Do mundo fechado ao universo ridículo: Marcelo Gleiser e a monotonia dos cientistas que não sabem rir de si

Por Diego Azizi

Marcelo Gleiser é um grande cientista, um físico formidável que, tanto em programas de tv quanto em publicações destinadas ao público não especializado, divulga a ciência e as maravilhas de suas descobertas de forma acessível e apaixonante. Contudo, cai no velho clichê do “especialista quadrado” que fica irritado quando sua classe é ridicularizada, como se ela estivesse, inexoravelmente, imune ao riso.

Na coluna que escreveu para a Folha em 2010* (e descoberta por mim apenas recentemente), reconhece a projeção que os cientistas e acadêmicos estão tendo na cultura pop nos últimos tempos, tanto nos livros e no cinema quanto na televisão, mas ataca ferozmente a imagem que uma sitcom em especial cria sobre os cientistas. A referida série chama-se The Big Bang Theory, e conta basicamente a história de dois físicos, um teórico e um experimental que moram de frente para o apartamento de uma garçonete aspirante a atriz, fazendo com que a relação entre esses personagens proporcione, para cada um deles, novas formas de ver o mundo, com lições e aprendizados que apenas uma perspectiva diferente pode ser capaz de realizar. É a partir daí que se constroem momentos memoráveis na história da comédia televisiva.

Gleiser afirma que “a imagem do cientista é a de um quase pateta, incapaz de funcionar socialmente ou de ter relações interpessoais normais. Neuróticos, afeminados, completamente estereotipados, os cientistas são essencialmente palhaços. Todas as idiossincrasias que se espera do mais nerd dos cientistas afloram a cada episódio. Ou seja, a série usa uma imagem distorcida dos cientistas para criar situações de humor”.

Contudo, podemos identificar uma confusão de Gleiser, ao afirmar que a série usa uma imagem distorcida dos cientistas. Primeiro que ele opera uma visão “metonímica” da narrativa, tomando a parte pelo todo. Não há distorção, há apenas a construção de personagens que são geeks e também são cientistas. Não é a imagem, ou melhor dizendo, não é o conceito de cientista que está sendo construído pelo seriado, mas sim a descrição de que aqueles (e isso é particular e não geral) cientistas em específico, que também são jovens e geeks, são daquela forma. No seriado existem outros cientistas, outros professores na universidade que não são caracterizados dessa maneira. Basta acompanhar o seriado para constatar.

Mas mesmo que o seriado fosse construído de outra forma, generalizante digamos, Gleiser esquece aquilo que há muito tempo atrás (e que ainda funciona contemporaneamente) Aristóteles definiu como sendo a essência da comédia: a ridicularização.

O ridículo funciona como a provocação de uma paixão alegre que provoque riso em quem  assiste a comédia. Ela é “imitação de homens inferiores; não, todavia quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do que é torpe e ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente;”[1]. Portanto, a comédia é a imitação de atos ridículos, exageros daquilo que existe enquanto atitudes reais. Não é o cientista que é ridículo, mas as ações daqueles homens que possuem sua parcela de ridicularidade, que é exagerada para atingir o cômico. Gleiser, portanto, rejeita aquilo que Aristóteles descreve como sendo parte da essência do cômico.

O físico brasileiro, além de criticar a essência da comédia, gostaria que sua prática (a ciência) fosse heroicizada tal como alguns outros seriados fazem com os advogados ou os policiais que tratam especificamente de descrever romanticamente determinado ofício. “Em raríssimos casos, essas profissões são tomadas como veículos de humor. Ao contrário, os policiais, advogados e médicos são heróis, salvam vidas, resolvem casos complicados, prendem assassinos perigosos. O contraste, para quem tenta combater o estereótipo do cientista nerd na mídia, é doloroso”, afirma Gleiser.

Contudo, esquece que os cientistas já são enaltecidos e reverenciados na maioria das séries em que possuem certo protagonismo. Em Bones é a genial antropóloga forense quem geralmente descobre a chave para resolver determinado crime; em Numbers é um matemático quem ajuda a polícia, também, na resolução de crimes complicadíssimos; em Quantum Leap  um cientista constrói uma máquina do tempo e encara diversas aventuras; em Eureka, uma cidade construída em torno do progresso científico e cujo tema da ciência está presente em toda a narrativa, os ridicularizados são os não cientistas. Os exemplos aqui poderiam se multiplicar. O que fica claro é que em todas essas séries há elementos cômicos que, obviamente, utilizam o elemento do ridículo para produzir o riso.

Portanto, ao assistirmos comédias, o ridículo sempre está presente! Em Scrubs os médicos são bobos e infantis e, alguns, tem sérios desvios de caráter; em Reno911! os policiais estão longe de serem heróis, além do seriado ser um exercício de ridicularização radical, não apenas dos próprios policiais, mas também dos programas documentais (como Cops ou, no Brasil, Polícia 24h) que tentam captar a profissão em sua plena realidade; em Boston Legal, como sempre, os advogados são ridicularizados por suas atitudes nada louváveis e corruptas.

Portanto, caro Gleiser, o seu texto não vai contra o seriado The Big Bang Theory, e sim contra o próprio gênero cômico, que sim, está presente em todas as temáticas de todas as séries. Rir é rir do outro, enquanto os aspectos ridículos desse outro são radicalizados e enfatizados, mas, esse outro somos nós também. Como já dizia Nietzsche, na epígrafe de sua “Gaia Ciência” (a ciência alegre): “Moro em minha própria casa, nunca copiei nada de ninguém e rio de todo mestre que nunca riu de si também”.

Faça você, então, a sua ciência, da forma como magistralmente faz e deixe o cômico com quem sabe fazer, tal como Chuck Lorre e os atores da série, que fazem o que fazem como ninguém jamais fez, tanto para a comédia quanto para a ciência, levando a uma geração inteira de jovens que, ao rirem dos cientistas que tanto amam, acabam despertando uma paixão pela ciência que constantemente vai aumentando. Os prêmios escolhidos pelo público para a série e seus personagens nos provam isso. É possível rir e amar o objeto do riso, além de ser possível, também, desejar ser o objeto do riso.

“Mas certamente existem outros modos de fazer da ciência objeto dramático ou mesmo engraçado sem ridicularizar o cientista”. Sim, existem outras formas de fazer da ciência objeto dramático, e acima já citei, mas, sem o ridículo, meu companheiro, não há cômico.

Trágico é um texto que atinge o ridículo e não está nada perto de ser cômico, senhor Gleiser.


[1]    Aristóteles. Poética, V, 1449a. (Tradução de Eudoro de Souza. Col. Os Pensadores)

Rumi – [A morte]

“Morri como mineral e tornei-me planta,

Morri como planta e tornei-me animal,

Morri como animal e tornei-me homem,

Por que temer? Quando fui diminuído pela morte?”

Autor: Rumi (poeta sufi do século XIII)

Tradução: Paulo Salles

Rumi – [Não encontrarás]

rumi-10

Segura o manto de seus favores,

Pois ele logo desaparecerá.

Se o retesa como a um arco,

Ele escapará como flecha.


Vê quantas formas ele assume,

Quantos truques ele inventa.

Se está presente em forma,

Então há de sumir pela alma.


Se o procuras no alto céu,

ele brilha como a lua no lago;

entras na água para capturá-lo

e de novo ele foge para o céu.


Se o procuras no espaço vazio

lá está, no lugar de sempre;

caminhas para este lugar

e de novo ele foge para o vazio.


Como a flecha que sai do arco,

Como o pássaro que voa da tua imaginação,

O absoluto há de fugir sempre

Do que é incerto.


“Escapo daqui e ali,

Para que minha beleza

Não se prenda a isso ou aquilo.

Como o vento, sei voar,

E por amor à rosa, sou como a brisa;

Também a rosa há de escapar do outono.”


Vê como se eclipsa este ser:

Até seu nome se desfaz

Ao sentir tua ânsia de pronunciá-lo.


Ele te escapará à menor tentativa

De fixar sua forma numa imagem:

A pintura sumirá da tela,

Os signos fugirão de teu coração.


RUMI, Jalal ud-Din. Poemas Místicos Divan de Shams de Tabriz. Attar Editorial. Pp118-119

Obs: Os Poemas não possuem títulos. Os títulos do livro foram escritos pelo tradutor José Jorge de Carvalho

Friedrich Nietzsche – Vocação de poeta.

nietzsche-02

Vocação de poeta

Ainda outro dia, na sonolência
De escuras árvores, eu, sozinho,
Ouvi batendo, como em cadência,
Um tique, um taque, bem de mansinho…
Fiquei zangado, fechei a cara –
Mas afinal me deixei levar
E igual a um poeta, que nem repara,
Em tique-taque me ouvi falar

E vendo o verso cair, cadente,
Sílabas, upa, saltando fora,
Tive que rir, rir, de repente,
E ri por um bom quarto de hora.
Tu, um poeta Tu, um poeta
Tua cabeça está assim tão mal
– Sim, meu senhor, sois um poeta,
E dá de ombros o pica-pau.

Por quem espero aqui nesta moita
A quem espreito como um ladrão
Um dito Imagem Mas, psiu! Afoita
Salta à garupa rima, e refrão.
Algo rasteja Ou pula Já o espeta
Em verso o poeta, justo e por igual.
– Sim, meu senhor, sois um poeta,
E dá de ombros o pica-pau.

Rimas, penso eu, serão como dardos
Que rebuliços, saltos e sustos
Se o dardo agudo vai acertar dos
Pobres lagartos os pontos justos.
Ai, que ele morre à ponta da seta
Ou cambaleia, o ébrio animal!
– Sim, meu senhor, sois um poeta,
E dá de ombros o pica-pau.

Vesgo versinho, tão apressado,
Bêbada corre cada palavrinha!
Até que tudo, tiquetaqueado,
Cai na corrente, linha após linha.
Existe laia tão cruel e abjeta
Que isto ainda – alegra O poeta – é mau
– Sim, meu senhor, sois um poeta,
E dá de ombros o pica-pau.

Tu zombas, ave Queres brincar
Se está tão mal minha cabeça
Meu coração pior há de estar
Ai de ti, que minha raiva cresça!
Mas trança rimas, sempre – o poeta,
Na raiva mesmo sempre certo e mau.
– Sim, meu senhor sois um poeta,
E dá de ombros o pica-pau.

Friedrich Nietzsche – Do alto dos montes.

Nietzsche

DO ALTO DOS MONTES

Oh! Meio dia da vida! Época solene!
Oh! jardim de estio!
Beatitude inquieta da ansiedade na espera:
espero meus amigos, noite e dia,
onde estais, amigos meus?
Vinde! É tempo, é tempo!

Nã0 é por vós que o gelo cinzento
hoje se adorna com rosas?
A vós procura o rio,
Suspensos nos céus ventos e nuvens se alevantam
para observar vossa chegada
competindo com o mais sublime vôo dos pássaros.

No meu santuário coloquei a mesa:
Quem vive mais próximo das estrelas
e das horríveis profundezas do abismo?
Que reino mais extenso que o meu?
E do mel, daquele que é meu, que sentiu seu fino aroma?

Aqui estais, finalmente, meus amigos!
Ai! não é a mim que procurais?
Hesitais, mostrais surpresa?
Insultai-me é melhor! Eu não sou mais eu?
Mudei de mão, de rosto, de andar?
O que eu era, amigos, acaso não mais sou?

Tornei-me, talvez, outro?
Estranho a mim mesmo? De mim mesmo, fugido?
Lutador que muitas vezes venceu a si mesmo?
Que muitas vezes lutou contra a própria força,
ferido, paralisado pelas vitórias contra si mesmo?

Porventura não procurei os mais ásperos ventos
e aprendi a viver onde ninguém habita,
nos desertos onde impera o urso polar?
Não esqueci a Deus e ao homem, blasfêmias e orações?
Tornei-me um fantasma das geleiras.

Oh! meus velhos amigos, vossos rostos
empalidecem de imediato,
transtornados de ternura e espanto!
Andai, sem rancor! Não podeis demorar aqui!
Não é para vós este pais de geleiras e rochas!
Aqui é preciso ser caçador e antílope!

Converti-me em caçador cruel. Vede meu arco:
a tensão de sua corda!
Apenas o mais forte poderá arremessar tal dardo.
Mas não há nenhuma seta mortal como esta.
Afastai-vos, se tendes amor à vossa vida!

Fugis de mim!? Oh, coração, quanto sofreste!
E entretanto, tua esperança ainda se mantém firme!
Abre tuas portas a novos amigos,
renuncia aos antigos e às lembranças!
Fostes jovem? – Pois agora és mais e com mais brio.

Quem pode decifrar os signos apagados,
do laço que une com ua mesma esperança?
Signos que em outros tempos escreveu o amor,
que luzem como velho pergaminho queimado
que se teme tocar, como ele. Queimado e enegrecido!

Basta de amigos! Como chamá-los?
Fantasmas de amigos! Que de noite,
tentam ainda meu coração e minha janela
e me olham sussurrando:
Somos nós!
Oh! Ressequidas palavras, um dia fragrantes como rosas!

Sonhos juvenis tão cheios de ilusão,
aos quais buscava no impulso de minhalma,
agora os vejo envelhecidos!
Apenas os que sabem mudar são os de minha linhagem.

Oh! Meio dia da vida! Oh! segunda juventude!
Oh! jardim de estio!
Beatitude inquieta na ansiedade da espera!
Os amigos esperam, dia e noite, os novos amigos.
Vinde! É tempo! É tempo!

O hino antigo cessou de soar,
O doce grito do desejo expira em meus lábios.
Na hora fatídica apareceu um encantador,
o amigo do pleno meio-dia.
Não, não me pergunteis quem é;
ao meio-dia, o que era um,
dividiu-se em dois.

Celebremos, seguros de ua mesma vitória,
a festa das festas!
Zaratustra está alai, o amigo,
o hóspede dos hóspedes!
O mundo ri, o odioso véu cai,
E eis que a luz se casa com a misteriosa,
subjugadora Noite.

O Espetacular

O Espetacular

As gotas se chocam à madeira negra,
se infiltram nas teclas brancas e pretas.
E, essa paisagem não é lenta, é frenética.

O chiado da cachoeira é uma chuva pesada, mas de vida,
que provoca um som oco na caixa do piano,
a qual é achada a voz de dedos, nuances da alma.

As cordas vibram com vivacidade e a orquestra está feita.
Um velho… Mas, não um idoso decrépito. Mas, sim, senhor.
É o maestro e dono das mãos que transpõem seu espírito.

Com movimentos de cabeça, em que fios brancos dançam
no mesmo tom das notas, no possível da umidez,
aveludavam a acústica da rocha que ecoava a um ouvido surdo do ambiente.

Os dedos e as gotas caem na mesma força e velocidade.
E a natureza percusionava esse ritmo.
Ela entendeu o recado, e desse dueto a composição foi feita.

“A melodia das mil mãos” era uma música para você e para si.
De si e de você, era um espelho, a expressão do viver.
Assim, o marfim, enfim, era pressionado num frenesi fantástico.

Havia linguagem, mas não havia palavra.
O estado de natureza se comunicava com o planeta.
E, onde a ordem era um caos disfarçado, nasceu os seres.

Essa fantasia era fenomenal, uma rapsódia livre!
Assim, quando o homem se fez em igual à natureza… e a música pausou.
A cachoeira ria com suas gotas de alegria.
E, em vez de palmas, sorriu-se um arco-íris.

[Cumprimento cordial]

[Fecham-se as cortinas d’água]

Paulo Übermensch

17/09/2008