma idéia muito mais elevada do que seja o Bem, o pai da luz.[4]
Por fim, o princípio do mito da caverna é esboçado por Sócrates ao considerar que aqueles que estudam a partir de hipóteses e se utilizando dos objetos sensíveis, apenas se relacionam com as sombras das coisas, enquanto que aquele que aqueles que conhecem a partir de seu princípio adquirem uma inteligência plena das coisas. Sócrates dá o nome de entendimento ao que os geômetras e outros cientistas da área conhecem, algo intermediário entre a opinião e a inteligência. Sendo a ordem do maior para o menor, inteligência, entendimento, crença e opinião, pois o grau de clareza corresponde ao grau de evidência do seu objeto[5].
[1] Elemento este que será explorado no mito da caverna e muito bem discutido no texto de Gerard Lebrun, A Filosofia e sua história, no capítulo Sombra e Luz em Platão.
[2] PLATÃO, A República (Da Justiça). Edipro. São Paulo. 2006. p. 302
[3] PLATÃO, A República (Da Justiça). Edipro. São Paulo. 2006. p. 302-3
[4] Fato interessante aqui é que quando Glauco diz que “algo assim [o Sol e o Bem] não seria idêntico ao prazer”, Sócrates se exalta “Silêncio!” como se talvez tal idéia fosse desprezível. E logo depois Glauco diz em tom cômico “Por Apolo, que divina superioridade!” Glauco talvez tenha feito uma piada relacionando o Sol a Apolo. Mas logo parece ficar cada vez mais claro que Sócrates está incômodo de expor suas idéias a um possível ridículo (ou se desculpa por ter se exaltado). “A culpa é tua, pois me forçaste a transmitir-te minha opinião sobre isso”. PLATÃO, A República (Da Justiça). Edipro. São Paulo. 2006. p. 303
[5] PLATÃO, A República (Da Justiça). Edipro. São Paulo. 2006. p. 306