SÉCULO XXI – UMA POSSIBILIDADE DA TEOLOGIA CRISTÃ?

“O século XXI será religioso, ou simplesmente não será!”

(Frase atribuída a André Malraux)

Introdução.

O presente trabalho pretende refletir sobre os rumos da teologia cristã na

contemporaneidade e em suas perspectivas para o presente século. Não se propõe uma reflexão exaustiva, porém um breve olhar sobre as possibilidades e características da teologia em diálogo com o mundo. O título se refere ao problema a ser elucidado, cuja resposta, um tanto tímida, se insinua ao término da reflexão. As bases teóricas se encontram nas referências e alusões contidas no escrito.

Século XXI – Uma possibilidade para a teologia cristã?

A frase em epígrafe é comumente atribuída a André Malraux (1901-1976), literato francês. Ela reflete sobre a configuração de um mundo que, na contramão dos prognósticos do projeto do Iluminismo, parece conceder cada vez mais espaço para múltiplas expressões de religiosidade.

Por paradoxal que seja, é natural que o ser humano, definido por Aristóteles (c. 385-322 a.C.) como “animal racional” (gr. antropos tou zoon logikon), possa também ser reconhecido como homo religiosus, conforme o faz Mircea Eliade (1907-1986), historiador das religiões e mitólogo. De acordo com o guia elaborado pelos pesquisadores do “Real Instituto de Antropologia […]”, a antropologia admite desconhecer qualquer povo, daqueles até hoje estudados, que não tivessem alguma expressão de religiosidade (1971, p. 222), essa constatação, unida a outros fatores, levou à conclusão lógica expressa por Erich Fromm (1977, p. 137): “A necessidade religiosa é parte integrante das condições básicas da existência da espécie humana”.

Agora, em pleno alvorecer do século XXI vislumbra-se a expressão vigorosa da religiosidade, tanto no âmbito das religiões organizadas, como o Islamismo e o cristianismo evangélico e pentecostal, quanto em formas alternativas de espiritualidade; até mesmo personalidades conhecidas por suas críticas às religiões, céticos, agnósticos e até ateus têm procurado um veículo de expressão de seu sentimento religioso, naquilo que tem sido identificado como “espiritualidade para ateus” [1].

Qual será o espaço do cristianismo na contemporaneidade? E, qual o papel da teologia cristã para que alcance esse espaço?

O cristianismo tem como missão o anúncio do evangelho, enquanto resposta aos corações sedentos de sentido e significação! Mas, tem como desafio anunciar a um mundo, que desde o advento da Modernidade, se torna cada vez mais secularizado.

Essa secularização pode ser definida ao modo do Cardeal Marty (1970, p. 7): “A secularização se apresenta como uma fria aceitação da condição histórica do homem e das tarefas do nosso tempo, abstraindo-se da religião.”

O secularismo sustenta o moderno ateísmo, e, se funda nos princípios do antropocentrismo e do racionalismo.

A teologia cristã terá, então, que se haver com estes dois princípios, demonstrando a capacidade em falar sobre Deus sem escamotear o problema do humano e concomitantemente pregar a mensagem da fé, sem deixar de preencher os requisitos da racionalidade.

As tentativas levadas em efeito pelas escolas teológicas, calcadas no liberalismo, em diálogo com o mundo moderno, resultaram catastróficas para o cristianismo histórico, considerando, sobretudo, os casos mais extremos, tais como: o movimento da morte de Deus (Paul Van Buren) e a proposta do cristianismo sem religião (Bonhoeffer).

Estas escolas teológicas minaram as forças de muitas igrejas históricas e puseram em desconfiança da teologia, muitas igrejas evangélicas, sobretudo de confissão pentecostal[2].

Qual o possível caminho para que a teologia fale ao homem contemporâneo, sem perder sua identidade legitimamente cristã?

Para aqueles que estão familiarizados com a Bíblia e com a história da igreja cristã, admite-se não haver uma resposta nova, apenas aquela já conhecida do cristianismo histórico, que segue uma tradição desde os apóstolos, passando pelos padres e reafirmada pelos reformadores.

A teologia cristã há de ser cristocêntrica, ela necessita urgentemente reconhecer que falar sobre o humano, caído ou (e) regenerado, exige ter Cristo como ‘pedra de toque’. A teologia há de ter na cristologia o seu centro, uma cristologia equilibrada e saudável, somente em torno de uma cristologia com essas características é que deve gravitar a antropologia teológica.

O apóstolo Paulo, por exemplo, iluminou a compreensão cristã acerca do homem, em passagens memoráveis, onde fala de Cristo[3].

Como falar sobre a verdadeira essência do ser humano? Jüngel (1977, pp. 254-255) sintetiza a visão cristã sobre o humano.

A verdadeira essência do homem é sua correspondência (possibilitada por uma palavra que lhe fala) ao movimento pelo qual Deus, em Jesus Cristo, desceu até o homem. Esse movimento para baixo, para o homem, impede a este a subida à divindade. Assim como Deus se manifestou como Senhor no abaixamento, assim, também só na participação desse abaixamento que a imagem de Deus chegará à “glória dos filhos de Deus” (Rom. 8, 21)

Concluímos, pois junto a Barth (1954, p. 60, tradução nossa) em que “[…] nesta pessoa única vive e palpita toda a obra de Deus, e, todo aquele que diz “Deus”, no sentido em que o diz a Bíblia, haverá de dizer necessariamente e sem exceção: Jesus Cristo”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

 

BARTH, Karl. Bosquejo de Dogmatica.  Tradução do texto alemão por M. Gutierrez-Marin. Argentina: Editorial  La Aurora y Casa Unida de Publicaciones, 1954.

 

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

 

FROMM, Erich. Ser ou Ter? Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

 

Guia Prático de Antropologia. Real Instituto de Antropologia da Grã-Bretanha e da Irlanda. Traduzido por Octavio Mendes Cajano. São Paulo, Editora Cultrix, 1971.

 

JÜNGEL, E. O Homem que Corresponde a Deus. IN: GADAMER, H. G.; VOGLER, P. Nova Antropologia: O Homem Em Sua Existência Biológica, Social e Cultural. Volume 6. São Paulo: EPU, Editora da Universidade de São Paulo, 1977

 

MARTY, François (Org.) Ateísmo e Secularização. Novas Fronteiras. Caxias do Sul – RS. Edições Paulinas. Volume 3. p. 7-11.  1970.

 

Shlesinger, Dr. Hugo; PORTO, Pe. Humberto. As Religiões Ontem e Hoje. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.

[1]Para este tópico recomenda-se a leitura de “O Espírito do Ateísmo”, de André Comte-Sponville, “God On Your Own” (Deus do Seu Jeito, tradução livre), de Joseph Dispenza, “Living Without God” (Vivendo Sem Deus, tradução livre) e “Waking Up” (Despertando, tradução livre), de Sam Harris. Todas estas obras propõem a espiritualidade para ateus.

[2] A forte ênfase no culto emocional e nas experiências religiosas particulares dos fiéis pode ser interpretada como sintomas do afastamento da teologia, decorrente dessa desconfiança.

[3] Vide, por exemplo, I Cor. 15,45; 15, 20; Col. 1,18 e At. 26, 23.

Vladimir Safatle – 30 aulas – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Estes links mostram as aulas postadas ate agora.

Aula 1

Aula 2

Aula 3

Aula 4

Aula 5

Aula 6

Aula 7

Aula 8

Aula 9

Aula 10

Aula 11

Aula 12

Aula 13

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Aula 15

Aula 16

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Aula 20

Aula 21

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Aula 24 

Aula 25

Aula 26 

Aula 27

Aula 28

Aula 29

Aula 30

Vladimir Safatle – Aula 30/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 30 [Final]

 

 

Na aula de hoje, terminaremos subseção: “O espírito alienado de si: a cultura”. Isto nos permitirá, na aula que vem, terminar o curso através de um comentário das questões centrais que aparecem na última subseção da seção “Espírito”: esta intitulada “O espírito certo de si: a moralidade”. Tais questões nos permitirão compreender elaborações centrais apresentadas por Hegel na seção final Fenomenologia do Espírito: esta intitulada “O Saber Absoluto”.

            Vimos, na aula passada, como Hegel se via obrigado a compreender as consequências deste processo de auto-dissolução do mundo da cultura através da ironização que foi objeto de nosso comentário há duas aulas atrás. Desta ironização absoluta das condutas, Hegel procurava nos demonstrar que seguiam dois desdobramentos possíveis, duas posições no que diz respeito a recuperação de princípios de valoração e formação capazes de dar conta da perda de fundamento para o Eu no interior de modos de socialização na aurora da modernidade: o emotivismo da recuperação moderna da fé (Glauben) e a pura intelecção do esclarecimento. Contra a ausência de fundamento de um processo de formação vinculado à cultura, a consciência pode procurar afastar-se do mundo através do puro pensar.

Hegel lembra que estes dois movimentos da essência irão aparecer de maneira separada, embora tenham a mesma fonte. A pura intelecção é esta essência interior satisfeita em uma quietude passiva. Como ela nasce de um afastamento do mundo da cultura, de início ela não tem conteúdo em si mesma, seu objeto é o puro Eu enquanto fonte do conceituar, isto no sentido de que o objeto só terá verdade para ela na medida em que tiver a forma do Eu (tal como vimos no caso da análise hegeliana das categorias). Lembremos aqui novamente deste postulado idealista central: a estrutura do objeto deve duplicar a estrutura do Eu.

            Já a fé irá aparecer também como pura consciência, mas que tem por objeto a essência que adquire, inicialmente, a figura degradada da representação de um ser objetivo, de um Outro além da consciência-de-si (Deus). Por isto, ela é negação do mundo através de um serviço em nome de Deus. No entanto, Hegel lembra que: “ a articulação do mundo real também constitui a organização do mundo da fé”[1], isto no sentido de que o movimento fenomenológico de auto-dissolução das determinidades duplica a estrutura do mundo teológico. Maneira de insistir que esta negação do mundo apenas irá perpetuá-lo pois é feita a partir dele mesmo.

Vimos como, na Fenomenologia, Hegel organiza sua reflexão sobre o iluminismo e suas expectativas de racionalização a partir de uma confrontação com a fé que, em vários pontos, apresenta-se como uma retomada do conflito, próprio à polis grega, entre um princípio humano e um princípio divino de conduta socialização. Continuar lendo

Vladimir Safatle – Aula 29/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 29

 

Na aula de hoje, daremos continuidade ao comentário da subseção “O Espírito alienado de Si: a cultura”, terminando a primeira parte da subseção, esta intitulada “O mundo do Espírito alienado de si” e dando conta da segunda parte: “O iluminismo”. Para a aula que vem, ficará o comentário da última parte, esta dedicada à reflexão fenomenológica sobre a Revolução Francesa, “A liberdade absoluta e o terror”, assim como o comentário da primeira parte da última subseção da seção “Espírito”, esta intitulada “O Espírito certo de Si: a moralidade”. Parte esta onde Hegel procura dar conta do que ele denomina de “Visão moral do mundo” no interior do idealismo alemão. Desta forma, terminaremos este curso comentando as figuras da consciência-de-si que finalizam a seção “Espírito”, como a Gewissen, a bela alma e o confronto entre má consciência e consciência do dever, isto a fim de mostrar como as questões postas neste momento da Fenomenologia nos levarão diretamente à tematização correta do que Hegel entende por Saber Absoluto.

            Nós vimos, desde o início do comentário da seção “Espírito” como Hegel procura constituir um trajeto de formação histórica da consciência que só ganha inteligibilidade se o compreendermos como o desdobramento histórico dos modos com que sujeitos se inserem e absorvem regimes de racionalidade encarnados em instituições e práticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ação orientada por “razões para agir”. Partimos da ruptura das expectativas depositadas na eticidade da polis grega devido à confrontação entre dois princípios que se transformam em antagônicos no interior da polis: a lei humana da comunidade e a lei divina da família. Vimos como expectativas universalizantes de reconhecimento depositadas, de maneira imperfeita, na lei divina nos levaram ao reconhecimento do universal abstrato da pessoa no estado romano de direito. Modo de reconhecimento que, por sua vez, permitiu o advento de uma experiência da interioridade que será fundamental para a constituição do princípio moderno de subjetividade.

Era através desta experiência de distanciamento do mundo resultante da posição da interioridade como espaço privilegiado para a singularidade da subjetividade que entramos na segunda subseção intitulada, não por outra razão: “O espírito alienado de si: a cultura”. “O mundo tem aqui a determinação de ser algo exterior (Äusserliches), o negativo da consciência-de-si”, dizia Hegel a fim de dar conta do teor de toda esta subseção que visa cobrir este período histórico que vai da Alta Idade Média até os desdobramentos da Revolução Francesa. Teor marcado pelo esforço da consciência em se reconciliar com o mundo, nem que seja às custas de uma reconstrução, de uma formação revolucionária do mundo social e das práticas de interação social, impulso este de formação dependente de uma reflexão filosófica de larga escala sobre a essência e seus modos de relação com a subjetividade.

Vimos como Hegel iniciava lembrando que se formar implica em “acordar-se (gemäss gemacht) com a efetividade”, com a substância, ou ainda, com um padrão de conduta que tenha valor de espécie (Art) e que permita operações valorativas que viabilizem a indicação de algo como um bem ou um mal. Tais operações valorativas aparecem, no interior de práticas sociais, como ação feita em conformidade com dois princípios distintos: um é o poder do Estado ou outro é a riqueza (Reichtum). De fato, Hegel opera tal distinção entre poder de Estado e riqueza porque tem em vista a maneira com que a conduta ética aristocrática, vinculada ao sacrifício de Si pela honra dos princípios reais, apareceu, em solo europeu, como princípio virtuoso de formação em contraposição ao vínculo burguês à acumulação de riqueza e propriedade. Hegel então procurava analisar se a ética aristocrática da honra podia, através de sua ação, realizar seu próprio conceito. Ética que se via como “heroísmo do serviço”, ou seja, como a pessoa que renuncia à posse e ao gozo de si mesma em prol da efetivação do poder ao qual se sacrifica.

No entanto, partindo desta noção já apresentada na seção “raz Continuar lendo

Vladimir Safatle – Aula 28/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 28

 

Na aula passada, acompanhamos este trajeto de formação histórica da consciência que Hegel procura descrever na seção Espírito. Vimos como tal trajeto só ganha inteligibilidade se o compreendermos como o desdobramento histórico dos modos com que sujeitos se inserem e absorvem regimes de racionalidade encarnados em instituições e práticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ação orientada por “razões para agir”. A partir da ruptura das expectativas depositadas na eticidade da polis grega e do advento da experiência de interioridade resultante do reconhecimento abstrato da pessoa no estado romano de direito, adentramos nesta parte principal da nossa seção, parte intitulada: “O espírito alienado de si: a cultura”.

Esta segunda parte da seção Espírito é a mais extensa de todas e tenta cobrir um longo período histórico que vai da Alta Idade Média até os desdobramentos da Revolução Francesa. Hegel descreve este período nos seguintes termos:

O mundo tem aqui a determinação de ser algo exterior (Äusserliches), o negativo da consciência-de-si. Contudo, esse mundo é a essência espiritual, é em si a compenetração do ser e da individualidade. Seu Dasein é a obra da consciência-de-si, mas é igualmente uma efetividade imediatamente presente e estranha a ele; tem um ser peculiar e a consciência-de-si ali não se reconhece.[1]

            Ou seja, a consciência não reconhece mais a efetividade exterior do mundo como seu próprio trabalho, como sua própria substância (tal como ocorria nas relações iniciais de eticidade). Haverá um longo caminho de reconciliação com um mundo contra o qual a consciência não cessará de lutar. No entanto, tal reconciliação só será possível quando a consciência for capaz de internalizar o mundo como o negativo de si mesma, encontrar, em si mesma, aquilo que a nega. Vimos tal movimento em operação em outros momentos da Fenomenologia. Ele foi a nossa maneira de ler o imperativo idealista de duplicação entre a estrutura do objeto e a estrutura do Eu. Nossa tarefa ficou sendo a de compreender como isto se dará no interior de um movimento historicamente determinado de formação.

Hegel inicia lembrando que se formar implica em “acordar-se (gemäss gemacht) com a efetividade”, com a substância, ou ainda, com um padrão de conduta que tenha valor de espécie (Art) e que permita operações valorativas que viabilizem a indicação de algo como um bem ou um mal. Tais operações valorativas aparecem, no interior de práticas sociais, como ação feita em conformidade com dois princípios distintos: um é o poder do Estado ou outro é a riqueza (Reichtum). De fato, Hegel opera tal distinção entre poder de Estado e riqueza porque tem em vista a maneira com que a conduta ética aristocrática, vinculada ao sacrifício de Si pela honra dos princípios reais, apareceu, em solo europeu, como princípio virtuoso de formação em contraposição ao vínculo burguês à acumulação de riqueza e propriedade. Pois Hegel quer mostrar como esta ética aristocrática irá produzir as condições objetivas para o Iluminismo.

Nesta perspectiva, o poder de Estado aparece como “ a substância simples, a obra universal, a Coisa mesma, na qual é enunciada aos indivíduos sua essência”. Ele é a “absoluta base (Grundlage)” do agir de todos. Por outro lado, a riqueza é o que “se dissolve no gozo de todos”, gozo movido pelo egoísmo de quem segue apenas seus próprios interesses imediatos (embora já vimos como Hegel contesta tal atomismo através da tematização do sistema de necessidades). A consciência pode optar pautar suas ações e julgamentos, seja a partir de um princípio, seja a partir do outro.

Hegel lembra que estes princípios podem ser invertidos. Ao internalizar princípios de formação e conduta através da obediência ao poder de Estado, a consciência encontra aqui: “sua simples essência e substância em geral, mas não sua individualidade como tal, Encontra nele, sem dúvida, seu ser em-si, mas não seu ser para-si”[2]. A obediência aparece como opressão. A riqueza, ao contrário, é “doadora de mil mãos” que tudo entrega à consciência e lhe permite o gozo da realização de seu próprio projeto, ela “a todos se entrega e lhes proporciona a consciência de seu Si”. Estas duas maneiras de julgar darão figuras distintas da consciência: a consciência nobre e a consciência vil.

            Na aula passada, seguimos os desdobramentos da consciência nobre. De fato, ela se vê como o “heroísmo do serviço”, como a pessoa que renuncia à posse e ao gozo de si mesma em prol da efetivação do poder ao qual se sacrifica. Desta forma, ela dá atualidade ao poder de Estado através de sua própria ação. Em última instância, é a consciência nobre que diz o que o poder de Estado é, daí porque Hegel afirma que este poder : “ainda não possui nenhuma vontade particular, pois a consciência-de-si servidora ainda não exteriorizou ser puro Si e assim vivificou o poder de Estado”[3]. A linguagem da consciência nobre aparece pois como o conselho (Rat) dado pelo “orgulhoso vassalo” ao poder de Estado para a efetivação do bem comum. Hegel insiste pois que este sacrifício da consciência nobre não é efetivamente um, já que é conselho que dirige o poder de Estado (jogando com a  ambiguidade) e que pauta suas ações a partir de um conceito de honra que é vínculo ao outro.

            Neste contexto, vimos como Hegel fazia novamente alusão à experiência da negatividade da morte como verdadeiro processo de formação. O verdadeiro processo de formação é o sacrifício que: “só é completo quando chega até a morte”, sacrifício no qual a consciência se abandona “tão completamente quanto na morte, porém mantendo-se igualmente nesta exteriorização”[4].

Mas neste ponto, Hegel acrescenta uma reflexão extremamente importante. Ele afirma que é através da linguagem que a consciência realiza enfim este sacrifício de si. Desta forma, a linguagem é claramente enunciada como processo de exteriorização e de auto-dissolução da identidade que deve ser lido na continuidade das reflexões de Hegel sobre o trabalho:

Com efeito, a linguagem é o Dasein do puro Si como Si, pela linguagem entra na existência a singularidade sendo para si da consciência-de-si, de forma que ela é para os outros (…) Mas a linguagem contém o Eu em sua pureza, só expressa o Eu, o Eu mesmo. Esse Dasein do Eu é uma objetividade que contém sua verdadeira natureza. O Eu é este Eu mas, igualmente, o Eu universal. Seu aparecer é ao mesmo tempo sua exteriorização e desaparecer e, por isto, seu permanecer na universalidade (…) seu desaparecer é, imediatamente, seu permanecer[5].

Ou seja, após ter dito, na seção anterior da Fenomenologia, que a linguagem era uma exteriorização na qual o indivíduo não se conservava mais, abandonando seu interior a Outro, Hegel afirma agora o inverso, ou seja, que a linguagem é o Dasein do Si como Si. No entanto, esta contradição é apenas aparente, pois a linguagem perde seu caráter de pura alienação quando compreendemos o Eu não como interioridade, mas como aquilo que tem sua essência no que se auto-dissolve. Ao falar do Eu que acede à linguagem como um universal, Hegel novamente se serve do caráter de dêitico de termos como Eu, isto, agora etc. “Eu” é uma função de indicação a qual os sujeitos se submetem de maneira uniforme. Ao tentar dizer ‘eu’, a consciência desvela a estrutura de significante puro do Eu, esta mesma estrutura que o filósofo alemão chama de : “nome como nome”. Uma natureza que transforma toda tentativa de referência-a-si em referência a si ‘para os outros’ e como um Outro. Este eu enquanto individualidade só pode se manifestar como o que está desaparecendo em um Eu universal. Novamente, Hegel se serve da lógica dos dêiticos para falar daquilo que é essencial nos usos da linguagem. A peculiaridade de nossa passagem é que ela ainda servirá para que Hegel mostre uma situação de prática social na qual o Eu se apresenta integralmente em uma linguagem que não expressa sua individualidade: trata-se da lisonja.

Hegel fez tais considerações sobre a linguagem para poder introduzir uma mudança maior na relação entre a consciência nobre e o poder de Estado com o advento da monarquia absoluta. A consciência nobre não mais tenta, através da linguagem do conselho, determinar a vontade de um poder do Estado que passa à condição de Eu deliberante e universal em sua singularidade: único nome próprio diante de nomes sem singularidade. O nome do monarca é pura vontade que decide. Desta forma: “o heroísmo do serviço silencioso torna-se o heroísmo da lisonja”, de um alienar-se, através da bajulação, à vontade de um Outro (Hegel pensa sobretudo na nobreza palaciana de Versailles sob Luis XIV):

Vê sua personalidade como tal dependendo da personalidade contingente de um Outro; do acaso de um instante, de um capricho, ou aliás de uma circunstância indiferente. No Estado de direito, o que está sob o poder da essência objetiva aparece como um conteúdo contingente do qual se pode abstrair e o poder não afeta o Si como tal, mas o Si é antes reconhecido. Porém aqui o Si vê a certeza de si, enquanto tal, ser o mais inessencial e a personalidade pura ser a absoluta impessoalidade[6].

 Ou seja, do Senhor do mundo ao monarca absoluto, temos um aprofundamento da apropriação reflexiva da natureza dilacerada da consciência. Pois, aqui,  a consciência nobre se encontrará tão dilacerada quanto a consciência vil, embora este dilaceramento seja condição para a determinação da verdade da consciência, até porque: “ a consciência-de-si só encontra sua verdade no seu dilaceramento absoluto”. Mas este dilaceramento deverá ainda durar um pouco mais.

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As Antinomias de Kant

Immanuel Kant nasceu na Prússia em 1724. Tinha 46 anos quando foi nomeado  professor titular da Universidade de Königsberg – sua cidade natal –, responsável pela  cátedra de Lógica e Metafísica. Onze anos depois, em 1781, publicou a sua obra mais importante, a Crítica da Razão Pura, que haveria de ter uma segunda edição, consideravelmente revista (e com um novo prefácio), em 1787. O objectivo principal de Kant nesta obra era investigar a possibilidade de a metafísica se constituir como uma verdadeira ciência. Nessa investigação, Kant considerou que o problema central seria o de saber como são possíveis os juízos sintéticos a priori, uma vez que é em tais juízos que o conhecimento metafísico, se for possível, se expressará.
Kant chegou a uma conclusão negativa, segundo a qual a metafísica não é possível, se a entendermos no sentido antigo (“dogmático”) do termo, enquanto conhecimento a priori das coisas em si e do supra-sensível (onde se incluem, nomeadamente, Deus, a liberdade e a imortalidade). Nós só conhecemos as coisas como fenómenos, quer dizer, enquadradas nas formas da intuição e do pensamento, como objectos de uma experiência possível. A ideia de um conhecimento metafísico transcendente, com o qual pudéssemos ultrapassar os limites da nossa experiência, constitui uma ilusão. Trata-se, no entanto, de uma ilusão inevitável, que tem origem na dialéctica natural da razão humana. Como alternativa, Kant propõe uma nova concepção da metafísica, a que também chama “filosofia transcendental”, cuja tarefa consistiria em reunir num sistema coerente todos os conceitos e todos os princípios que constituem condições a priori da
possibilidade da própria experiência.
O conhecimento humano, segundo Kant, requer a colaboração da sensibilidade – faculdade das intuições, através das quais os objectos nos são dados – com o entendimento – faculdade dos conceitos, através dos quais os objectos são pensados. “Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas. Pelo que é tão necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objecto na intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las aos conceitos). […] O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua reunião se obtém conhecimento” (Kant 1985: 89). Mas, a rigor, o entendimento não é a única faculdade que opera segundo conceitos, pois isso também é verdade da razão. A distinção kantiana entre entendimento e razão parece ser sobretudo uma distinção entre dois modos de operar com conceitos (ou duas maneiras de pensar): na primeira, aplicando-os aos objectos da experiência; na segunda, formando novos conceitos, aos quais nenhum objecto de qualquer experiência possível corresponde. Homenageando Platão, Kant chama Ideias aos conceitos puros da razão, que diz serem três: a ideia de alma, a ideia do mundo como totalidade e a ideia de Deus. Estas ideias seriam geradas quando tomamos uma certa forma de inferência e tentamos torná-la absoluta, quer dizer, tentamos usá-la para chegar a uma conclusão que não dependeria já de nenhuma premissa. Seria assim, por exemplo, que formamos o conceito puro de “o mundo como um todo” (algo que nunca poderia ser dado numa experiência), a partir da simples forma das inferências causais: das relações causa-efeito entre objectos empíricos passamos à ideia do mundo como totalidade que contém em si todas as causas e todos os efeitos.
Ao pensar sobre o mundo como totalidade, a razão é inevitavelmente conduzida a antinomias. Para Kant, uma antinomia é um par de argumentos cujas conclusões são 2contraditórias (ele chama-lhes “tese” e “antítese”). São quatro as antinomias da razão pura que Kant nos apresenta. O objectivo, em todas elas, é mostrar que a razão é naturalmente levada a contradizer-se a si mesma quando pensa sobre o mundo como um todo.

1ª antinomia:
Tese: «O mundo tem um começo no tempo e é também limitado no espaço.»
Antítese: «O mundo não tem nem começo nem limites no espaço, mas é infinito tanto no tempo como no espaço.»
Uma série infinita é, diz Kant, uma série que nunca se pode completar. Não é possível, então, que já tenha existido uma série infinita de mundos. Este é o argumento a favor da Tese. Por outro lado, a Antítese é obtida pelo seguinte raciocínio: Se o mundo teve um começo, houve um momento do tempo em que ele não existia. Se considerarmos esse “tempo vazio” em que o mundo não existia, todos os seus momentos se equivalem, não há nenhuma diferença entre eles. Por isso, o mundo não pode ter começado num desses momentos, em detrimento dos outros.

2ª antinomia:
Tese: «Toda a substância composta, no mundo, é constituída por partes simples e não existe nada mais que o simples ou o composto pelo simples.»
Antítese: «Nenhuma coisa composta, no mundo, é constituída por partes simples e não existe nada no mundo que seja simples.»
O argumento para estabelecer a Tese tem a forma de uma reductio ad absurdum.
Tomemos um objecto qualquer e suponhamos que ele não é composto por partes
simples. Decomponhamo-lo em partes e, depois, decomponhamos cada uma dessas
partes, e as partes dessas partes, etc. Uma vez que não existem simples, o processo de
decomposição continuará sem fim. Mas isso implica que nada restará desse processo – o
que não é possível, pois o objecto é uma substância. Logo, a suposição é falsa e concluise que o objecto é composto por partes simples.
O argumento da Antítese começa por supor que existe uma parte simples. Essa parte ocupará um certo espaço e este, como todo o espaço, será divisível. Mas então aquela parte simples também será divisível – o que não é possível. Logo, a suposição é falsa e conclui-se que não existem partes simples.
Kant chama “antinomias matemáticas” a estas duas primeiras e considera que, em ambas, tanto a Tese como a Antítese são falsas. O erro que está na base de todos os argumentos apresentados é a ideia de um todo cósmico, à qual nenhum objecto poderia corresponder na experiência.

3ª antinomia:
Tese: «A causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenómenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário admitir para os explicar.»
Antítese: «Não há liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente em virtude das leis da natureza.» 3
O argumento a favor da Tese é: Suponhamos que a cadeia de causas de um certo acontecimento não tem um primeiro membro. Então, ela será infinita e, por isso, o acontecimento não terá nenhuma causa suficiente – o que é impossível. Logo, a suposição é falsa e conclui-se que há uma primeira causa de cada acontecimento.
O argumento a favor da Antítese é: Suponhamos que a cadeia de causas de um acontecimento tem um primeiro membro. Então, este primeiro membro não foi causalmente determinado por nada. Mas, pela lei da causalidade, sabemos que todo o acontecimento tem uma causa. Logo, a suposição é falsa e conclui-se que nenhuma cadeia causal tem um primeiro membro.

4ª antinomia:
Tese: «Ao mundo pertence qualquer coisa que, seja como sua parte, seja como sua causa, é um ser absolutamente necessário.»
Antítese: «Não há em parte alguma um ser absolutamente necessário, nem no mundo, nem fora do mundo, que seja a sua causa.»
A quarta antinomia diz respeito à existência de um ser necessário. Este ser necessário é considerado como causa do mundo, mas tanto a tese como a antítese contemplam a possibilidade de ele pertencer ao mundo, como sua parte (ou, talvez, de ser idêntico ao próprio mundo). O que está aqui em causa é a relação de dependência em que cada causa contingente está com outras causas que a antecedem: deverá esta dependência terminar numa causa que exista necessariamente? Nas palavras de Kant (1985: 412-4):

“O mundo sensível, como conjunto de todos os fenómenos, contém ao mesmo tempo uma série de mudanças. […] Mas toda a mudança está sujeita a uma condição que a precede no tempo e que a torna necessária. Ora, todo o condicionado que é dado supõe, relativamente à sua existência, uma série completa de condições até ao incondicionado, que é o único que é absolutamente necessário. Portanto, deve existir algo absolutamente necessário, para que uma mudança exista como sua consequência. […] Eis porque no mundo há algo de absolutamente necessário, quer seja a própria série inteira do mundo, quer uma parte dela.”

Este é o argumento em defesa da Tese. Kant fala de “mudanças”, mas é evidente que o que tem em vista é a circunstância em que um objecto depende para existir de outro que o precede. Essa relação de dependência gera uma cadeia de objectos, cujo limite é ou o primeiro membro da cadeia (o qual haveria de ser causalmente independente) ou a própria totalidade da cadeia (“a série inteira do mundo”). Quer num caso quer noutro, esse limite não dependerá ele próprio de nenhuma condição e, por isso, terá uma existência necessária.
Contra isto, o argumento da Antítese diz que, se o limite for a própria série inteira, ele não poderá ser necessário, uma vez que nenhuma parte dele é necessária; e, se for o primeiro membro da série, será um objecto que faz parte do mundo e que, por isso, terá de depender de alguma outra coisa para existir.
Kant adopta uma atitude diferente relativamente às duas últimas antinomias, uma vez que considera que na terceira está em causa a existência de livre arbítrio e que a quarta diz respeito à existência de Deus. A solução que propõe consiste em dizer que, nestas duas antinomias, a tese e a antítese podem ser ambas verdadeiras e que a contradição 4entre elas é apenas aparente, ficando a dever-se a uma desconsideração da distinção entre fenómenos (objectos dados na sensibilidade) e númenos (objectos do pensamento). É apelando para esta distinção, e recuperando num certo sentido a distinção platónica entre mundo sensível e mundo inteligível, que Kant pretende mostrar que a liberdade é compatível com o determinismo. Ele defende que o homem é dotado de uma vontade livre, capaz de auto-determinar-se a agir. As acções que resultam do exercício dessa liberdade são, ao mesmo tempo, efeitos de uma causa inteligível (de um ponto de vista, que é o da vontade enquanto númeno e do homem enquanto ser racional) e parte da cadeia de causas e efeitos sensíveis que obedecem às leis da natureza (de outro ponto de vista, que é o das acções humanas enquanto fenómenos no mundo natural).
Nos Prolegómenos a toda a Metafísica Futura (obra publicada em 1783 com o propósito de dar maior divulgação às ideias apresentadas na mais extensa e difícil Crítica da Razão Pura), Kant expõe assim a maneira como deve resolver-se o conflito da razão consigo mesma que está presente na quarta antinomia: “[…] se se distinguir a causa no fenómeno da causa dos fenómenos, na medida em que ela pode ser concebida como coisa em si, as duas proposições podem bem subsistir uma ao lado da outra, a saber, que não existe causa do mundo sensível (segundo leis similares da causalidade) cuja existência seja absolutamente necessária e que, por outro lado, este mundo está, no entanto, ligado a um ser necessário como sua causa (mas causa de um género diferente e segundo uma outra lei); a incompatibilidade destas duas proposições baseia-se unicamente no mal-entendido em estender o que vale apenas para os fenómenos às coisas em si e, em geral, em misturar estas duas coisas num só conceito” (1982: 136-7).
A Tese desta quarta antinomia, segundo a qual há uma causa do mundo cuja existência é necessária, só teria de ser vista como falsa se a considerássemos do ponto de vista dos fenómenos. Pois em nenhuma experiência nos poderá ser dado observar uma mudança não causada por nada ou um ser cuja existência seja absolutamente independente de todos os outros. Mas se considerarmos esse ser necessário como simples objecto de pensamento, não há nenhuma contradição em supormos a sua existência. Não podemos é pretender, como faz o argumento da Antítese, aplicar-lhe o mesmo princípio da causalidade que aplicamos aos fenómenos.

Bibliografia
Bayne, S. M., 2004, Kant on Causation: On the Fivefold Routes to the Principle of Causation, Albany: State University of New York Press.
Bennett, J., 1974, Kant’s Dialectic, Cambridge: Cambridge University Press.
Guyer, P. (ed.), 2010, The Cambridge Companion to Kant’s Critique of Pure Reason, Cambridge: Cambridge University Press.
Kant, I., 1982, Prolegómenos a toda a Metafísica Futura, tradução de A. Morão, Lisboa: Edições 70.
Kant, I., 1985, Crítica da Razão Pura, tradução de M. P. dos Santos e A. F. Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Kemp Smith, N., 1923, Commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, 2ª ed., London: Macmillan.
Priest, G., 2002, Beyond the Limits of Thought, Oxford: Clarendon Press.
Wike, V. S., 1982, Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and Resolution,
Washington, D.C.: University Press of America.
Wood, A. W., “The Antinomies of Pure Reason”, in Guyer (ed.) 2010, pp. 245-265.
 2011
Ricardo Santos
Universidade de Évora

Vladimir Safatle – Aula 27/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 27

Na aula de hoje, continuaremos o comentário da seção Espírito indo do parágrafo 477 ao parágrafo 518, ou seja, este trecho que abarca as partes “O  Estado de direito” e “A cultura e o seu reino da efetividade”. Na aula que vem, terminaremos esta segunda parte através do comentário do trecho que vai do parágrafo 519 ao 526, trecho no qual Hegel se dedica a expor sua leitura da peça de Diderot, O sobrinho de Rameau.

            O trecho a ser comentado na aula de hoje cobre um largo período histórico que vai da hegemonia romana, passando pelo advento cristianismo, do mundo feudal com suas relações de cavalaria, vassalagem e sua ética da honra, isto a fim de terminar na reflexão sobre as relações entre nobreza e realeza na monarquia absoluta de Luis XIV. Podemos organizar nosso trecho da seguinte maneira. A parte “O Estado de direito” trata da maneira com que Hegel compreende o advento do Império romano enquanto figura da desagregação da eticidade da polis grega e da perda do fundamento substancial da razão enquanto orientação para práticas sociais e julgamento. Logo em seguida, Hegel inicia a segunda subseção do capítulo, esta cujo título é: “O Espírito alienado de si: a cultura (bildung)”. Do parágrafo 484 ao 486, encontramos um resumo geral do que se seguirá neste capítulo. Trata-se deste longo movimento de tentativa de recuperação da substancialidade da vida ética que vai desembocar no iluminismo revolucionário e em seus desdobramentos. Do parágrafo  488 ao 491, temos uma digressão a respeito do conceito de cultura e de sua proximidade estrutural com o conceito de alienação (Entfremdung). Ou seja, trata-se de insistir como os processos de formação da consciência são necessariamente processos de alienação. Do parágrafo 492 ao 508, temos o início do movimento histórico desta segunda parte através de uma descrição de relações feudais entre nobreza e realeza a partir de suas próprias expectativas de legitimidade. Hegel irá demonstrar como tais relações não realizam suas próprias expectativas  e que sua verdade é a relação de completa alienação e dilaceramento entre nobreza e monarquia absoluta, assunto que irá do parágrafo 510 até o final. Entre os parágrafos 508 e 510, Hegel insere uma nota importante sobre a linguagem em sua função expressiva (“a linguagem como Dasein do puro Si”).

            Como veremos na aula de hoje, no comentário deste longo desdobramento histórico que vai do Império romano à monarquia absoluta de Luis XIV, Hegel não se preocupa, em momento algum, em estruturar uma narrativa histórica de acontecimentos que impulsionaram o desenvolvimento histórico. Não há aqui uma filosofia da história no seu sentido mais forte do termo e mesmo a comparação entre o nosso trecho e o mesmo trecho equivalente nas Lições sobre a filosofia da história demonstra descompassos e grandes saltos evidentes. Isto nos leva a perguntar qual a natureza da narrativa e do desenvolvimento que será apresentado. Uma questão que, na verdade, toca o problema do estatuto da história no interior da seção Espírito.

            Grosso modo, podemos dizer que a maneira peculiar com que Hegel corta o contínuo histórico, selecionando alguns momentos a despeito de outros igualmente centrais, é feita em nome de uma história, não de acontecimentos, mas de padrões de socialização com seus impasses. Impasses estes vinculados à insistência de expectativas não realizadas de reconhecimento do que se aloja na posição dos sujeitos. Ou seja, trata-se principalmente de articular a perspectiva histórica a partir da maneira com que os sujeitos se inserem em práticas sociais e padrões de conduta, quais expectativas eles mobilizam nesses processos de inserção, ou ainda, de socialização e como tais expectativas iniciais são invertidas e negadas. Isto talvez nos explique esta peculiaridade maior da narrativa histórica no interior da seção Espírito, a saber, a maneira com que Hegel descreve grandes movimentos históricos sempre tendo como eixo a perspectiva da consciência inserida em práticas sociais, como se tais movimentos pudessem ser descritos como movimentos de auto-reflexão da consciência na sua confrontação direta com figuras de soberania (“O senhor do mundo” [Herr der Welt], o “poder do Estado” [Staatsmacht], o “nome próprio do monarca” etc,). O que levou comentadores como Honneth a insistir que Hegel opera como categorias: “que não concernem às relações entre membros da sociedade, mas apenas à relação destes com a instância superior do Estado”[1].

            No entanto, podemos sempre lembrar que uma fenomenologia do Espírito deve privilegiar o modo com que sujeitos se inserem e absorvem modos de racionalidade encarnados em instituições e práticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ação orientada por “razões para agir”. Neste sentido, vale sempre a pena lembrar que, no interior de práticas sociais, os sujeito realmente agem como se atualizassem constantemente uma ação direta com figuras de soberania. Apropriar-se, de maneira reflexiva, da racionalidade encarnada em estruturas sociais (condição fundamental para a realização do conceito de Espírito) só é possível levando em conta a maneira com que sujeitos justificam, para si mesmos, como agir e quais representações eles têm da figura da soberania.

            Dito isto, vale a pena fazermos uma pequena recapitulação a fim de entrarmos diretamente no comentário do nosso trecho da Fenomenologia do Espírito.

Na aula passada, vimos, através do comentário de Antígona, de Sófocles, a desagregação do conceito de eticidade em vigor na polis grega. Vimos como Hegel identificava uma linha de tensão que perpassava a eticidade grega através da dicotomia entre a lei humana e a lei divina: substâncias de dois núcleos distintos de socialização, a saber, a família e a comunidade (Gemeinwesen). A questão central era: como a lei da família e a lei da polis podiam sustentar, conjuntamente e sem cisões, esta eticidade que permite indivíduos orientarem julgamentos e ações. Pois será a partir da ruptura da complementaridade entre lei divina e lei humana, ruptura resultante da lenta consciência trágica do advento do ato (Tat) de uma individualidade singular, do absoluto ser para-si da consciência puramente singular que não se reconhece mais em um dos pólos da lei (e, por isto, se aloja em outro pólo), que a eticidade grega irá dissolver-se.

Hegel percebe a estetização de tal dissolução como tema central da tragédia grega. Daí porque o trágico será definido por Hegel como o choque entre potências substanciais e legitimas em obra no agir humano: “ O trágico consiste nisto, que os dois lados da oposição (Gegensatzes), cada um tomado por si tem uma justificação (Berechtigung), mesmo que só sejam capazes de fazer valer o verdadeiro conteúdo positivo de seus fins e de seus caracteres que como negação e lesão da outra instância”[2]. Pois, no interior da ação trágica, a consciência sabe o que tem de fazer e está decidida a pertencer seja à lei divina feminina (Antígona com suas exigência de reconhecimento de quem partilha o sangue da família), seja à lei humana masculina (Creonte com suas exigências de que tais aspirações de reconhecimento se submetam aos imperativos de preservação da polis). Este saber é o que sustenta a imediaticidade da decisão, já que ela tem a significação de um ser natural, enraizado no que a natureza inscreve como saber acessível à consciência.

Vimos que, por pensar a decisão (Entschiendeheit) como o que se fundamenta na imediatez do saber, ela não compreende a ação como mediação entre a consciência e o que se coloca como seu Outro, isto já que a consciência ética exige que o ato não seja outra coisa senão o que ela sabe. A atividade orientada pelo dever é, para a consciência, algo de imediato e imune à contradição. Desta forma, Hegel compreende que a ruína trágica está na essencialidade das duas perspectivas e, ao mesmo tempo, no engano em continuar, até o fim, acreditando que o ato ético é aquele fundamentado na certeza interior de seguir uma lei, seja ela divina, seja ela humana. Tanto que a reconciliação será, na verdade, a ruína de ambas as posições, pois ruína da própria eticidade grega. Continuar lendo

Vladimir Safatle – Aula 26/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 26

 

 

Na aula de hoje, daremos continuidade ao comentário da primeira parte da seção “Espírito”, ou seja, esta dedicada à posição do conceito de eticidade no interior da polis grega.

Vimos, desde o início deste módulo, como Hegel partia da tentativa de seus contemporâneos (e dele mesmo na juventude) em construir uma alternativa à modernidade através do recurso a formas de vida e modos de socialização próprios à uma Grécia antiga idealizada e paradigmática. No entanto, o poder absoluto de unificação em operação na polis grega será posto como o que estava fadado a dissolver-se: maneira de mostrar como modos de socialização próprios à Grécia antiga não poderiam fornecer alternativas aos impasses e às dissociações da modernidade.

Neste sentido, partimos do diagnóstico que estava presente em afirmações como:

Na verdade, a liberdade do indivíduo existe na Grécia, mas ainda não atingiu a concepção abstrata de que o sujeito pura e simplesmente depende do substancial – do Estado[1].

 

Heidegger criticara Hegel por compreender a Grécia como um “ainda não”, como “o que ainda não colocou os pés sobre a terra da filosofia, ou seja, a consciência-de-si na qual somente o objeto representado pode ser como tal”[2]. Ou seja, Hegel estaria afirmando, entre outras coisas, que a eticidade grega não podia suportar exigências de reconhecimento de sujeitos compreendidos como consciências-de-si. Daí porque ele afirmaria que a moralidade, enquanto subjetividade da convicção e da intenção ainda não estaria presente. A lei vigora por ser a lei ancorada nos costumes e no hábito. Ela não é o que se submete ao exame de uma consciência que só pode aceitar por válido aquilo cuja causa se submete ao seu pensar. Daí porque Hegel insiste que a decisão na polis era normalmente vinculada à compreensão do que enunciava os oráculos. Quando a decisão passa a ser fruto da discussão onde particulares procuram se impor no interior da polis animados pela consciência da “contradição entre seu saber sobre a eticidade da sua ação e o que é ético em si e para si”[3], então a ruína já estava à espreita.

Na verdade, este “déficit de abstração” que aparece na compreensão do enraizamento substancial dos indivíduos na determinação regional da polis grega, tende, estranhamente, a apontar para uma certa defesa do formalismo do sujeito moderno. Isto talvez possa ser explicado se lembrarmos que tal déficit de abstração vincula-se, entre outros, ao fato do fundamento da liberdade do espírito grego estar condicionado em relação essencial com um estímulo da natureza. O natural no pensamento grego não é negado, mas remodelado (umbilden) para a expressão do sujeito. Poderíamos mesmo dizer que os gregos desconhecem o trabalho da angústia; na verdade, eles conhecem apenas: “a alegre autoconfiança perante a naturalidade sensível”[4] (Das frohe Selbstgefühl gegen die sinnliche Natürlichkeit).  Isto se traduzirá no vínculo natural, não-reflexivo à estaticidade dos costumes e hábitos desta polis determinada, costumes e hábitos que expressariam a positividade da substância ética. Neste contexto, o sujeito, com suas exigências universais de reconhecimento para além de todo conjunto determinado e contextual de leis e costumes, é o que guarda a força para a criação de instituições não mais submetidas a tal naturalização.

Partindo destas considerações gerais, vimos como Hegel organizava a linha de tensão que perpassava a eticidade grega através da dicotomia entre a lei humana e a lei divina: substâncias de dois núcleos distintos de socialização, a saber, a família e a comunidade (Gemeinwesen). . A questão central será pois: como a lei da família e a lei da polis podem sustentar, conjuntamente e sem cisões, esta eticidade que permite indivíduos orientarem julgamentos e ações.

Hegel parte lembrando que não se trata aqui de alguma forma de contraposição entre natureza e sociedade, já que: “a família não está no interior de sua essência ética enquanto ela é o comportamento da natureza de seus membros”, pois “essa relação da natureza é também um espírito”[5].  Isto não impede Hegel de insistir na consciência que os gregos tinham da força disruptiva do que continua vinculado à família:

A família, como o conceito desprovido de consciência e ainda interior da efetividade consciente-de-si, como o elemento da efetividade do povo, se contrapõe ao próprio povo; como ser ético imediato se contrapõe à eticidade que se forma e se sustém mediante o trabalho em prol do universal; os Penates se contrapõem ao espírito universal[6].

Daí porque o relacionamento ético dos membros da família já deve ser algo voltado à vida ética da comunidade. Hegel descarta que tal  relacionamento ético seja o relacionamento da sensibilidade ou o exclusivismo da relação de amor. Antes, ele é o: “pôr o Singular para família, em subjugar (unterjochen) sua naturalidade e singularidade e em educá-lo para a virtude, para viver no universal e para o universal”[7]. Um viver no universal que não é simples fruto da opressão em relação às aspirações da particularidade, mas formação em direção a uma liberdade que libertação das ilusões da imediaticidade. Pois enquanto não é cidadão e pertence à família, o Singular é uma “sombra inefetiva sem contornos”.

No entanto, não deixa de ser sintomático que Hegel faça uma junção inesperada ao dizer que esta formação do Singular para viver no universal se realize de maneira mais bem acabada no rito fúnebre, no cuidado em relação ao morto (e é através da relação ao morte que nasce a consciência da lei divina). Vimos que Hegel mostrava como tal cuidado significava que a lei divina é a primeira posição da individualidade como incondicionalidade ou [por enquanto] abstração. A lei divina que encontra seu solo na família é posição do Singular como universalidade abstrata. Esta lei ganhará sua naturalidade através do seu vínculo à posição feminina. O feminino, enquanto puro “pressentimento da essência ética” fica vinculado à universalidade abstrata da lei divina da família.

Por sua vez, o governo da comunidade que efetiva a lei humana também é baseado em uma certa força da abstração. Pois este governo não é concebido a partir de uma sociedade nascida da necessidade e visando a conservação de seus membros, ele  não repousa sobre uma promessa de paz e de repouso mas realiza a negação absoluta que consiste em viver para o universal:

Para não deixar que os indivíduos se enraízem e endureçam nesse isolar-se e que, desta forma, o todo se desagregue e o espírito se evapore, o governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu íntimo pelas guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito à independência. Quanto aos indivíduos, que afundados nessa rotina e direito se desprendem do todo aspiram ao ser para-si inviolável e à segurança da pessoa, o governo, no trabalho que lhes impõe, deve dar-lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissolução da forma da subsistência, o espírito impede o soçobrar do Dasein ético no natural, preserva o Si de sua consciência e o eleva à liberdade e à força. A essência negativa se mostra como a potência peculiar da comunidade e como a força de sua autoconservação[8].

            Desta forma, vimos como a temática do conflito como fundador do vínculo social (tal como vimos na dialética do senhor e do escravo) aparece como fundamento para a ação do Estado.  Se o governo não repousa sobre uma promessa de paz é porque o processo de formação, que se iniciou na família, deve animar os processos de interação social enquanto meios para a realização da subjetividade como universalidade desprovida de toda aderência ao Dasein natural, enquanto o que se realiza através de um trabalho que é confrontação com a fragilização das imagens estáticas do mundo.

Uma certa harmonia parece se instaurar já que:

Pelo espírito da família, o homem é enviado à comunidade e nele encontra sua essência consciente-de-si. Como desse modo a família possui na comunidade sua universal substância e subsistência, assim, inversamente a comunidade tem na família o elemento formal de sua efetividade; e na lei divina, sua força e legitimação[9].

Por isto que Hegel poderá afirmar:

A união do homem e da mulher constitui o meio-termo ativo do todo, o elemento que cindido nesses extremos da lei divina e da lei humana é igualmente sua unificação imediata. que faz daqueles dois primeiros silogismos um mesmo silogismo e que unifica em um só os movimentos opostos[10].

No entanto, esta harmonia será quebrada, já que a lei divina guardada pelo feminino irá demonstrar como a lei da polis não pode realizar, de forma adequada, exigências de universalidade. É desta forma que aparece a figura do “todo como equilíbrio estável de todas as partes” ou do reino ético como “mundo imaculado que não é manchado por nenhuma cisão”.

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Vladimir Safatle – Aula 25/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 25

 

 

A aula de hoje será dedicada ao comentário da subseção “O mundo ético: a lei humana e a lei divina, o homem e a mulher”. Como ele, nós começamos a apreender, de maneira mais sistemática, a maneira com que a Fenomenologia do Espírito apresenta o conceito de eticidade ou “razão ética”: base para a articulação da noção de “Espírito”.

Como sabemos, a primeira parte de nossa seção, este que tem por título: “O Espírito verdadeiro: a eticidade” diz respeito, principalmente, à reflexão filosófica sobre o mundo grego e sobre a possibilidade de sua recuperação enquanto alternativa para os impasses e cisões da modernidade. Vimos como, neste sentido, como foi particularmente forte para a geração de Hegel (o mesmo para o Hegel de juventude; ver, por exemplo, seu Sistema da eticidade), principalmente após a crítica rousseauista à inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir uma alternativa à modernidade através recurso a formas de vida e modos de socialização próprios à uma Grécia antiga idealizada e paradigmática. Neste sentido, não é estranho que a reflexão hegeliana sobre a eticidade comece a partir de uma discussão a respeito da polis grega, ou melhor, a respeito da maneira com que os modernos compreendiam o poder absoluto de unificação que imperava na polis grega. Pois a questão fundamental aqui: “Não está vinculada aos detalhes históricos da vida grega per se mas diz respeito a saber se a vida grega idealizada por muitos de seus contemporâneos [de Hegel] pode, em seus próprios termos, contar como alternativa genuína para a vida moderna”[1]. Daí porque Heidegger irá compreender claramente que, para Hegel: “A filosofia dos gregos [e suas formas de vida] é a instância de um ‘ainda não’. Ela não é ainda a consumação mas, contudo, é unicamente concebida do ponto de vista desta consumação que se definiu como o sistema do idealismo especulativo”[2]. De fato, a maneira com que Hegel caracterizara os gregos já era bastante sintomática:

Os gregos tinham a unidade substancial da natureza e do espírito como fundamento e essência; e tendo e sabendo isto como objeto, não chegaram a desaparecer nesta unidade, mas permaneceram (gegangen) nela sem caírem no extremo da subjetividade formal [dos modernos] formando assim uma unidade consigo mesmos; como sujeitos livres que têm por essência, conteúdo e substrato esta primeira unidade; como sujeitos livres cujo objeto é a beleza[3].

Vemos como as formas gregas de vida pareciam poder realizar, assim, esta noção de vida ética de um povo expressa da seguinte forma:

O espírito é substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente: o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos, seu fim e sua meta, como é também o em-si pensado de toda consciência-de-si[4].

Mas Hegel insistirá que tal liberdade do sujeito só poderá aparecer de maneira trágica no interior da polis grega pois esta liberdade, quando se manifesta, já é sinal da ruína da eticidade grega. Esta será a função do comentário de Antígona no interior de nosso texto (mas Hegel poderia também ter lembrado de sua leitura do julgamento de Sócrates). Desta forma, a primeira parte do capítulo se organizará em dois grandes blocos: o mundo ético (onde é questão da exposição do ideal de eticidade da polis grega) e a ação ética (onde é questão do advento trágico da impossibilidade de realização de tal conceito devido às exigências de reconhecimento do que não se coloca integralmente como determinado pela lei da polis). O terceiro movimento, “O estado de direito”, é um desdobramento das conseqüências da desagregação do ideal grego de eticidade.

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Vladimir Safatle – Aula 24/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 24

 

 

Na aula de hoje, será questão, principalmente, do conceito hegeliano de eticidade (Sittlichkeit). É o comentário de tal conceito que nos permitirá finalizarmos a seção “certeza e verdade da razão”, assim como iniciarmos a seção “Espírito”.

            Na aula passada, havíamos começado o comentário da subseção “a individualidade que é real em si e para si mesma” insistindo como se tratava de um momento do texto que procurava realizar a pressuposição de que a consciência se orientava a partir da reconciliação com um curso do mundo produzido pelo próprio agir das consciências. Por isto, Hegel iniciava:

A consciência-de-si agora captou o conceito de si, que antes era só o nosso a seu respeito: o conceito de ser, na certeza de si mesmo, toda a realidade. Daqui em diante tem por fim e essência a interpenetração espontânea [bewegende Durchdringung ­ – o movimento espontâneo de interpenetração] do universal (dons e capacidades) e da individualidade[1].

A fim de expor a dinâmica desta experiência de reconciliação, Hegel sintetizava suas reflexões sobre a anatomia do ato em um momento central da Fenomenologia intitulado: “O reino animal do espírito e a impostura ou A coisa mesma”. Momento no qual é questão de uma primeira reconciliação através de uma posição imperfeita de um horizonte comum de racionalidade pressupostos pelo agir social e, principalmente, pelo falar que procura realizar aspirações de reconhecimento.

Em um momento importante, Hegel centrava a economia do texto a partir da reflexão a respeito do problema da confrontação, ou ainda, do reconhecimento, entre consciência e sua obra (que pode ser compreendida neste contexto como todo e qualquer resultado socialmente reconhecido do agir individual). De fato, a consciência, devido a sua estrutura transcendente e negativa que procura ser reconhecida “se retira de sua obra”, “ela mesma é o espaço sem determinidade que não se encontra preenchido por sua obra”. Mas lembremos que a consciência deve adotar uma posição negativa em relação à obra porque esta é aquilo que se confronta perpetuamente com outras consciências, ou seja, a significação da obra é resultado da interferência de outras consciências. Ela é o que se constrói na confrontação incessante entre consciências. Daí porque Hegel afirma:

A obra é assim lançada para fora em um subsistir no qual a determinidade da natureza originária se retorna contra as outras naturezas determinadas, nas quais interfere e que interferem nela; e nesse movimento universal [a obra] se perde como momento evanescente (…) Em geral, a obra é assim algo de efêmero que se extingue pelo contrajogo de outras forças e de outros interesses e que apresenta a realidade da individualidade mais como evanescente do que como implementada[2].

Devido à sua passagem ao campo social, a obra desaparece para dar lugar ao enlaçamento em um feixe de interpretações sempre contraditórias, polifônicas e estranhas ao próprio autor. O que a consciência experimenta através de sua obra é pois a:  “a inadequação do conceito e da realidade que em sua essência reside”[3]. Ou seja, o que a consciência vê na obra não é a simples tradução da noite da possibilidade para o dia da presença, mas a formalização da inadequação entre efetividade e conceito que é a própria essência da consciência.

De fato, Hegel afirma que o conteúdo da experiência de confrontação com a obra feita pela consciência é a obra evanescente (verschwindende Werk). Uma dissolução que ganha a forma da própria obra: “O que se mantém não é o desaparecimento, pois esta é efetiva e vinculada à obra, desaparecendo com ela. O negativo vai ao fundamento (zu Grunde) junto com o positivo, do qual é a negação”[4]. O que nos permite compreender “o desparecimento do desaparecer” do qual fala Hegel como a possibilidade de compreender a obra enquanto manifestação, enquanto apresentação do que só encontra forma nesta passagem incessante ao outro.

É neste contexto que Hegel introduz o conceito de Coisa mesma (Sache selbst). Ao apreender a negatividade que vem à cena na obra, ao apreender a multiplicidade de perspectivas que se confrontam na obra e anulam a compreensão do agir como transparência, a consciência pode compreender tal negatividade e tal multiplicação de perspectivas como manifestação da Coisa mesma. Pois a Coisa mesma seria o fundamento incondicionado do saber, fundamento que supera os momentos evanescentes da obra, já que ela se encontra em todos os momentos, transcendendo todos eles.

No entanto, vimos como a primeira apropriação reflexiva da estrutura da Coisa mesma não nos levava em direção a este saber de si que é, ao mesmo tempo, saber da efetividade, e que é a meta da Fenomenologia. Ela nos levava a um certo jogo de contrários e culto de paradoxos que será melhor tematizado na seção “Espírito”  à ocasião do comentário hegeliano do texto de Diderot, O sobrinho de Rameau. É exatamente por isto que Hegel lembrará: a primeira figura da consciência capaz de se relacionar com a Coisa mesma é a consciência honesta, ou seja, o honnête homme das conversações e salões, versado na arte dos paradoxos e das inversões. Um honnête homme que é este capaz de jogar com a multiplicidade de perspectivas através da arte da conversação brilhante. É desta forma que ele dissolve toda determinidade da coisa (Ding), o que não significa colocar um fundamento incondicionado para o saber.

            Lembrei para vocês como esta consciência que é capaz de colocar a Coisa em uma determinidade e em seu contrário é, no fundo, uma figura da ironia. Esta mesma ironia que, mais tarde Kierkegaard afirmará ser: “um jogo infinitamente leve com o nada”. Mas a consciência deve compreender de outra maneira esta incondicionalidade da Coisa mesma. Ela deve passar da ironia à dialética. Só uma verdadeira perspectiva dialética pode mostrar como:

A Coisa mesma é uma essência cujo ser é o agir do indivíduo singular e de todos os indivíduos e cujo agir é imediatamente para outros, ou uma Coisa [como vimos na definição de eticidade] e que só é Coisa como agir de todos e de cada um. É a essência que é essência de todas as essências, a essência espiritual[5].

É tendo tal questão em vista que Hegel encaminha a seção razão para seu final através de duas últimas figuras da razão: a “Razão legisladora” e a “Razão examinando as leis”. Continuar lendo