Francis Bacon (1561-1626) escreveu uma pequena obra, intitulada De Sapientia Veterum, “A Sabedoria dos Antigos”[1], onde pretende demonstrar que os mitos antigos eram alegorias de aspectos atinentes à ordem civil, moral e filosófica! Entre os mitos conhecidos de Pã, Perseu, Dédalo e outros, encontramos aquele que narra a história de Erictônio que o filósofo relaciona com a atitude de Impostura. Seguindo o exemplo de Bacon, gostaríamos de usar desta narrativa para refletir sobre a espiritualidade, assunto, não pouco, suscetível à impostoras.
Na tradição grega, diz-se que Vulcano ardendo de desejo tentou possuir Minerva, à força; seu objetivo fora malogrado, no entanto, sua semente derramou-se no chão de forma que lhe nasceu Erictônio. Este da cintura para cima era belo e formoso, porém suas coxas e pernas eram disformes – finas e sem consistência – de tal modo que não podia suster-se em pé!
Herdeiro do talento de Vulcano e vaidoso como só, fez um carro com o qual podia locomover-se escondendo a parte feia do corpo e simultaneamente mostrando a bonita! Erictônio era um impostor, as pessoas encantavam-se por seu busto e por seu rosto, porém desconheciam sua deformidade escondida por seu belo carro!
Hoje muitos grupos e personalidades usando técnicas arrojadas de marketing, os recursos tecnológicos da mídia eletrônica e da indústria do entretenimento, nos encantam, porém escondem sua deformidade, sua fealdade. Fealdade esta que consiste na falsificação da espiritualidade, no incentivo de atitudes egóticas por parte de seus adeptos e líderes, que vivem em total contradição com a mensagem das tradições espirituais da humanidade. Estes apontam para terra, almejam apenas os “valores” deste século – dinheiro, poder, fama… – e ignoram valores transcendentes, não suscetíveis a efemeridade deste mundo! Pregam uma mensagem de total conformidade com os anseios desta geração “fast food”, prometem aprimoramento espiritual rápido e garantido, principalmente àqueles que podem pagar bem e manter o alto padrão de vida destes novos gurus!
A iluminação – libertação, ou mesmo salvação – apregoada por eles está confinada ao seu grupo particular, que transmite a seus adeptos a crença que podem alcançá-la através de onerosas sessões programadas especificamente para esse fim!
Logo, na presente era, as pessoas têm crido nas afirmações mais estapafúrdias no que tange a espiritualidade. Muitos se aproveitam da incapacidade com a qual os homens e mulheres do século XXI lidam com esse assunto e conseguem vender sua mensagem usando slogans e rótulos, com os quais querem nos convencer que integram a corrente de transmissão das tradições espirituais ou que delas são remanescentes; quando na verdade, sua mensagem nada tem em comum com essas tradições – a não ser uma ou outra afirmação, temperada a gosto de seus proponentes – o que indica que estes usam de má-fé para com a boa-fé das pessoas!
Mundo caótico, do ponto de vista da espiritualidade, mundo de evangélicos que não valorizam o Evangelho, espíritas que não cultivam as ciências do espírito, ortodoxos que não andam no caminho da retidão, católicos que desconhecem o significado do universalismo[2] cristão, protestantes que já não protestam contra a situação de conformismo e esotéricos que publicam seus “segredos’ e os vendem em livrarias como best-sellers.
Este é um mundo de respostas fáceis, o mundo em que temos vivido, onde todos se julgam aptos à discorrer sobre qualquer assunto, e, aquele que mais discorre é tido por mais destacado entre seus pares, porém, suas palavras não passam de opiniões – doxa – cuja profundidade não ultrapassa a de uma poça d’água.
Alguns diriam que isto é um mal que atinge a plebe, as massas, e que homens letrados não se curvam a superstições e não se apegam a futilidades, e, que com o aumento crescente dos níveis de formação escolar e acadêmica, em breve, estas balelas serão erradicadas.
Belo discurso positivista, porém tão marcado pela ingenuidade, quanto ingênuos são os que nele acreditam, pois, infelizmente não podemos dizer que este seja um mal, de uma classe inculta e desinformada. Antes, suas raízes se encontram no próprio seio do academicismo, que após aproximadamente dois séculos de doutrinação, conseguiu lançar-nos num lodaçal de secularismo e incapacidade de considerarmos seriamente a possibilidade de uma realidade ou valores transcendentes que se correlacionem com a imanência de nosso viver, de modo, contribuir para o pleroma de nossa existência.
O Dr. Walter Martin, certa vez, compartilhou que todos os anos a Associação dos Bancos dos Estados Unidos leva centenas de funcionários a Washington para um treinamento onde aprenderão a identificar dinheiro falso. Esse treinamento tem uma duração de quinze dias, mas, sua peculiaridade está em que durante esse período os “caixas” não manuseiam nem uma vez, cédulas falsas, apenas verdadeiras. Por que?
Porque a Associação… acredita que se os funcionários dos bancos estiverem bem familiarizados com as cédulas verdadeiras, reconhecerão facilmente, quando durante seu expediente de trabalho tiverem qualquer contato com cédulas falsas!
Este expediente ilustra, de modo simples, porém eficiente, como a experiência de formação de um indivíduo pode se constituir no fator decisivo para sua formação, enquanto ser humano, e enquanto pessoa, o que implica viver na profundidade de seu ser muito mais como uma totalidade, do que como uma fração, muito mais como um ser independente, do que como um escravo.
Porém, frente a isso, uma pergunta se nos impõe: se nossos mestres não nos ensinaram nada sobre a verdadeira espiritualidade, e, nem ao menos a considerar sua existência ou possibilidade, quando a falsa, se nos apresentar, como a distinguiremos?
[1] Cf. Francis Bacon. A Sabedoria dos Antigos, São Paulo, UNESP, 2002.
[2] A expressão Ciências do Espírito, pode ser entendida como aquela que trata dos elementos constitutivos da Cultura, portanto, criações do espírito humana (ex. Crítica Literária, Pintura e etc.), ou como aquelas ciências que, em conjunto, estudam fenômenos mentais atinentes apenas a seres dotados de consciência (ex. Psiquiatria, Fenomenologia e etc.). Lembremos que a palavra ortodoxia carrega consigo o sentido de caminho correto e católico o significado de universal.