O Elogio do Sofrimento

O elogio do sofrimento

 Por Diego Azizi

Quantos de nós, algum dia, já não se encontrou dentro de uma série de situações-limite em que nossa alma e corpo decidiram apenas desistir de operar? E quando isso acontece, quantos de nós, algum dia, teve a maior das pressas para superar essas situações?

O que questiono aqui é: porque a pressa? Será a tristeza uma face da vida tão anti-natural e demoníaca que deve ser expurgada de nosso ser antes que nos afete por completo? Tristeza não é vida também?

Esse pequeno ensaio, indo na contra-mão das pessoas sensatas e fortes, pretende elogiar a tristeza, o sofrimento, o pensamento negativo, a fraqueza de alguns mortais que aprofundam-se nesse mundo desconhecido, nessa face deprimente de toda a vida. De toda a vida…..

Como disse sabiamente Cioran, não seria mais fecundo abandonarmo-nos à fluidez interior, sem nenhum afã de objetivação, limitando-nos a gozar de todas as nossas agitações íntimas?”

O mundo diz que não. Devemos externalizar a máscara, o véu, e ninguém pode perceber que nossas agitações íntimas mais verdadeiras estão a mostra. A tristeza é a face do mal.

Discordo do jargão budista (aliás muito mal compreendido) de que toda a vida é sofrimento, mas concordo que todo sofrimento é vida também. Quem não sofre não vive, e quem esconde o sofrimento, morre sempre mais que os outros, morre de morte. Se distancia de si, se engana por vontade de ser enganado. É, deliberadamente, anti-humano. É um idiota…..

Cioran possui uma expressão fantástica, que utilizo aqui ao meu bel prazer: morrer de viver.

Quem sofre e agarra-se também ao sofrimento quando ele se apresenta, com toda a intensidade que ele pode ter, assim como se agarraria aos “bons” sentimentos, morre de vida, pois dela experimenta de tudo um pouco….morre vivendo e vivendo morre mais um pouco. A vida é poética em seu absurdo desespero.

Sempre é perigoso refrear uma energia explosiva, pois pode chegar o momento em que deixa de possuir a força para dominá-la”, foi o que disse o filósofo.

São fracos, então, aqueles que frente o sofrimento, aproveitam-no, desfrutam-no e até mesmo, gozam-no?

Sofremos por tantos motivos e quanto mais valioso e mais essencial for o motivo de nosso sofrimento, maior ele será e também muito mais honesto. Não sofremos por trivialidades, por banalidades. Isso não nos diz nada, não nos ensina nada. Trivialidades são mudas para os ouvidos de quem sofre plenamente.

E de todos os sofrimentos existentes em nosso ser, o amor é o mais destrutivo mas também o mais delicioso de todos eles. Quando encontramos o amor de nossa vida, sentimos como se o céu fosse colocado sob nossos pés, como se o mundo fosse o melhor dos mundos possíveis. E amamos, então nos agarramos com a maior intensidade possível às coisas boas, que nos fazem felizes, que nos fazem completos. Por ironia do destino, por erros cometidos, por ignorância ou qualquer outro motivo, tudo acaba. Aquela vida perfeita se estilhaça no chão, como cacos de nossa alma que são impossíveis de colar de novo. Ora, obviamente, o sofrimento será proporcional à alegria adquirida anteriormente. Mas se nos agarramos àquela alegria com toda a força de nosso ser, porque não agarraríamos o sofrimento derivado disso tudo? Por acaso devemos ser imunes a isso, devemos nos abster de sofrer assim? Não sofrer significa admitir que o que terminou não significou absolutamente nada. Pois o que foi essencial, pleno, significativo é o que faz sofrer. E quanto maior o sofrimento, maior o amor. A morte de um ente querido, por exemplo, não se compara à perda do amor de sua vida. Todos estamos, de uma certa forma, convencidos da inevitabilidade da morte. Morreremos e isso é fato, e quando alguém morre, ficamos, e temos ainda a nossa vida para desfrutar. Quando o amor de nossa vida se vai, quem morre somos nós. A diferença é grande. Situação pior, só quando o amor de nossa vida é quem morre. Aí morrem os dois.

Todo sofrimento é possível, mas o de amor é necessário. Necessário porque não é possível, depois de encontrar o amor de sua vida, não sofrer ao perdê-lo. E necessária é também sua expressão.

Porque, então, a necessidade de expressar aquilo que se sente? E porque essa expressão é de um lirismo fundamental, belo e também deprimente? Como aponta Cioran, “o lirismo representa uma força de dispersão da subjetividade, pois indica no indivíduo uma efervescência incoercível que aspira sem cessar a expressão. Essa necessidade de exteriorização é tanto mais urgente quanto mais interior, profundo e concentrado é o lirismo. Porque o homem se torna lírico durante o sofrimento e o amor? Porque esses dois estados, a pesar de serem diferentes por sua natureza e sua orientação, surgem das profundezas do ser, do centro substancial da subjetividade, em certo sentido. Nos tornamos líricos quando a vida em nosso interior palpita com um ritmo essencial”.

Só não concordo em uma coisa com Cioran: amor e sofrimento não são de naturezas diferentes, e sim derivam de apenas uma e mesma natureza. Por isso tanto no amor quanto no sofrimento, nos tornamos líricos e nos expressamos de tal forma. O que muda, posso dizer, é a polaridade das expressões.

Montaigne condena a tristeza. Como os estóicos, através do raciocínio, alivia todo sofrimento. O sofrimento não é digno. A tristeza é “sempre nociva, sempre insensata, e também covarde e desprezível: os estóicos a proíbem aos sábios”, diz o filósofo.

Mas Montaigne também sofreu. E não importa o que ele diga, sofreu. Quando perdeu, não o amor de sua vida mas seu grande amigo (alguns dizem que tinha mais coisa aí, mas me abstenho de opiniões desse tipo) La Boètie, sofreu inimaginavelmente. Montaigne falava de sua amizade de maneira tão lirica, que obviamente a falta que seu grande amigo lhe fazia, o fez sofrer muito. “…e assim se preparou essa amizade que nos uniu e durou quanto Deus o permitiu, tão inteira e completa que por certo não se encontrará igual entre os homens de nosso tempo. Tantas circunstâncias se fazem necessárias para que esse sentimento se edifique, que já é muito vê-lo uma vez a cada três séculos”. E uma frase chave dos Ensaios me permite ver seu sofrimento sendo expresso, liricamente, como todo sofrimento por amor (e esse amor não definirei). “Já me acostumara tão bem a ser sempre dois que me parece não ser mais senão meio: ‘como uma morte prematura roubou-me a melhor parte de minha alma, que fazer com a outra? Um só e mesmo dia causou a perda de ambos’”.

Não é desumano, nem covarde, e muito menos irritante sofrer com todas as suas forças, expressar a tristeza com a maior intensidade possível, pois as “experiências subjetivas mais profundas são, assim mesmo, as mais universais, pela simples razão de que alcançam o fundo original da vida”.

Quando Cioran diz que todos os homens são infelizes só que a maioria não sabe, não entendo com isso o fato de que todos os homens são apenas infelizes, mas que a infelicidade está aí, e está para aí ser sentida.

Sofrimento nos lembra que estamos vivos, que amamos, que nos preocupamos, que nos elevamos acima de qualquer coisa, acima de nós mesmos.

Covardia é condenar quem sofre, é se chatear com a tristeza mas adorar a felicidade. Covardia é se esquivar da vida.

Covardia é não saber sofrer…….

Eis, portanto, meu elogio ao sofrimento, parte essencial da vida, da alma. Mundo inexplorado por covardes que, duvidando de suas próprias forças, acabam perdendo a si mesmos enquanto metade da vida se vai sem ser ao menos compreendida……

(Citações retiradas do Livro de Cioran, Nos cumes do desespero, e de Montaigne, Ensaios)

Entre a loucura e sua história – Descartes e Montaigne na História da Loucura

Introdução

Nosso trabalho tem, como primeiro objetivo, estruturar dois textos de dois autores diferentes (Michel de Montaigne e René Descartes), e esclarecer as idéias ali contidas.

Um segundo objetivo será, identificar as relações entre loucura e razão, verdade e falsidade e possibilidades e limitações do conhecimento humano, nas obras desses dois autores.

E por último, o terceiro objetivo será relacionar os dois autores, encontrando, se possível, pontos de contato e diferenças, através de uma ótica foucaultiana dentro da história da loucura.

Montaigne e a “loucura da razão”

Montaigne começa seu ensaio, intitulado “Da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de acordo com a razão”, relacionando a simplicidade e a ignorância à nossa facilidade em acreditar e em nos deixar persuadir externamente, pois “acreditar é por assim dizer o resultado de uma espécie de impressão sobre a nossa alma, a qual recebe tanto melhor quanto mais tenra e de menor resistência”.[1] Ora, quanto mais vazia é a alma e quanto menos intelecto possuem os indivíduos, diz Montaigne, mais fácil é se deixar levar através da opinião de outrem. Contudo, seria presunção de nossa parte condenar as opiniões inverossímeis, os fenômenos que nossa razão não consegue explicar, etc…, pois isso caracteriza um “defeito comum aos que estimam ser mais dotados de razão que o homem normal”.[2]

A razão, por vezes, nos condiciona a rejeitar de maneira absoluta aquilo que para ela é inverossímil e digna de dúvida, e seria um passo ilegítimo, diz Montaigne, atuar desse modo. “O maior sintoma de loucura no mundo é reduzir essa vontade e essa força à medida de nossa capacidade e de nossa inteligência”.[3]

É apenas através do hábito, que consideramos a veracidade ou a falsidade de alguma coisa. Se nos deparássemos sempre com fenômenos “sobrenaturais”, por exemplo, com fatos que para nós parecem inverossímeis, não os julgaríamos tal como julgamos, e eles perderiam seu signo de “maravilhas”. Montaigne nos exemplifica isso com uma passagem de Lucrécio que diz: “familiarizados com as coisas que cotidianamente vemos , não as admiramos mais e não procuramos entender as causas disso”.[4]

Seguindo o texto de Montaigne, parece-nos que através da nossa crença em alguém digno de confiança, fatos inverossímeis possam ser verdadeiros. Contudo, “se seus testemunhos não bastam para nos convencer, sejamos ao menos prudentes em nosso julgamento, pois considerá-las impossíveis é vangloriar-se de saber até onde vão a possibilidade e a impossibilidade, o que, sem dúvida, é presunção exagerada”.[5] Portanto, acreditar que unicamente nossa razão e nosso intelecto possam nos levar ao verdadeiro e o falso, é acreditar que o crivo da razão é irrefutável e absoluto, o que para Montaigne, é uma loucura. A razão, por si só, não nos conduz simplesmente ao conhecido, mas também nega o desconhecido, o transformando em dúvida e também em falsidade.

Mais uma vez, parece-nos, que para Montaigne, a confiança e a crença em pessoas que possuem autoridade e respeito, não por serem somente  virtuosas e piedosas mas também inteligentes e capacitadas, devem ser levadas em conta, pois, “ainda que não trouxessem nenhum argumento razoável, eles me persuadiriam com a sua autoridade”.[6]

Montaigne, ainda nos lembra, que nosso julgamento já caiu inúmeras vezes em contradição, e o que antes era tido como absolutamente verdadeiro (como artigos de fé, por exemplo), hoje não passam de fábulas, ou seja, o julgamento da razão pode ( e efetivamente é) ser tão falho quanto qualquer outro.

Portanto, fiar-se unicamente na razão, segundo Montaigne, é limitar nossas possibilidades de conhecer, determinando o falso e o verdadeiro, o possível e o impossível de maneira arbitrária e caindo desse modo no erro, ou mais, na ignorância daquilo que nos ultrapassa e não conseguimos capturar e nem compreender.

Descartes e a “insensatez irracional”

Descartes inicia sua primeira meditação, na obra “Meditações”, afirmando que lhe era necessário se livrar de todas as opiniões que  dava crédito e começar a reconstruir desde os fundamentos “se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”[7], ou seja, no conhecimento humano. Diferente de uma dúvida vulgar, essa dúvida de Descartes consiste em uma decisão, da qual todos os homens dotados de razão podem, e deve ter.

Para tal “reconstrução”, Descartes se baseará unicamente naquilo que   lhe chegará através da razão, “uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas”.[8]

Porém, comparando o conhecimento à um edifício, Descartes não examinará cada dúvida em particular, pois o trabalho seria extremamente dispendioso, e se limitará a examinar os fundamentos, os alicerces desse “edifício científico”, tendo em vista que se os fundamentos não se sustentarem, todo o conhecimento desabará, como se o material utilizado para sustentar a construção fosse de péssima qualidade.

No caminho da dúvida, Descartes, no interior de seu método, desabilitará a confiança nos sentidos como forma de se adquirir um conhecimento verdadeiro e sólido: “Tudo o que recebi, até presentemente, como mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos : ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudencia nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou alguma vez”.[9]

Ora, o argumento do erro dos sentidos, e posteriormente da ilusão dos sonhos, fazem parte do caminho da dúvida, que no final, desembocará nas certezas (em última instância, na certeza da existência do “eu”). Portanto, esse caminho, utilizando o argumento do erro (dos sentidos) e o da ilusão (dos sonhos), nos levará, segundo Descartes, à certeza do cogito e a recuperar a verdade objetiva das coisas, postas em dúvida pela razão.

Contudo, em Descartes, há um desequilíbrio fundamental entre o erro e a ilusão de um lado, e a loucura de outro. A loucura é considerada de um modo totalmente diferente, ela atinge de imediato a verdade objetiva, não das coisas mesmas, mas do próprio eu pensante. Os sentidos podem nos enganar, porém, encontramos muitas coisas das quais não podemos duvidar, embora as conheçamos por intermédio deles, um exemplo é a existência de noso próprio corpo[10].

Os sonhos também podem nos enganar, entretanto, “é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são apresentadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes”[11]. Portanto, sentidos e ilusões não atingem de fato a verdade objetiva, essencial das coisas.

A verdade mais clara e distinta, para Descartes, a primeira que fundamenta todas as outras, é a verdade do cogito, do eu pensante, o “penso, logo existo”. Essa confiança no pensamento, na razão, é indubitável. A dúvida reafirma a existência do eu pensante. Duvidar da verdade do cogito e não confiar inteiramente na razão (claro, utilizando o reto caminho e o método cartesiano) seria loucura descabida. O eu penso possui estatuto ontológico, vem seguido da afirmação da existência da subjetividade, sem a qual não posso conhecer nada, nem a mim mesmo.

Portanto, a linha entre a verdade e a falsidade das coisas, situa-se no escopo da razão e do método, sem o qual a razão não possui direção correta, e a possibilidade (ou impossibilidade) do nosso conhecimento não é limitada pelo pensamento, e sim pelos sentidos e pela falta de direção do espírito. Se pensamos, não podemos ser loucos, mas, se pelo contrário, não pensamos, nem sequer existimos.

Razão cartesiana e desrazão montaigniana em Foucault

No século XVI, a loucura possuía um estatuto diferente, em relação ao século XVII. Um exemplo, é a filosofia de Montaigne, onde o ser louco e o não ser louco não era tido como uma certeza. Não havia a certeza sólida da loucura e da desrazão dos homens, todos poderiam ser e não se ao mesmo tempo, loucos e sensatos. Não existe cisão definitiva. “Entre todas as outras formas de ilusão, a loucura traça um dos caminhos da dúvida dos mais freqüentados pelo século XVI. Nunca se tem certeza de não estar sonhando, nunca existe uma certeza de não ser louco”.[12]

Em Descartes, já no século XVII, essa cisão acontece. “A loucura implica a si própria”, e se exclui da razão. Loucura e razão se negam, pois, se sou louco, não penso e nem existo, e se penso, existo e não sou louco. A loucura não diz respeito à razão, (não mais) e se exclui do caminho da dúvida, que leva ao conhecimento. Mais uma vez, se duvido, não sou louco.

Se com Montaigne, fiar-se unicamente na razão como forma de descobrir a verdade era insensatez, com Descartes ocorre o oposto. É necessário guiar nossos conhecimentos unicamente através do crivo da razão, do pensamento, que determina quem eu sou e, em última instância, se sou realmente.

Com Descartes, então, há uma reviravolta, há uma fronteira explícita onde os racionais e os desarrazoados não possuem contatos, são antagônicos e não fazem parte nem de um e nem de outro simultaneamente, estão fadados a distanciarem-se para nunca mais se encontrar. A condição de possibilidade de um discurso sobre a loucura, portanto, está dada, para na modernidade (metado do séc. XVIII até hoje, para Foucault), e também para a concepção de loucura como doença mental.


[1] MONTAIGNE, M. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 93.

[2] Id. Ibidem.

[3] Idem. p. 94.

[4] Id. Ibidem.

[5] Id. Ibidem

[6] Montaigne, citando Cícero. p. 95

[7] Descartes, R. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 92.

[8] Id. Ibidem.

[9] Id. Ibidem.

[10] id. Ibidem. Ver p. 94, o argumento dos sentidos.

[11] id. Ibidem. Ver. p. 94, o argumento dos sonhos.

[12] Foucault, M. História da Loucura. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 47.

Um pouco de Montaigne – Filosofia Para o Dia-a-Dia

Alain de Botton, filósofo suíço, apresenta uma série de 6 programas sobre os principais filósofos. Schopenhauer, Nietzsche, Sêneca, Epicuro, Sócrates e Montaigne.

Parte I

Parte II

Parte III

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Parte I

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Montaigne – Ensaios – Livro I – Cap. XXVII – Da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de acordo com a razão

Montaigne: juízo, razão e loucura.

Não é sem motivo que atribuímos à simplicidade e à ignorância a facilidade com que certas pessoas acreditam e se deixam persuadir, pois”[1], Montaigne pensa que “acreditar [que uma coisa é verdadeira] é por assim dizer o resultado de uma espécie de impressão sobre a alma(…) Quanto mais a alma é vazia e nada tem como contrapeso, tanto mais ela cede facilmente à carga das primeiras impressões”.[2] Por outro lado, classifica de tolo o ato de condenar como falso o que não parece verossímil, o que diz ser comum aos que pensam ter mais razão que o homem normal – ele mesmo confessa ter já sentido pena destes que acreditavam nestes, que julgava, “absurdos” ou “falsidades”.

A experiência, diz Montaigne, acrescenta algo a suas primeiras convicções, embora ele tenha procurado verificar as crenças que recusava, mas sua razão o “impeliu a reconhecer que condenar uma coisa de maneira absoluta é ultrapassar os limites que podem atingir a vontade de Deus[3] e a força da natureza; “e que o maior sintoma de loucura no mundo é reduzir essa vontade e essa força à medida de nossa capacidade e nossa inteligência[4]”. E, para ilustrar o assunto, exemplifica: “quem nunca viu um riacho, ao deparar com o primeiro, pensou que fosse o oceano; as coisas maiores entre as que conhecemos, nós as estimamos as maiores em seu gênero[5]. Citando Cícero argumenta que nós “familiarizados com as coisas que cotidianamente vemos, não as admiramos mais e não procuramos entender as causas disso[6]. Daí considerarmos que as coisas que não nos são absurdas ou inexplicáveis serem consideradas naturais mais por hábito do que por ciência. “O infinito poder da natureza deve ser julgado com mais deferência e tendo em conta nossa ignorância e nossa fraqueza”, ou seja, o limite de nossa razão. Montaigne diz que observaríamos a regra do “nada de mais” que Quílon recomenda se: “aprendêssemos com exatidão a diferença entre uma coisa e outra, entre o que está contra a ordem e a natureza, e o que se situa simplesmente fora do que admitimos comumente, entre não acreditar cegamente e não duvidar com facilidade.[7] Pois, presunção exagerada é julgar impossíveis coisas pouco verossímeis a que nos são contadas, pois prudente tem de ser este julgar e não o é “vangloriar-se de saber até onde vão a possibilidade e a impossibilidade”.[8]

Mas, e quanto aos milagres, que se lêem e se ouvem, se tratam de ignorantes e de simples de espírito, ou de perversos e impostores? Sobre os grandes autores destes milagres, entre eles Santo Agostinho e Santo Hilário, diz, citando Cícero, que: “ainda que não trouxessem nenhum argumento razoável, eles me persuadiriam com a sua autoridade”.[9] Sendo, assim, é muito perigoso, para Montaigne, desprezar o que não compreendemos. Mesmo que não apresentem nenhuma prova, a não ser seu testemunho, singular presunção ou loucura seria opinar sobre o verdadeiro e o falso unicamente de acordo com a razão.

Assim, a seu ver, “o que acarreta tanta confusão em nossas consciências, nestes tempos de perturbações religiosas, é esse abandono parcial que fazem os católicos de sua fé[10]. “Ora, é necessário, em tudo, submetermo-nos aos poderes eclesiásticos que reconhecemos; ou tudo lhe recusamos”.[11]A glória e a curiosidade são dois flagelos de nossa alma; esta nos impele a meter o nariz em tudo; aquela nos proíbe deixar seja o que for sem decisão ou solução.[12] Mas, como se busca à prudência antes à loucura, se deve evitar pretender saber mais da verdade que o pode nossa razão e, desta mesma maneira, não julgar falso o que também não podemos julgar de acordo com a razão. Pois, aqui, verificamos o limite de nosso juízo ou opinar sobre as coisas e conseguimos dicernir que: loucura é o fato de pretendermos ir além deste limite para onde a razão não tem lugar e só resta acreditar ou não acreditar.


[1] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 93

[2] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 93

[3] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 94

[4] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 94

[5] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 94

[6] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 94

[7] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 94

[8] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 94

[9] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 95

[10] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 95

[11] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 95

[12] MONTAIGNE, Michel. Em Ensaios, trad. De S. Milliet, col. “Os Pensadores”. S; Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 95

Paulo Übermensch