TEOLOGIA – PERCORRENDO OS CAMINHOS DO PENSAMENTO SOBRE O DIVINO

O encontro entre o Evangelho e  a Paidéia grega. São paulo em Atenas. Fonte da Imagem: checar.files.wordpress.com/2013/07/saintpaul-preaching-in-athens.jpg

O encontro entre o Evangelho e a Paidéia grega. São Paulo em Atenas. Fonte da Imagem: checar.files.wordpress.com/2013/07/saintpaul-preaching-in-athens.jpg

A palavra ‘teologia’ é uma transliteração da palavra grega ‘theología’, cujo significado original é algo como ‘discurso’ (logos) sobre Deus (théos), ou sobre os deuses (theoi).

Embora já houvesse certo discurso sobre os deuses na poesia homérica e hesiódica, foi Platão, a propósito da formação dos guardiões, quem criou este substantivo e o respectivo conceito, em sua obra República traçou as ‘Linhas Fundamentais da Teologia[1]’ (gr. typoi peri theologías).

Aristóteles levou este projeto de Platão mais adiante. Ele desenvolveu toda uma reflexão que reconhece distinção entre a ‘substância primeira’ e a natureza. Esta substância primeira é identificada como a substância imóvel, o movente não-movido, o puro ato, e, por fim, Deus, neste ponto a ciência que investiga esta substancia primeira, a metafísica, deve acertadamente ser reconhecida como uma teologia[2]. A partir destes movimentos Deus se torna um problema filosófico, cuja ocupação reflexiva é teológica.

Embora, o cristianismo tenha usado, desde muito cedo, recursos filosóficos, na proposta de sua mensagem, ainda que de modo insipiente, de modo geral os cristãos relutaram em assumir para si o “título”, ou o ofício de teólogos, foi apenas ao término do século II que eles começaram a reconhecer que suas reflexões sobre as Escrituras eram uma teologia.

Qual teria sido a principal razão desta relutância?

Jaeger (1992, p.10) destaca que a teologia é uma atitude reflexiva característica do espírito grego, que tinha em alta conta a capacidade do logos, portanto, podemos concluir que seja natural que uma religião calcada sobre a pistis opusesse certa resistência na assimilação desta atitude. Porém, esta resistência se diluiu na medida em que o cristianismo se encontra com a paidéia grega; é quase unânime a opinião de que tenham sido Clemente de Alexandria (c.150-215) e Orígenes (185-254) os primeiros a se professarem teólogos, no sentido em que entende o cristianismo, e, o próprio termo se consolida entre a cristandade a partir de Eusébio de

Orígenes, o Alexandrino. Um dos primeiros cristãos a se intitular 'teólogo'. Fonte da Imagem: pt.wikipeia.org/wiki/Ficheiro:origen.jpg

Orígenes, o Alexandrino. Um dos primeiros cristãos a se intitular ‘teólogo’. Fonte da Imagem: pt.wikipeia.org

Cesaréia (260-341).

Ao escrever sobre a história da teologia se faz necessário muita cautela, pois o período dos apóstolos e daqueles que conviveram com eles se distingue do desenvolvimento ulterior da teologia, posto que seja mais propriamente o período ‘fundacional’ da igreja, ali seus escritos são de inspiração do Espírito Santo, portanto não há como comparar o comum empenho em reflexões humanas com seu conteúdo “teológico”. Entretanto, é possível afirmar, como o fizeram Illanes e Saranyana (1995) que a história da teologia se desenvolve em torno de três grandes períodos, cada um destes com suas respectivas subdivisões e, por vezes, um período sendo interpenetrado pelo outro.

1º. Período Patrístico. 2º. Período Escolástico. 3º. Período Moderno e Contemporâneo.

1º. Período Patrístico.

Este período abrange cerca do final do século I ao século VIII, comumente os teólogos deste período são chamados ‘Padres Apostólicos’, pois viveram relativamente próximos aos apóstolos. Há em seu interior, basicamente três períodos: 1º, do século I ao IV, formação da “teologia”; 2º, séculos IV e V, chamado de “a era de ouro”, devido ao o fim das perseguições a igreja e a liberdade para o amadurecimento de sua teologia; 3º, do século V ao VIII, este é o período de transição entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média.

 

2º. Período Escolástico.

Este período abrange cerca do ano 750 ao ano de 1500, também é dividido em três períodos: 1º, cerca de 750 ao ano 1100, conhecido como período da ‘teologia monástica’, em 1100 surgem os burgos e se inicia a organização das cidades, o que suscita a formação das escolas em torno das catedrais, a escolástica; 2º, de 1100 a 1300, período da teologia reconhecido como ‘Alta Idade-Escolástica’, é a era de Pedro Lombardo (c.110-1160), São Boaventura (1221-1274), São Alberto Magno (1193-1280), Santo Tomás

Santo Tomás de Aquino, o mais influente pensador da Idade Média. Fonte da imagem: pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Thomas_Aquinas_by_Fra_Bartolommeo.jpg

Santo Tomás de Aquino, o mais influente pensador da Idade Média. Fonte da imagem: pt.wikipedia.org

de Aquino (1225-1274) e Duns Scotus (1265-1308); 3º, de 1300 a 1500, a ‘Baixo-Escolástica’, neste período há o declínio da escolástica, e, a conseqüente abertura para o Renascimento.

Temos aqui dois breves intervalos que não deixam de caracterizar-se por certo tipo de reflexão teológica, é possível se falar de uma ‘escolástica renascentista’, que se desenvolve no começo do século XVI e segue até seus meados, e, também de uma ‘escolástica barroca’, a partir dos meados do século XVI até o século XVII.

Não é possível omitir que o século XVI é marcado pelo inicio de uma divisão profunda no cenário da teologia, a Reforma protestante a secciona de modo tal que diversas correntes se originarão dela. Três personagens destacam-se neste período Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano, Jean Calvino (1509-1564) e Ulrich Zwinglio (1484-1531), dois documentos são fundamentais para os rumos que a teologia tomaria a partir deste período: ‘A Confissão de Augsburgo’ (1530), documento protestante redigido por Felipe Melanchton (1497-1560), discípulo de Lutero, e, já no

Martinho Lutero, o monge alemão que incendiou o mundo. pintura de Cranach (1529). Fonte da imagem: pt.wikipedia.org/Ficheiro:Luther46c.jpg

Martinho Lutero, o monge alemão que incendiou o mundo. pintura de Cranach (1529). Fonte da imagem: pt.wikipedia.org

século XVII, ’A Confissão de Fé de Westminster’ (1643), documento reformado, dos puritanos, calvinistas ingleses.

3º. Período Moderno e Contemporâneo.

O período moderno e contemporâneo da história da teologia abrange os séculos XVII até os dias atuais, distinguindo-se as seguintes “divisões”: 1º, séculos XVII e XVIII, cenário da ruptura entre os âmbitos espiritual e intelectual, é neste século que a teologia evangélica tem sua gênese, exatamente no interior da ortodoxia confessional, todavia, o fundamentalismo é o resultado dos “revivals[3]” evangélicos dos séculos XIX e XX; 2º, século XIX, centro de polêmicas e tensões, mas também ocorrem vislumbres de “renovações”; 3º, século XX, segundo Gibellini (1998) o discurso teológico que originalmente propunha a “glória de Deus”, evolui em direção à defesa e à valorização do humanum.

Quanto ao papel da teologia no presente século, somente as próximas gerações poderão pronunciar um veredicto!

Bibliografia.

GIBELINI, Rosino. A Teologia do Século XX, Tradução: José Paixão Netto, São Paulo, Edições Loyola, 1998

ILLANES, Jose Luis & SARANYANA, Josep Ignasi. Historia de La Teologia, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1995.

JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego, Tradução: Artur M. Parreira, São Paulo, Martins Fontes, 2001.

____________. La Teología de Los Primeiros Filosofos Gregos, México, Fondo de Cultura Económica, 3ª. Reimpresión, 1992.

PLATÃO. A República, Tradução: J. Guinsburg, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 2ª Edição, 1973.

LIVRO D CONCÓRDIA. (Editado por) Leopoldo Heimann. Traduzido por Arnaldo Schüller. 4ª Edição, São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre, Concórdia, 1993.


[1] Platão critica os discursos dos poetas sobre os deuses e propõe que os filósofos tracem regras para que eles possam compor: Vide Republica 377b – 383c.

[2] Uma simples e boa explicação sobre a dimensão teológica da obra de Aristóteles pode ser lida em BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles, tradução: Dion Davi Macedo, São Paulo, Edições Loyola, 1998. Sobretudo, o 3º Capítulo: “O método da metafísica”.

[3] Para uma exposição sucinta do que sejam os revivals evangélicos, Vide: http://en.wikipedia.org/wiki/Christian_revival

O AUTÔNOMO NO PENSAMENTO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO. UMA RESPOSTA À LEITURA DE FRANCIS SCHAEFFER.

“Se alguém vai passar uma longa temporada no exterior, é de se esperar que aprenda a língua do país a que se destina. Mais do que isso, entretanto, faz-se necessário ele poder realmente comunicar-se com aqueles no meio dos quais viverá. Impõe-se-lhe aprender ainda outra língua – a das formas de pensamento das pessoas com quem falará. É somente assim que conseguirá real comunicação com elas e a elas”.
(SCHAEFFER, 1974, p.5.).

Dr. Francis Schaeffer (1912-1984). Um dos mais importantes pensadores do Cristianismo no século XX.

Com Posfácio do Professor Doutor Carlos Arthur Ribeiro Nascimento.


Apresentação.

A gênese deste escrito lança raízes em minhas experiências de leitura há muito passadas.
Durante muito tempo – em meados da década de 90 – fui um leitor entusiasmado e voraz das obras de Santo Tomás de Aquino, sobretudo, dos títulos mais acessíveis ao público não-especializado – Compêndio de Teologia (1272) e O Ente e Essência (1254-1256) . Suas obras me auxiliavam na reflexão de minha vivência de fé cristã num mundo cada vez mais secularizado; e foi assim por um longo tempo.
Até que tomei conhecimento das obras do teólogo reformado Francis Schaeffer, este com muita erudição e apelo à autoridade dos textos bíblicos proferira certo juízo negativo acerca de determinados aspectos da obra de Santo Tomás, juízo este que alterou minha própria apreciação dos escritos do Aquinate e fez com que fenecesse a admiração e o interesse que tinha por sua obra.
No trato que mantive durante os anos subseqüentes com diversos escritos históricos e filosóficos, deparava-me constantemente com referências ao Doutor Angélico e a influência de sua obra na Filosofia e na Teologia Ocidental; e, pressentia que haveria um momento de minha vida em que eu teria que acertar contas com o Aquinate, lidar com nossa relação mal-resolvida.
Ao tomar conhecimento que teria a oportunidade de ser aluno do Professor Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento no curso de graduação em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, não hesitei e matriculei-me em sua disciplina – mesmo já tendo cursado uma equivalente. Esta não era a primeira vez que o professor cruzava meu caminho, há alguns tivemos um encontro casual numa Livraria – Sebo – no bairro de Pinheiros, onde após um período de conversa acerca de temas filosóficos – sem eu saber quem era meu interlocutor – ele me disse: – Meu jovem você devia fazer Filosofia!
Ante a expectativa deste curso, crescia em mim a certeza que a oportunidade para retomar a questão, que ficara em aberto, se daria por meio deste contato renovado com o entusiasmo e o fascínio provocado pela obra de Santo Tomás através das exposições do professor Carlos Artur. A ocasião se mostrava oportuna, durante um semestre aprendemos mais sobre a atmosfera intelectual em que se formou o pensamento do Aquinate. E sob a orientação do professor debruçamo-nos sobre o “Comentário de Santo Tomás ao Tratado da Trindade de Boécio” e também sobre o “Comentário de Santo Tomás à Metafísica de Aristóteles” – tudo isso sob o amparo de diversos textos complementares.
Compartilhei com o professor meu interesse em elucidar minha “velha” questão, expondo-lhe, inclusive, os detalhes da tese de Schaeffer – tese esta que ele achou interessante e inusitada, mesmo apresentando breves ressalvas – fiz a proposta de, a partir dos conhecimentos adquiridos em seu curso, tratar da questão confrontando os dois pensadores no meu trabalho de conclusão ao semestre. Minha proposta foi aceita com entusiasmo e sob sua orientação, retomei a questão.
Portanto, o escrito que o leitor tem em mãos é fruto da necessidade intelectual-espiritual do autor em resolver um relacionamento passado que ficou mal-resolvido, em expurgar o sentimento de frustração diante de teorias que parecem irreconciliáveis e em resgatar uma “velha” e boa amizade que outrora estava perdida no passado da incompreensão e da desesperança.
Todavia, apesar da tônica de pessoalidade conferida por esta breve apresentação, este escrito é paradigmático e pretende também – talvez até de modo primeiro – servir como uma pequena contribuição ao necessário, porém difícil diálogo entre a Teologia Católica e a Teologia Protestante e à tentativa de apaziguar “querelas antigas” apontando para a importância conjunta da contribuição intelectual e do vigor espiritual destas duas grandes tradições à Civilização Ocidental!
Agradeço a Deus por esta oportunidade, e, ao professor Carlos Arthur que tão gentil e perspicazmente me conduziu por estas sendas e escreveu o singelo posfácio a este texto.
São Paulo, 18 de Janeiro de 2011.
Carlos Eduardo Bernardo


Resumo.

Neste breve escrito pretendemos refletir acerca de uma concepção atinente ao pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274), conforme exposta nas obras de Francis Schaeffer, mormente em seu livreto, A Morte da Razão . Concepção essa que perpassa não apenas a trilogia à qual pertence esta obra, mas a todo o pensamento do autor em questão. Grosso modo, podemos dizer que Francis Schaeffer advoga encontrar na obra de Santo Tomás de Aquino, a idéia de uma autonomia da razão, mas não apenas isso, e sim uma autonomia da razão frente ao problema soteriológico.
Portanto, pretendemos averiguar se esta tese de Schaeffer se justifica ou não; para tanto, nos reportaremos não apenas à obra em questão, mas, sobretudo, aos escritos do próprio Santo Tomás de Aquino, que com certeza são abundantes na discussão sobre o status da razão, tanto no estado pré-queda, quanto no estado pós-queda, lembrando que este último é o mais relevante para a presente discussão.
Palavras-chave. Razão, Intelecto. Autonomia. Salvação. Irracionalidade. Modernidade.
Sobre o autor.
Francis Schaeffer (1912-1984) é talvez um dos mais importantes pensadores do Cristianismo, de vertente evangélica, do século XX. Crítico de arte, dramaturgo, filósofo, teólogo e ministro cristão. Pensou os problemas relativos à fé e a cultura e percebeu, como nenhum outro antes, que o grito surdo e o desespero do homem moderno são resultantes de uma fuga para um mundo de irracionalidade que nega o único fundamento legítimo para todo conhecimento, Deus.
Schaeffer era dotado de enorme perspicácia intelectual e profundidade espiritual; junto a sua esposa Edith Schaeffer fundou em 1955 a Comunidade L’Abri (Suíça), local que se tornou um importante centro espiritual e de propagação do Evangelho, além de um pólo de convergência intelectual, onde Schaeffer amadureceu ainda mais seu pensamento através dos diversos diálogos ali travados, fazendo com que sua abordagem fosse livre dos diversos academicismos, embora conservasse todo rigor necessário para a inquirição filosófica .

A Morte da Razão – Editora Fiel (ABU)

O Problema.
Schaeffer considera a obra de Santo Tomás Aquino aquela que transformou de forma efetiva o mundo, e, segundo ele, foi realmente Santo Tomás quem nos introduziu na Renascença humanista. Além disto, Santo Tomás quem abriu-nos o caminho à discussão que é convencionalmente designada “natureza e graça”, sendo a graça o nível superior da realidade e a natureza o nível inferior. O autor representa isto com o seguinte diagrama:

GRAÇA, O NÍVEL SUPERIOR:
DEUS O CRIADOR; O CÉU E AS COISAS CELESTES; O INVISÍVEL E SUA INFLUÊNCIA NA TERRA; A ALMA HUMANA; A UNIDADE.

NATUREZA, O NÍVEL INFERIOR:
A CRIAÇÃO; A TERRA E AS COISAS TERRENAS; O VISÍVEL E O QUE FAZEM A NATUREZA E O HOMEM NA TERRA; O CORPO HUMANO; A DIVERSIDADE.
(Schaeffer, 1974, p. 7).
Schaeffer argumenta que até a introdução deste dualismo a representação do mundo seguia um esquema bizantino, ou seja, as realidades celestes capitalizam toda a importância e sua santidade impunha uma representação simbólica, em hipótese alguma eram representadas de forma realista. A natureza, em si mesma, não suscitava interesse no artista, a não ser enquanto símbolo das coisas celestes. O autor observa, acertadamente, que Santo Tomás mantinha um princípio de unidade que correlacionava os dois âmbitos (graça e natureza), e, que a partir de sua proposta, muitos se esforçaram para manter a unidade, numa esperança de racionalidade. E conclui que antecipando o pensamento renascentista, Santo Tomás deu-nos a noção da necessidade de valorização da natureza, posto que, a valorização apropriada da natureza equivale à valorização apropriada do próprio Deus e vice-versa.
Todavia, Schaeffer nos diz que é a partir destas considerações introdutórias que podemos lançar um novo olhar sobre o diagrama natureza e graça.
Ao mesmo tempo, estamos agora em condições de ver o significado do diagrama da natureza e graça numa perspectiva diferente. Embora bons resultados adviessem da posição de maior realce conferida à natureza, isso deu lugar a muita coisa de cunho destrutivo, como se verá.
(Schaeffer, 1974, p. 9).
Schaeffer advoga que a valorização da natureza, de acordo com o esquema supra, deduzida do pensamento de Santo Tomás, já tem o germe do humanismo que caracterizará o período renascentista, e isso, em uma tendência sempre crescente até assumir as proporções que podemos contemplar nos tempos hodiernos. Esse germe é a afirmação da autonomia da razão.
Na concepção tomista a vontade humana estava decaída, mas não o intelecto. Dessa noção incompleta do conceito bíblico da Queda, defluiram todas as dificuldades subseqüentes. O intelecto humano se tornou autônomo. Em um aspecto era o homem agora independente, autônomo.
(Schaeffer, 1974, p. 9).
Segundo Schaeffer, um dos resultados do conceito de autonomia da razão é a capacidade humana em elaborar uma teologia natural, esta é uma teologia que pode ser formulada independentemente da Escritura. Schaeffer tenta fazer justiça a Santo Tomás lembrando-nos que este pressupunha uma unidade final entre esta teologia natural e aquela haurida da Escritura.
Como o autor, de forma perspicaz, salienta, as diversas disciplinas (ou saberes) são elaborações humanas e coisas de homens, estas “[…] não se podem conceber como linhas paralelas não relacionadas”. (Schaeffer, 1974, p.10). Portanto, os efeitos nocivos desta autonomia logo se fizeram sentir em todas as áreas e inclusive na Filosofia.
Com base neste princípio de autonomia, também a filosofia se tornou livre e se separou da revelação. Portanto, a filosofia começou a criar asas, por assim dizer, voando por onde quer que lhe aprazia, deixando à margem as Escrituras. Não quer dizer que essa tendência não se manifestara em tempos anteriores, apenas que de agora em diante se patenteia de maneira mais completa. Nem se limitou à teologia filosófica de Tomás de Aquino. Bem logo se fez sentir no mundo da arte.
(Schaeffer, 1974, p. 10).
Para Schaeffer, Santo Tomás abriu o caminho a um humanismo autônomo, a uma Filosofia autônoma, enfim a um movimento de autonomia que desaguou como um dilúvio e proporcionou à natureza, agora autônoma, o poder de devorar a graça, processo esse que se tornou efetivo na Renascença.
Desembaraçando o emaranhado.
Schaeffer é sem dúvida alguma um pensador digno de respeito, A Morte da Razão, foi, dentre suas obras, a primeira que tivemos oportunidade de ler, e, confessamos que a despeito de seu pequeno porte a ela é extremamente rica, variada e provocativa.
Não fosse por uma preocupação em se manter o rigor filosófico de nossas reflexões, talvez, jamais voltássemos às questões que ela nos suscitou. Todavia, tendo voltado, propomo-nos em levar esta empresa até o fim. Naturalmente, não esgotaremos o problema, mas com certeza desembaraçaremos, ao menos um pouco, o complexo emaranhado em que parece ter sido envolvido o pensamento de Santo Tomás de Aquino, o Doctor Angelicus!
A abordagem Dois-Andares.
Inicialmente devemos tecer algumas observações sobre o esquema graça e natureza, representado no diagrama proposto por Schaeffer, e, que segundo ele remete-nos a uma nova concepção da realidade, concepção essa inaugurada por Santo Tomás.
Esta abordagem habitualmente é designada como conceito dois-andares, e desde o momento em que os cristãos envolveram-se, realmente, com a Filosofia ela foi procurada e exercitada no decurso dos séculos, e isso, mesmo por contemporâneos de Santo Tomás.
Posto que, esta abordagem está intimamente relacionada à possibilidade de se fazer dois tipos de teologia; poderíamos retroceder a inquirição sobre este recurso até períodos que antecedem o próprio advento do Cristianismo, apontando para que o pensar esta possibilidade de duas teologias é, sem dúvida alguma, muito mais antigo, e isso se tivermos em conta que uma teologia revelada, de certo modo, já se encontra na base da religião dos hebreus (sempre vinculada à revelação bíblica) e uma teologia natural, remonta à Filosofia clássica de Platão (c 428-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), para não falar dos pré-socráticos, embora não possamos deduzir disto que qualquer relacionamento entre ambas já existisse na Antigüidade . Porém, não enveredemos por essas sendas, pois elas nos conduziriam a caminhos mais longínquos do que aqueles que importam a esta reflexão.
O que realmente é necessário destacar é que a abordagem dois-andares já se fizera presente, ao menos, deste Agostinho (354-431) e Boécio (480-524). Ainda mais, é notório que mesmo no período da Patrística, o problema de se estabelecer à exata relação entre a fé e a razão já se tornara central da reflexão cristã, e, isso de modo mais acentuado entre os Padres Gregos. Certo é que alguns tinham uma visão mais organicista da relação entre ambas, a exemplo de Clemente (c.150-217) e Orígenes (c.185-253); porém, tem sido sustentado que outros as concebiam como relativamente estanques, e que esta tendência foi a que se tornou mais comum no período medieval . Todavia sempre houve entre ambas a convicção de que a fé e razão não são de natureza totalmente heterogêneas devido à possibilidade em correlacioná-las!
A Distinção das Ciências.
Em Santo Tomás vemos uma culminância possível do esforço em conjugar harmoniosamente a auctoritas e a ratio, esforço este que se desenrolara durante séculos, onde ora a pêndulo se inclinava mais para a ratio, a exemplo de Boécio (480-524), ora se inclinava mais para a auctoritas, Hilário (315-367). Sempre que se fazia necessário um modelo que mantinha o equilíbrio entre os dois princípios, era necessário retornar a Agostinho, o Mestre do Ocidente. Mas, novos problemas se punham diante do Cristianismo, e a redescoberta de Aristóteles requererá uma nova síntese que viesse a nutrir-se menos do neoplatonismo e que se conciliasse com as novas fontes de saber que impulsionavam as ciências .
Mas ao fazer isso, Santo Tomás não confundiu as disciplinas e tampouco atribuiu à razão alguma qualidade que, de certo modo, ferisse a graça, antes ele estabeleceu solidamente a distinção entre a filosofia (entendida como a philosophia prima) e a teologia (entendida como doctrina sacra) delimitando claramente os seus terrenos. Boehner observa:
Embora, pensadores cristãos de eras anteriores houvessem percebido claramente a distinção entre filosofia e teologia, contudo nem sempre procederam a uma delimitação exata entre as duas ordens, pelo menos no que concerne à exposição concreta de suas doutrinas. Com S. Tomás acentua-se a tendência para destacar as conseqüências práticas desta distinção, já teoreticamente reconhecida, entre os dois domínios. Todavia, a idéia de uma filosofia separada e totalmente autônoma lhe é tão alheia quanto aos outros grandes vultos da filosofia cristã.
(Boehner / Gilson, 2008, p. 450).
Consideremos que Santo Tomás adota a distinção aristotélica das três ciências, a saber: as teóricas ou especulativas; as práticas e as produtivas. Sendo que entre as ciências teóricas, temos a Teologia, a Matemática e a Física.
No Comentário ao Sexto Livro da Metafísica de Aristóteles, Santo Tomás distingue as três partes da filosofia teórica, sendo a primeira uma aitiologia (aquela que trata das causas), livro V I, Lição 1ª. 1164; a segunda uma ontologia (aquela que trata o ente enquanto ente), Livro VI, Lição 1ª. 1165 e por fim, a terceira uma teologia (aquela que trata das inteligências separadas / Deus e os anjos).
Porém, Santo Tomás distingue esta Teologia ou Metafísica, daquela que ele chamará de Teologia das Escrituras ou a Sagrada Doutrina.
Era necessário existir para a salvação do homem, além das disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão humana, uma doutrina fundada na revelação divina.[…] Portanto, além das disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão, era necessária uma doutrina sagrada, tida por revelação.[…] Nada impede que os mesmos objetos de que as disciplinas filosóficas tratam, enquanto são conhecíveis à luz da razão natural, sejam tratados por outra ciência, como conhecidos à luz da revelação divina. A teologia, portanto, que pertence à doutrina sagrada difere em gênero daquela que é considerada parte da filosofia.
(Suma de Teologia, 1ª, q.1 a.1solução e resposta ao 2º. Artigo.)
Por meio desta distinção podemos entender que se Santo Tomás concede à razão uma importância elevada no processo de inquirição sobre Deus e de questões correlatas no âmbito da natureza (andar inferior), porém, ele não o faz em detrimento da fé e da revelação (andar superior), mas, concedendo que:
A sabedoria filosófica tem como sujeito o ente como tal e só conhece Deus como sua causa eficiente e final última. Embora esse conhecimento seja a aspiração mais profunda das criaturas intelectuais, só é atingível pela sabedoria filosófica de modo precário e longínquo. A teologia das Escrituras tem o próprio Deus como sujeito, tal como ele se revela, comunicando algo de seu próprio conhecimento. (Nascimento, C. A.R. do. s/d. p. 126)

Logo, o sujeito-gênero das inquirições diferem, embora coincidam; em uma nota da Suma de Teologia, 1ª, q.1 solução, o comentarista observa que a teologia natural é uma parte da metafísica que considera Deus como o principio de seu sujeito-gênero: o ser enquanto ser; logo, o princípio de todos os seres. Até este ponto é possível chegar através exercício racional, pois Deus mesmo nos deu indícios no plano da natureza pelos quais podemos estabelecer esta inquirição (Romanos 1.20); todavia, é necessário ir mais além se pensamos no conhecimento soteriológico sobre Deus, e, para isso se faz necessário uma teologia das Escrituras, que se pauta na revelação de Deus, ou seja, no conhecimento que Ele nos dá de si mesmo. Pois, da primeira forma, teremos que nos reportar a ele “[…] como o olho da coruja para com a luz do Sol, como diz no livro II da Metafísica, não podemos chegar a ele, pela luz da razão natural, senão na medida em que somos conduzidos a ele pelos efeitos”. (Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio. 5, a. 4, trad. p, 132).
A abordagem dois-andares, se realmente consta na obra de Santo Tomás, pauta-se em uma clara distinção, solidamente estabelecida, entre os campos atinentes à razão e a fé, portanto acreditamos que, após as breves considerações supra, fica claro que a relação entre ambas, bem como entre a teologia natural e a teologia das Escrituras, implicam em liberdade condicionada da razão que não fere o domínio da Graça!
Todavia, encerraremos este tópico com uma citação de Gilson, que corrobora nossa conclusão.
Todo domínio da filosofia pertence exclusivamente à razão; isso significa que a filosofia deve admitir apenas o que é acessível à luz natural e demonstrável apenas por seus recursos. A teologia baseia-se, ao contrário, na revelação, isto é, afinal de contas, na autoridade de Deus. […] Assim, delimitados os dois domínios, deve-se constatar, porém, que ocupam em comum certo número de posições. Em primeiro lugar, o acordo de direito entre suas conclusões últimas é coisa certa, muito embora esse acordo não apareça de fato. Nem a razão, quando fazemos uso correto dela, nem a revelação, pois ela tem Deus por origem, seriam capazes de nos enganar. Ora, o acordo da verdade com a verdade é necessário. É certo, pois, que a verdade da filosofia se uniria à verdade da revelação por uma cadeia ininterrupta de relações verdadeiras e inteligíveis, se nosso espírito pudesse compreender os dados da fé. […] a impossibilidade em que temos de tratar filosofia e teologia por um método único não nos proíbe considerá-las como constituindo, idealmente, uma só verdade total.
(Gilson, 2007, pp. 655-656).
Mesmo considerando que as verdades da fé não se alcançam através razão, depois de concedidas por meio da revelação são passíveis de articulação, aprofundamento e defesa por meio desta.
A Queda, a razão e a autonomia.
Afirmar que Santo Tomás tinha uma noção incompleta da Queda, nos parece um tanto temerário. Santo Tomás tinha uma noção completa da Queda, todavia, em face da noção da Queda proposta e adotada pela Reforma, quase três séculos depois, admitimos que sua concepção é radicalmente diferente.

Santo Tomás de Aquino (1225-1274) – Botticelli. “A graça não destrói a natureza, mas a conduz à perfeição”

Este problema é tratado pelo Aquinate na Iª Seção da IIª Parte da Suma de Teologia, Questão 85. Tentaremos sintetizar sua posição. Ao responder a questão: “O pecado diminui o bem da natureza?”; Santo Tomás, inicialmente, distingue os três possíveis significados de bem da natureza.
1º. Os princípios que constituem a natureza, com as propriedades deles decorrentes (como as potências da alma).
2º. A inclinação natural para a virtude como um bem especifico da natureza.
3º. O dom da justiça original que foi dado a toda humanidade no primeiro homem .
Quanto à ação do pecado ele nos diz que no primeiro aspecto não houve perda nem diminuição, quanto ao terceiro foi totalmente tirado após a Queda, já o segundo (a inclinação natural para a virtude) foi diminuída . Santo Tomás nos diz.
Como foi dito, o bem da natureza que diminui pelo pecado é a inclinação natural à virtude. Esta inclinação convém ao homem pelo fato de ser ele racional. É isso que lhe permite agir segundo a razão, e isso é agir segundo a virtude. Ora, o pecado não pode tirar completamente do homem que seja racional, porque já não seria capaz de pecado. Por conseguinte, não é possível que o predito bem da natureza seja tirado totalmente.
(Suma de teologia. Iª. IIª , q. 85, a.2, solução)

Santo Tomás defende que esta inclinação tem sua raiz na natureza racional, e, que “tende ao bem da virtude como a um termo, a um fim”. (Idem.), explica-nos que a diminuição poderia ocorrer de duas formas, no lado da raiz ou no lado do termo, porém, ele não pode diminuir no lado da raiz, pois isso diminuiria a própria natureza, o que já se estabelecera (diminuir na raiz colocaria o risco de desaparecimento a própria natureza racional); conclui Santo Tomás, que a diminuição se dá do lado do termo, no colocar impedimento para que tal inclinação não se chegue a ele. Eis como conclui esse momento de sua argumentação.
Mas, porque há diminuição pelo impedimento posto para não chegar ao termo, é claro que isso pode ir ao infinito, uma vez que o homem pode acrescentar ao infinito pecado sobre pecado. Entretanto, a inclinação não desaparece totalmente, pois fica a raiz. Tem-se um exemplo disso no corpo diáfano que tem, por ser diáfano, uma inclinação para receber a luz. Esta inclinação ou aptidão é diminuída pelas nuvens que sobrevêem, se bem que ela subsista sempre na raiz da natureza.
(Suma de teologia. Iª. IIª , q. 85, a.2, solução).

No artigo 3º. Santo Tomás trata especificamente das seqüelas do pecado, (e isso também em relação aos efeitos da Queda) sobre as potências inferiores e a própria razão. Na alma há quatro potencias que podem ser sujeitos de virtudes: a razão; a vontade; o irascível e concupiscível. Segundo o Doutor Angélico, quando estas quatro potências são demovidas da sua ordem (dos seus respectivos fins) temos que quanto à razão, há ignorância, quanto à vontade, há malícia, quanto ao irascível, há fraqueza e quanto ao concupiscível, há concupiscência . E assim, conclui:
Portanto, são quatro feridas infligidas a toda a natureza humana pelo pecado do primeiro pai. Ora, como a inclinação ao bem da virtude é diminuída em cada um pelo pecado atual, como fica claro pelo que foi dito, estas são quatro feridas conseqüências dos outros pecados, a saber, a razão encontra-se embotada, sobretudo em matéria de ação; a vontade endurecida em relação ao bem, e aumenta uma maior dificuldade de agir bem e a concupiscência inflama-se mais.
(Suma de teologia. Iª. IIª , q. 85, a.3, solução).

Portanto, no que tange ao conceito cristão de Queda, Santo Tomás, tem uma teoria plena e coerente, óbvio que diverge da concepção pessimista latina em que o homem era considerado despojado dos dons gratuitos e ferido em sua natureza, concepção essa que, em certo sentido, será retomada pela Reforma. A origem da teoria do Doutor Angélico pode ser localizada na concepção do Pseudo-Dionísio, que ao tratar dos anjos que pecaram, este observa que os mesmos conservaram em integridade o que pertence à natureza . Santo Tomás seguirá esta perspectiva para elaboração de sua teoria, que tende a evitar extremos perigosos.
Schaeffer adere à noção da Reforma, porém, ao fazê-lo, não considera de modo pleno a apreciação de Santo Tomás sobre este tema. Sustenta que somente a noção reformada pode ser considerada bíblica e que, de modo “contrário a Santo Tomás”, somente a Reforma preserva a autonomia como atributo exclusivo de Deus.
A Reforma aceitou a noção bíblica de uma Queda total, absoluta. O homem em sua totalidade era obra de Deus; agora, porém é decaído em sua natureza, inclusive o intelecto e a vontade. Em contraste com a posição tomista, admitia que somente Deus é autônomo.
(Schaeffer, 1974, pp. 18-19).
Há dois problemas com relação à atitude reformada, um deles é a crescente tendência a absolutização de sua hermenêutica da Queda, e, o outro é a não consideração de certas nuanças do pensamento de Santo Tomás, exatamente aquelas que tentamos ressaltar. Quanto ao falar de uma autonomia da razão em Santo Tomás; primeiro, cremos que as explicitações, supra, não deixam qualquer dúvida de o quanto é impróprio atribuir-lhe tal conceito.
Mas, acrescentamos a isso, que nos parece deveras anacrônica essa atribuição, uma vez que, não se pode dizer com certeza que a conjuntura histórico-social e as condições culturais e espirituais da época em que Santo Tomás viveu exalavam a atmosfera propícia à eclosão deste conceito; sobretudo, porque que o conceito de autonomia da razão é, conforme uso corrente, sem dúvida alguma, fruto das reflexões do Iluminismo. Cuvillier resumiu este conceito de autonomia da seguinte forma: “Estado da vontade racional que não obedece senão a regra imanente de si mesma”. (Cuvillier, 1976, p. 15). A origem conceitual do autônomo remonta até os escritos de Kant (1724-1804), que considera todo “ser dotado da faculdade de razão como potencial fundador de uma legislação universal” . Podemos afirmar que se esta concepção fosse apresentada a Santo Tomás, ele oporia a ela a noção de que “[…] a razão encontra-se embotada, sobretudo em matéria de ação; a vontade endurecida em relação ao bem, e aumenta uma maior dificuldade de agir bem e a concupiscência inflama-se mais”.
Conclusão.
Deste breve percurso podemos concluir que a abordagem dois-andares sempre foi familiar ao Cristianismo (com suas devidas variações) e que Santo Tomás, embora não fazendo uso da metáfora, talvez respirasse a atmosfera composta pelas implicações relativas a esta abordagem, todavia; mesmo estas implicações se integram dentro de conjunto arquitetônico, por ele construído, de forma a harmonizar coerentemente o exercício teológico natural com o exercício teológico da Doutrina Sagrada. Na elaboração de sua teologia (ulteriormente chamada aristotélico-tomista) valoriza-se demasiadamente a razão, posto que, leva em conta a sua capacidade em alcançar certas modalidades de verdade ; todavia, também considera que ela necessita da fé, pois sozinha não pode alcançar o conhecimento do mistério essencial de Deus.
Confrontando a teologia filosófica de Santo Tomás, relativa à razão e às potências inerentes ao homem, com aquela que foi desenvolvida pela Reforma; vemos o quanto realmente o homem é valorizado, e isso, de modo a constituir o que Pedro Dale Nogare chamou de um verdadeiro humanismo cristão . Dados os princípios adotados na consecução de seu intento, extraídos principalmente do Corpus Aristotelicum, disponível em sua época, o conjunto arquitetônico de sua obra não poderia ter outro caráter. E se expressa algo que é compreendido como uma visão otimista do homem é porque também extrai das Escrituras a afirmação da grandeza do homem, enquanto ser criado à imagem de Deus, imagem essa, que em algum sentido, manteve-se mesmo após a Queda, como se pode deduzir das palavras do Apóstolo Santo Tiago (S.Tiago 3,9).
Ao contrário, Schaeffer, adotando a perspectiva reformada sobre o homem e principalmente sobre a Queda, não poderia construir, de modo coerente, um conjunto arquitetônico de caráter diferente do que construíra; a sobrevalorização da vontade em contraposição à razão, traço característico da mentalidade semita, conforme a expressão das Escrituras; principio sempre tão caro à Reforma, confere à sua antropologia bíblica uma tonalidade sombria que logo se destaca ao contrastar-se com a concepção tomista.
Podemos depreender disto que uma dentre as duas concepções é melhor ou pior que outra, enquanto representação dos arcanos de Deus expressos nas Escrituras? De maneira alguma! Antes, são diferentes, devido os diversos motivos, já apontados neste escrito, mas ambas se nutrem da mesma fonte espiritual originária. Ambas pretendem atribuir a Deus toda glória e toda soberania, porém enquanto a Reforma escolheu para isso a via negativa, ou seja, tirar tudo do homem para engrandecer a Deus, Santo Tomás preferiu uma via positiva, preservar a integridade de algo no homem, para que em todas as coisas, inclusive nessa característica, Deus seja engrandecido!

Posfácio.

Este trabalho traz contribuições importantes para deslindar a sofrida relação entre as tradições cristãs: católica e protestante. A observação final – feita pelo autor – indica um ponto chave na diferenciação das duas atitudes: Tomás utiliza uma lógica de participação e a Reforma uma lógica da univocidade (herdada da escolástica do século XIV – nominalistas). Talvez a metáfora de dois-andares já seja comprometida com esta lógica da univocidade.
Santo Tomás usa na arquitetura geral do seu pensamento uma lógica platônica, ou melhor, neoplatônica, cuja peça central é a idéia de participação, isto é, o absoluto (Deus, as idéias) não exclui, mas fundamentam o relativo (criaturas, mundo material). Para Tomás, talvez fosse melhor usar a metáfora da água ou do óleo (graça) que empapa e limpa ou perfuma o pano (natureza) em que penetra. Confira a conhecida frase de que “a graça não destrói a natureza, mas a conduz à perfeição”. (Suma de Teologia, Iª parte, Q 1, a. 8, resp. ao arg. 8).
O trabalho do jovem autor revela um esforço bastante bem sucedido de leitura e confronto dos textos utilizados.
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento.

Bibliografia.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica – Volume I, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

________________. Suma Teológica – Volume II, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

________________. Suma Teológica – Volume IV, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

________________. Suma Teológica – Volume V, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

_________________.Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio: Questões 5 e 6. (tradução e introdução de Carlos A. R. do Nascimento), São Paulo, Fundação Editora UNESP, s/d.

BOEHENER, Philotheus / GILSON, Étienne. História da Filosofia Cristã, Petrópolis, RJ. Vozes, 2008.

CUVILLIER, Armand. Pequeno Vocabulário Filosófico. In: Coleção Atualidades Pedagógicas. Volume 82. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976.

GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 2007.

NASCIMENTO, Carlos A. R. do. “Tomás de Aquino, a metafísica e a teologia”. In: Frutos de Gratidão – Homenagem a Francisco Catão em seus oitenta anos. São Paulo, Paulinas – Unisal, s/d.

SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. Aliança Bíblica Universitária (ABU) – Fiel, São Paulo, 1974.

__________________. O Deus que se Revela. Editora Cultura Cristã, São Paulo, 2002.

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SANTO TOMAS DE AQUINO

  • O ENTE E A ESSÊNCIA (1242/43)
  • QUESTÕES DISCUTIDAS SOBRE A VERDADE (1256/59)
  • SÚMULA CONTRA OS GENTIOS (1259/60)
  • COMPÊNDIO DE TEOLOGIA (cap. I a XXXVI e LXXVI a C) (1260)
  • SUMA TEOLÓGICA (seleção) (1265)

Os textos escolhidos mostram as teses fundamentais do tomismo: a distinção entre essência e existência, arelação entre razão e fé, a noção de verdade, natureza e existência de Deus.

DANTE ALIGHIERI
  • VIDA NOVA (1293)
  • MONARQUIA (1313)
Vida Nova apresenta o drama humano da procura da verdade eterna e de um mundo platônico de puras
idéias. Monarquia, tratado político, analisa a relação entre poder temporal e poder espiritual.
Tradução: Luiz João Baraúna, Alexandre Correia, Paulo M. Oliveira, Blasio Demétrio, Carlos do Soveral
Consultores das Introduções: Carlos Lopes de Mattos (Santo Tomás), Ângelo Ricci (Dante)