SÉCULO XXI – UMA POSSIBILIDADE DA TEOLOGIA CRISTÃ?

“O século XXI será religioso, ou simplesmente não será!”

(Frase atribuída a André Malraux)

Introdução.

O presente trabalho pretende refletir sobre os rumos da teologia cristã na

contemporaneidade e em suas perspectivas para o presente século. Não se propõe uma reflexão exaustiva, porém um breve olhar sobre as possibilidades e características da teologia em diálogo com o mundo. O título se refere ao problema a ser elucidado, cuja resposta, um tanto tímida, se insinua ao término da reflexão. As bases teóricas se encontram nas referências e alusões contidas no escrito.

Século XXI – Uma possibilidade para a teologia cristã?

A frase em epígrafe é comumente atribuída a André Malraux (1901-1976), literato francês. Ela reflete sobre a configuração de um mundo que, na contramão dos prognósticos do projeto do Iluminismo, parece conceder cada vez mais espaço para múltiplas expressões de religiosidade.

Por paradoxal que seja, é natural que o ser humano, definido por Aristóteles (c. 385-322 a.C.) como “animal racional” (gr. antropos tou zoon logikon), possa também ser reconhecido como homo religiosus, conforme o faz Mircea Eliade (1907-1986), historiador das religiões e mitólogo. De acordo com o guia elaborado pelos pesquisadores do “Real Instituto de Antropologia […]”, a antropologia admite desconhecer qualquer povo, daqueles até hoje estudados, que não tivessem alguma expressão de religiosidade (1971, p. 222), essa constatação, unida a outros fatores, levou à conclusão lógica expressa por Erich Fromm (1977, p. 137): “A necessidade religiosa é parte integrante das condições básicas da existência da espécie humana”.

Agora, em pleno alvorecer do século XXI vislumbra-se a expressão vigorosa da religiosidade, tanto no âmbito das religiões organizadas, como o Islamismo e o cristianismo evangélico e pentecostal, quanto em formas alternativas de espiritualidade; até mesmo personalidades conhecidas por suas críticas às religiões, céticos, agnósticos e até ateus têm procurado um veículo de expressão de seu sentimento religioso, naquilo que tem sido identificado como “espiritualidade para ateus” [1].

Qual será o espaço do cristianismo na contemporaneidade? E, qual o papel da teologia cristã para que alcance esse espaço?

O cristianismo tem como missão o anúncio do evangelho, enquanto resposta aos corações sedentos de sentido e significação! Mas, tem como desafio anunciar a um mundo, que desde o advento da Modernidade, se torna cada vez mais secularizado.

Essa secularização pode ser definida ao modo do Cardeal Marty (1970, p. 7): “A secularização se apresenta como uma fria aceitação da condição histórica do homem e das tarefas do nosso tempo, abstraindo-se da religião.”

O secularismo sustenta o moderno ateísmo, e, se funda nos princípios do antropocentrismo e do racionalismo.

A teologia cristã terá, então, que se haver com estes dois princípios, demonstrando a capacidade em falar sobre Deus sem escamotear o problema do humano e concomitantemente pregar a mensagem da fé, sem deixar de preencher os requisitos da racionalidade.

As tentativas levadas em efeito pelas escolas teológicas, calcadas no liberalismo, em diálogo com o mundo moderno, resultaram catastróficas para o cristianismo histórico, considerando, sobretudo, os casos mais extremos, tais como: o movimento da morte de Deus (Paul Van Buren) e a proposta do cristianismo sem religião (Bonhoeffer).

Estas escolas teológicas minaram as forças de muitas igrejas históricas e puseram em desconfiança da teologia, muitas igrejas evangélicas, sobretudo de confissão pentecostal[2].

Qual o possível caminho para que a teologia fale ao homem contemporâneo, sem perder sua identidade legitimamente cristã?

Para aqueles que estão familiarizados com a Bíblia e com a história da igreja cristã, admite-se não haver uma resposta nova, apenas aquela já conhecida do cristianismo histórico, que segue uma tradição desde os apóstolos, passando pelos padres e reafirmada pelos reformadores.

A teologia cristã há de ser cristocêntrica, ela necessita urgentemente reconhecer que falar sobre o humano, caído ou (e) regenerado, exige ter Cristo como ‘pedra de toque’. A teologia há de ter na cristologia o seu centro, uma cristologia equilibrada e saudável, somente em torno de uma cristologia com essas características é que deve gravitar a antropologia teológica.

O apóstolo Paulo, por exemplo, iluminou a compreensão cristã acerca do homem, em passagens memoráveis, onde fala de Cristo[3].

Como falar sobre a verdadeira essência do ser humano? Jüngel (1977, pp. 254-255) sintetiza a visão cristã sobre o humano.

A verdadeira essência do homem é sua correspondência (possibilitada por uma palavra que lhe fala) ao movimento pelo qual Deus, em Jesus Cristo, desceu até o homem. Esse movimento para baixo, para o homem, impede a este a subida à divindade. Assim como Deus se manifestou como Senhor no abaixamento, assim, também só na participação desse abaixamento que a imagem de Deus chegará à “glória dos filhos de Deus” (Rom. 8, 21)

Concluímos, pois junto a Barth (1954, p. 60, tradução nossa) em que “[…] nesta pessoa única vive e palpita toda a obra de Deus, e, todo aquele que diz “Deus”, no sentido em que o diz a Bíblia, haverá de dizer necessariamente e sem exceção: Jesus Cristo”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

 

BARTH, Karl. Bosquejo de Dogmatica.  Tradução do texto alemão por M. Gutierrez-Marin. Argentina: Editorial  La Aurora y Casa Unida de Publicaciones, 1954.

 

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

 

FROMM, Erich. Ser ou Ter? Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

 

Guia Prático de Antropologia. Real Instituto de Antropologia da Grã-Bretanha e da Irlanda. Traduzido por Octavio Mendes Cajano. São Paulo, Editora Cultrix, 1971.

 

JÜNGEL, E. O Homem que Corresponde a Deus. IN: GADAMER, H. G.; VOGLER, P. Nova Antropologia: O Homem Em Sua Existência Biológica, Social e Cultural. Volume 6. São Paulo: EPU, Editora da Universidade de São Paulo, 1977

 

MARTY, François (Org.) Ateísmo e Secularização. Novas Fronteiras. Caxias do Sul – RS. Edições Paulinas. Volume 3. p. 7-11.  1970.

 

Shlesinger, Dr. Hugo; PORTO, Pe. Humberto. As Religiões Ontem e Hoje. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.

[1]Para este tópico recomenda-se a leitura de “O Espírito do Ateísmo”, de André Comte-Sponville, “God On Your Own” (Deus do Seu Jeito, tradução livre), de Joseph Dispenza, “Living Without God” (Vivendo Sem Deus, tradução livre) e “Waking Up” (Despertando, tradução livre), de Sam Harris. Todas estas obras propõem a espiritualidade para ateus.

[2] A forte ênfase no culto emocional e nas experiências religiosas particulares dos fiéis pode ser interpretada como sintomas do afastamento da teologia, decorrente dessa desconfiança.

[3] Vide, por exemplo, I Cor. 15,45; 15, 20; Col. 1,18 e At. 26, 23.

Philothánatos; Religião, Morte, Símbolos e Outras Grandes Bobagens!

memento

Os assuntos sobre os quais pretendo tratar são de grande importância ‘espiritual’, e, a abordagem levada em efeito é resultado de longos anos de reflexão, todavia este escrito não passa de um mero esboço e não pretende ser rigorosamente acadêmico ou ter alcançado sua forma definitiva. Agradeço a toda equipe do Projeto Phronesis pela oportunidade em expressar-me através de seu blog.

Noutras circunstâncias eu não ousaria escrever sobre estes assuntos (porque tantas besteiras são ditas e escritas sobre espiritualidade que eu acredito poder poupar as pessoas das minhas próprias), mas diante do interesse demonstrado pelo Sr. Alexandre Malvino Torres , Teólogo e Pastor, eu sou obrigado a realizar este empresa.
O acima citado pastor questiona-me acerca de minha verdadeira identidade, dentre outras coisas, mas a única resposta que eu lhe posso dar é que não sei quem sou, pois minha identidade é um fluxo constante, ela se desconstrói e se reconstrói a cada dia; portanto não espere muito de mim, assim como, eu não espero muito das pessoas.

Quanto à abordagem e os resultados aconselho a todos que não os tenham muito a sério, porque é uma dentre muitas abordagens possíveis e nem ao menos posso dizer que seja a melhor; os resultados embora conseqüentes, não se pretendem a Verdade, mas suponho que contenham em si mesmos alguns aspectos que podem ser tidos por verdadeiros em muitos contextos. Logo, podem significar algo para outras pessoas, bem como significam para mim.

Porque é tudo uma grande bobagem?

Talvez seja porque o discurso não chegue nem de longe a refletir os problemas do espírito e também porque se realmente significa algo, significa mais para aquele que o pensou e escreveu, do que pode significar para àqueles que o lêem. Mas, muito mais ainda porque minha resposta ao teólogo e a todos os que pensam de modo semelhante a ele, jamais satisfará uma ‘cabeça feita’, antes fará com que ele acredite com mais vigor que Philothánatos vive num mundo e fala uma língua que para eles são ininteligíveis, um mundo e uma linguagem de absurdidade. Neste ponto suponho que estejam com a razão.

Curiosamente sou questionado acerca do recurso usado na escritura de meu singelo conto. Kierkegaard (1813-1855), um dos escritores que mais inspiram minha atividade e meu pensamento, usava deste recurso literário (pseudônimo-heterônomio), segundo France Farago, a utilização de pseudônimos (heterônimos) em sua escrita pode equivaler à maiêutica socrática: “[…] coloca em debate através de personagens fictícias e paradigmáticas, as diferentes opções existenciais que se correspondem e se interpenetram de uma obra para outra.” (Farago, 2006, p.60). Confesso-me tributário ao mestre dinamarquês e francamente marcado pela perspectiva filosófica existencial, portanto sustento que não se deve tomar minha ação como indicativo de covardia, mas, sim como um recurso que visa suprir a nossa necessidade em lançar um olhar multifocal sobre pontos de vista díspares acerca das mais importantes questões que nos afligem. Não serve este recurso literário para fazer falar na primeira pessoa atores que sustentam opções existenciais diferentes correspondentes aos possíveis? Simultaneamente não mantém, com certa relatividade, o distanciamento do verdadeiro eu do escritor?

Quanto ao problema da irreconciliabilidade entre o ser cristão e o ser filósofo (noutras palavras “o ser teólogo e o ser filósofo”) sugiro a leitura de meu breve artigo ‘Filosofia e Teologia – Paul Tillich’ , ali eu deslindo o texto da Conferência de Paul Tillich (1886-1965), no Union Seminary, New York. Tillich distingue o exercício de pelo menos duas formas de Teologia: a ‘teologia querigmática’, que se constrói unicamente sobre o kerygma, portanto sem referências filosóficas, e, a ‘teologia filosófica’, que se constrói, também a partir do kerygma, porém estabelecendo relações endógenas com a filosofia.

Mas o problema é mais agudo, pois se trata de apresentar sob uma mesma personagem as máscaras do cristão e do cético.

Meu interlocutor lembra que o cristão é aquele que crê, enquanto o cético é aquele que de tudo duvida; o cristão é só fé, pois é apenas na fé que se pode agradar a Deus, e, por fim, o cético não acredita que se pode chegar à verdade absoluta!

Passo a elucidação de questões implícitas nos enunciados supra e pretendo fazer isso conduzindo o pensamento em um movimento espiralado, partindo da superfície, até alcançar um pouco mais de profundidade.

A oposição entre o cristão e o cético conforme se nos apresenta em seu comentário só é admissível na medida em que concordássemos em reconhecer na fé um componente de ordem epistemológica, ou seja, se aceitamos que a fé seja uma capacidade de conhecimento, então seríamos forçados, por uma questão de coerência, a reconhecer a contradição que se estabelece entre ‘o homem de fé’ e ‘o cético’. Embora os teólogos estejam acostumados a declarar que o exercício da fé envolve três elementos: o intelectual; o emocional e o volitivo (Thiessen, 1994, p. 255), habitualmente no cristianismo fazem da fé a crença num determinado ‘corpo de doutrinas’, o assentimento intelectual em algo inacreditável. Portanto a fé é posta como uma espécie de conhecimento, uma atitude do intelecto em relação a determinado objeto.

O ceticismo é uma posição epistemológica que se refere tanto à possibilidade do conhecimento em geral, quanto a um conhecimento específico.

“No primeiro caso, estamos perante o cepticismo lógico. Também se lhe chama cepticismo absoluto ou radical. Quando o cepticismo se refere somente ao conhecimento metafísico, falamos de um cepticismo metafísico. No domínio dos valores distinguimos um cepticismo ético e um cepticismo religioso. Segundo o primeiro, é impossível o conhecimento moral; segundo o último, o religioso. Finalmente, há que distinguir o cepticismo metódico e o cepticismo sistemático. Aquele designa um método; este, uma questão de princípio”.
(Hessen, 1976, p.41)

Posto nestes termos, a fé e o ceticismo opõem-se realmente, pois o que temos nada mais é que o conflito entre o dogmatismo e o ceticismo.

Mas, não é essa concepção que faço da fé, antes tenho como referência a conceituação proposta por Tillich: “Fé é o estado de ser apoderado pela potência do ser-em-si.” (Tillich, 1972, p. 134) Deste modo fé não se põe na ordem epistemológica, não é uma afirmação teórica acerca de algo duvidoso, mas é um estado “[…] é a aceitação existencial de algo que transcende a experiência ordinária” (Ibidem). A fé não anula a ‘finitude essencial’ do humano, cuja expressão mais radical é a morte, mas ela faz com que nos aceitemos, assim como, somos aceitos “[…] a despeito de nosso desespero sobre a significação dessa aceitação”. (Ibidem, p. 136).

“A incerteza, a insegurança e a dúvida estão inclusas na finitude; num movimento memorável da Teologia Sistemática lemos:
Finitude inclui dúvida. A verdade é o todo (Hegel). Mas nenhum ser finito possui o todo; portanto, é uma expressão da aceitação de sua finitude que ele aceite o fato de que a dúvida pertence a seu ser essencial. Mesmo a inocência sonhadora supõe dúvida. Portanto, a serpente no mito da história do paraíso podia provocar a dúvida no homem”.
(Tillich, 2002, p.300)
Essa é a condição paradoxal do homem, ela é bem expressa na ontologia fundamental de Heidegger, em sua consideração acerca do homem como um ‘ente jogado no ser’; toda decisão humana implica num risco, na esfera da construção do ‘si-para-si’, do ‘si-para-o-outro’, e, finalmente, do ‘si-para-o-Totalmente Outro’ (usado agora a linguagem de Kierkegaard).
Mesmo no âmago do coração do mais sincero dos crentes digladiam os sentimentos e pulsões mais contraditórias e o cristão tomado pelo ‘novo homem’, ao menos, por princípio deveria ser mais sensível a essa condição. Toda essa conjuntura deveria ser considerada com mais seriedade pela teologia evangélica, pois aqui todo evangelicalismo está muito longe da atitude dos reformadores, e, em especial de Lutero (1483-1546), em sua teologia o reformador alemão soube resguardar este caráter dialético e paradoxal, o homem: semper peccator, semper iustus semper paenitens. Lutero concebia a vida cristã de modo muito dinâmico, a conversão, como um princípio, a vida cristã, como a caminhada rumo à perfeição, perfeição esta que se encontra sempre além do limiar do horizonte. Ao comentar determinado verso da epístola ‘Aos Romanos’, (12,2); escreveu Lutero:
“Este comentário é feito em razão do aperfeiçoamento. Pois ele fala àquelas pessoas que já começaram a ser cristãs. A vida delas não se encontra em um estado de repouso, mas sim, num movimento do bom para o melhor, […] O ser humano está sempre no não ser, no vir a ser, no ser sempre em privação, na potencialidade, em processo; sempre no pecado, na justificação, na justiça, ou seja, ele é sempre um pecador, sempre um penitente, sempre justo […] Portanto, a penitência é o meio entre a injustiça e a justiça. Dessa forma um ser humano está no pecado como o terminus a quo [ponto de partida], e, na justiça como o terminus ad quem [ponto de chegada]. Por conseguinte, se nos arrependemos sempre e fazemos penitência, sempre somos pecadores e, não obstante, também somos, pela mesma razão, justos e justificados, somos em parte pecadores e em parte justos, isto é, nada somos senão penitentes”.
(Lutero, 2003, Vol. 8, pp. 321-322)

É na esteira desse pensamento que se situa a concepção que tenho sobre a condição do cristão, de modo que assumo o caráter paradoxal da mesma. Quando afirmo colocar em questão, a cada dia, as verdades da fé, me refiro às representações que fazemos daquilo que consideramos dados da revelação, que em última instância são espirituais, e, como bem afirmou Ken Wilber: “[…] quando a mente tenta reconhecer o domínio espiritual, seu modo é paradoxal ou radicalmente dialético, e seu interesse é soteriológico” (Wilber, 1995, p. 248). Portanto, se pode ler; pensar ou discorrer sobre Deus, ou qualquer outro referente espiritual, contanto que se assuma a limitação de suas representações, que elas se constituem num jogo de trocas simbólicas que necessita por si próprio sempre de elucidações acerca de seu sentido, cujo referente último estará sempre além destas mesmas representações.

Logo, sem qualquer contradição, sustento que na condição de cristão sou um homem de fé, ou seja, fui apoderado pela potencia do ser-em-si, mas na condição de filósofo eu questiono constantemente o conjunto de representações do sagrado, enquanto sentenças de conhecimento acerca do que se propõem: ‘o sentido último’. Esta paradoxal congruência é possível posto que os próprios ‘dados revelacionais’ se medeiam pela linguagem que é também um conjunto de símbolos que se estruturam e se desenvolvem histórico-socialmente, portanto precisam ser elucidados tendo em conta seus respectivos contextos (Heidegger, por exemplo, propõe as seguintes categorias: existencial-ontológico e histórico-hermenêutico).

Agora considero o questionamento acerca do significado do nome “Philothanatos” e de seu uso em referência a alguém que se considere um cristão!
Ser ‘amigo da morte’ é uma blasfêmia, uma ofensa aos valores cristãos e uma afronta à humanidade; a morte é inimiga, é do Inimigo, a morte é a estranha, a intrusa neste mundo.

Este discurso é uma das muitas expressões da atitude homem diante da morte, atitudes construídas socialmente e suscetíveis a transformações constantes ao longo dos séculos, como bem demonstrou Ariès (1997).

Não decorre, necessariamente, disto que a morte tenha sido considerada um bem ou que em algum momento tenha deixado de ser considerada ‘assustadora’; a morte sempre causou medo no homem devido ao seu caráter enigmático e ao total desconhecimento de sua natureza.
Ocorre, sobretudo, em nossa época que se acentua a perda da familiaridade com a morte e ‘o morrer’, a morte se nos tornou ‘selvagem’, conforme a tese de Ariès (1982), nós a expulsamos de nossas casas junto com nossos moribundos:
O homem de hoje, por não vê-la com muita freqüência e muito de perto, a esqueceu; ela se tornou selvagem, e, apesar do aparato científico que a reveste, perturba mais o hospital, lugar de razão e técnica, que o quarto da casa, lugar dos hábitos da vida quotidiana.
(Ariès, 1977, p. 171)
Em conseqüência humanidade se recusa a pensar na morte, até mesmo em pronunciar-lhe o nome, ou, numa atitude antitética, sobretudo nas Américas há uma banalização da morte, sua espetacularização, ela é reduzida à insignificância de um acontecimento banal “[…] de que se finge falar com indiferença. Nos dois casos, o resultado é o mesmo: nem o indivíduo, nem a comunidade têm bastante capacidade para reconhecer a morte” (Ariès, 1982, p. 670).

Na medida em que é concorde, nas Escrituras Cristãs, que as palavras de Jesus são ‘palavras de vida eterna’; é possível acreditar nelas e ao mesmo tempo ser ‘amigo da morte’?

Talvez para os teólogos (e mesmo para ao público não-especializado) seja difícil compreender como sustento a condição a que esse refere nome PhilothánatosI!
O paradoxo se estabelece porque os princípios e procedimentos adotados pelo teólogo não são idênticos àqueles com os quais nos servimos para pensar o problema da religião. Posto que não seja teólogo, mas “filósofo”, eu me ocupo fundamentalmente dos ‘símbolos religiosos’; estes estão ligados à experiência religiosa e a uma cosmovisão religiosa. É exatamente na medida em que esta experiência ou cosmovisão religiosa se insere no contexto histórico que o filósofo, seguindo a trilha do historiador das religiões, pode refletir sobre ela e buscar a compreensão de seu sentido.

Por esta perspectiva, diferentemente do teólogo, pode-se considerar as religiões ‘sistemas simbólicos’ (Geertz, 1989, Eliade, 1996), que apresentam um determinado ponto de referência, de sentido e um determinado plano existencial.

Naturalmente a antropologia reconhece o homem como animal symbolicus e se pode dizer, junto a White (1955, pp. 303-311, apud F. H. Cardoso & O. Ianni,1966, p.180) que o “símbolo é o universo da humanidade”.

Porém, há diferentes sistemas simbólicos para diferentes aspectos da civilização. Há, por exemplo, uma simbologia jurídica; uma simbologia médica, científica; no caso que nos interessa a simbologia religiosa.

Os símbolos religiosos visam uma realidade metaempírica, são ‘hierofanias’: “manifestações do sagrado” (Eliade, 1999, p. 217). A significação última dos atos religiosos, enquanto símbolos da experiência relacional homem/sagrado, refere-se a valores ou figuras sobrenaturais.
Aprecio o modo como Tillich se refere à função dos símbolos (religiosos) segundo a qual apontam para além de si mesmos “[…] no poder que eles apontam para revelar níveis da realidade que de outro modo estão velados, e, para abrir níveis da mente humana que de outro modo não estão acessíveis” (1955, p. 109, apud Eliade, 199 p.220).

Apesar de sua referencia supra-cósmica os símbolos religiosos estão submetidos às mesmas ‘normas’ hermenêuticas que os símbolos não-religiosos e eles têm características análogas a estes, portanto podem ser interpretados pelos mesmos métodos. Ainda que de posse de hermenêuticas distintas os especialistas concordam que os símbolos têm como característica comum a ambivalência (Guénon, 1989), ou a polissimbolizabilidade (M. F. Dos Santos, 1956), ou ainda multivalência (Eliade, 1999), o historiador romeno assim define essa capacidade “[…] de exprimir simultaneamente várias significações cuja vinculação não fica evidente no plano da experiência imediata”. (Eliade, 1999, p. 221), deste modo mesmo aspectos antagônicos podem ser simbolizados por um mesmo símbolo. Quando o filósofo, Mario Ferreira dos Santos, fala sobre a polissimbolizabilidade dos símbolos, ele diz que um “[…] simbolizado pode ser referido por vários símbolos” (M. F. Dos Santos, 1956, p. 18), e, Guénon diz que ambivalência do símbolo, faz que em contextos diferentes, dentro de uma mesma tradição espiritual, o mesmo símbolo tenha significados aparentemente contrários, mas que no fundo são complementares (Guénon, 1989).

Ora, a morte no contexto da Bíblia e ao longo da história cristã, simboliza e é simbolizada de múltiplas formas (por exemplo: separação, sono e viagem), enquanto ela mesma simboliza a condição do homem pecador diante de Deus: ‘morto em delitos e pecados’. Por outro lado, ela também simboliza a passagem da velha para a nova vida, o nascimento contínuo do novo homem em Cristo, pois a regeneração tem a necessidade absoluta do itinerário que passe pela morte, a esta a ressurreição subseqüente pressupõe.

É natural, e também curioso, que seguindo a tendência da Modernidade de alheamento da morte, a teologia cristã evangélica tenha concentrado sua atenção apenas no simbolismo ‘negativo’ da morte, enquanto o misticismo cristão concentrou-se no seu simbolismo ‘positivo’, a morte como símbolo de um movimento de transformação exterior radical.

Não se pode dizer que de acordo com o kerygma há uma relação constante entre a conversão e a mortificação? Poderíamos entender a “metastrophé” cristã como uma trajetória de sucessivas mortes iniciáticas? “Sicut scriptum est: Quia propter te mortificamu tota die […]”

Talvez o cristão tenha mais motivos para adotar a meditatio mortis como modalidade de vida, do que qualquer outro homem. E talvez o filósofo esteja mais próximo do cristão, que assim o faça, na medida em que seu modo de vida consista em inquirir sobre o sentido da morte e em preparar-se para morrer (Fédon. 64 a, c).
Mas, para aqueles que tanto se importam com a sua vida e temem ao menos o pensar na morte, segue o conselho que o apóstolo hauriu da sabedoria antiga: “Manducemos, et bibamus, cras enim moriemus”.

Philothánatos

BIBLIOGRAFIA

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ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o Andrógino – Comportamentos Religiosos e Valores Espirituais Não-Europeus. São Paulo, Nartins Fontes, 1999.

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LUTERO, Martin. A Epístola do Bem-Aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos, In: Obras Selecionadas, São Leopoldo/RS, Editora Sinodal, Porto Alegre/RS, Concórdia Editora, 2003.

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_____________. Teologia Sistemática. São Leopoldo/RS, Editora Sinodal, 2002.

WILBER, Ken. Reflexões Sobre o Paradigma da Nova Era: Uma Conversa Com Ken Wilber. In: WILBER, Ken (Org.). O Paradigma Holográfico e Outros Paradoxos: Uma Investigação nas Fronteiras da Ciência. São Paulo, editora Cultrix Ltda., 1995.

TEOLOGIA – PERCORRENDO OS CAMINHOS DO PENSAMENTO SOBRE O DIVINO

O encontro entre o Evangelho e  a Paidéia grega. São paulo em Atenas. Fonte da Imagem: checar.files.wordpress.com/2013/07/saintpaul-preaching-in-athens.jpg

O encontro entre o Evangelho e a Paidéia grega. São Paulo em Atenas. Fonte da Imagem: checar.files.wordpress.com/2013/07/saintpaul-preaching-in-athens.jpg

A palavra ‘teologia’ é uma transliteração da palavra grega ‘theología’, cujo significado original é algo como ‘discurso’ (logos) sobre Deus (théos), ou sobre os deuses (theoi).

Embora já houvesse certo discurso sobre os deuses na poesia homérica e hesiódica, foi Platão, a propósito da formação dos guardiões, quem criou este substantivo e o respectivo conceito, em sua obra República traçou as ‘Linhas Fundamentais da Teologia[1]’ (gr. typoi peri theologías).

Aristóteles levou este projeto de Platão mais adiante. Ele desenvolveu toda uma reflexão que reconhece distinção entre a ‘substância primeira’ e a natureza. Esta substância primeira é identificada como a substância imóvel, o movente não-movido, o puro ato, e, por fim, Deus, neste ponto a ciência que investiga esta substancia primeira, a metafísica, deve acertadamente ser reconhecida como uma teologia[2]. A partir destes movimentos Deus se torna um problema filosófico, cuja ocupação reflexiva é teológica.

Embora, o cristianismo tenha usado, desde muito cedo, recursos filosóficos, na proposta de sua mensagem, ainda que de modo insipiente, de modo geral os cristãos relutaram em assumir para si o “título”, ou o ofício de teólogos, foi apenas ao término do século II que eles começaram a reconhecer que suas reflexões sobre as Escrituras eram uma teologia.

Qual teria sido a principal razão desta relutância?

Jaeger (1992, p.10) destaca que a teologia é uma atitude reflexiva característica do espírito grego, que tinha em alta conta a capacidade do logos, portanto, podemos concluir que seja natural que uma religião calcada sobre a pistis opusesse certa resistência na assimilação desta atitude. Porém, esta resistência se diluiu na medida em que o cristianismo se encontra com a paidéia grega; é quase unânime a opinião de que tenham sido Clemente de Alexandria (c.150-215) e Orígenes (185-254) os primeiros a se professarem teólogos, no sentido em que entende o cristianismo, e, o próprio termo se consolida entre a cristandade a partir de Eusébio de

Orígenes, o Alexandrino. Um dos primeiros cristãos a se intitular 'teólogo'. Fonte da Imagem: pt.wikipeia.org/wiki/Ficheiro:origen.jpg

Orígenes, o Alexandrino. Um dos primeiros cristãos a se intitular ‘teólogo’. Fonte da Imagem: pt.wikipeia.org

Cesaréia (260-341).

Ao escrever sobre a história da teologia se faz necessário muita cautela, pois o período dos apóstolos e daqueles que conviveram com eles se distingue do desenvolvimento ulterior da teologia, posto que seja mais propriamente o período ‘fundacional’ da igreja, ali seus escritos são de inspiração do Espírito Santo, portanto não há como comparar o comum empenho em reflexões humanas com seu conteúdo “teológico”. Entretanto, é possível afirmar, como o fizeram Illanes e Saranyana (1995) que a história da teologia se desenvolve em torno de três grandes períodos, cada um destes com suas respectivas subdivisões e, por vezes, um período sendo interpenetrado pelo outro.

1º. Período Patrístico. 2º. Período Escolástico. 3º. Período Moderno e Contemporâneo.

1º. Período Patrístico.

Este período abrange cerca do final do século I ao século VIII, comumente os teólogos deste período são chamados ‘Padres Apostólicos’, pois viveram relativamente próximos aos apóstolos. Há em seu interior, basicamente três períodos: 1º, do século I ao IV, formação da “teologia”; 2º, séculos IV e V, chamado de “a era de ouro”, devido ao o fim das perseguições a igreja e a liberdade para o amadurecimento de sua teologia; 3º, do século V ao VIII, este é o período de transição entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média.

 

2º. Período Escolástico.

Este período abrange cerca do ano 750 ao ano de 1500, também é dividido em três períodos: 1º, cerca de 750 ao ano 1100, conhecido como período da ‘teologia monástica’, em 1100 surgem os burgos e se inicia a organização das cidades, o que suscita a formação das escolas em torno das catedrais, a escolástica; 2º, de 1100 a 1300, período da teologia reconhecido como ‘Alta Idade-Escolástica’, é a era de Pedro Lombardo (c.110-1160), São Boaventura (1221-1274), São Alberto Magno (1193-1280), Santo Tomás

Santo Tomás de Aquino, o mais influente pensador da Idade Média. Fonte da imagem: pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Thomas_Aquinas_by_Fra_Bartolommeo.jpg

Santo Tomás de Aquino, o mais influente pensador da Idade Média. Fonte da imagem: pt.wikipedia.org

de Aquino (1225-1274) e Duns Scotus (1265-1308); 3º, de 1300 a 1500, a ‘Baixo-Escolástica’, neste período há o declínio da escolástica, e, a conseqüente abertura para o Renascimento.

Temos aqui dois breves intervalos que não deixam de caracterizar-se por certo tipo de reflexão teológica, é possível se falar de uma ‘escolástica renascentista’, que se desenvolve no começo do século XVI e segue até seus meados, e, também de uma ‘escolástica barroca’, a partir dos meados do século XVI até o século XVII.

Não é possível omitir que o século XVI é marcado pelo inicio de uma divisão profunda no cenário da teologia, a Reforma protestante a secciona de modo tal que diversas correntes se originarão dela. Três personagens destacam-se neste período Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano, Jean Calvino (1509-1564) e Ulrich Zwinglio (1484-1531), dois documentos são fundamentais para os rumos que a teologia tomaria a partir deste período: ‘A Confissão de Augsburgo’ (1530), documento protestante redigido por Felipe Melanchton (1497-1560), discípulo de Lutero, e, já no

Martinho Lutero, o monge alemão que incendiou o mundo. pintura de Cranach (1529). Fonte da imagem: pt.wikipedia.org/Ficheiro:Luther46c.jpg

Martinho Lutero, o monge alemão que incendiou o mundo. pintura de Cranach (1529). Fonte da imagem: pt.wikipedia.org

século XVII, ’A Confissão de Fé de Westminster’ (1643), documento reformado, dos puritanos, calvinistas ingleses.

3º. Período Moderno e Contemporâneo.

O período moderno e contemporâneo da história da teologia abrange os séculos XVII até os dias atuais, distinguindo-se as seguintes “divisões”: 1º, séculos XVII e XVIII, cenário da ruptura entre os âmbitos espiritual e intelectual, é neste século que a teologia evangélica tem sua gênese, exatamente no interior da ortodoxia confessional, todavia, o fundamentalismo é o resultado dos “revivals[3]” evangélicos dos séculos XIX e XX; 2º, século XIX, centro de polêmicas e tensões, mas também ocorrem vislumbres de “renovações”; 3º, século XX, segundo Gibellini (1998) o discurso teológico que originalmente propunha a “glória de Deus”, evolui em direção à defesa e à valorização do humanum.

Quanto ao papel da teologia no presente século, somente as próximas gerações poderão pronunciar um veredicto!

Bibliografia.

GIBELINI, Rosino. A Teologia do Século XX, Tradução: José Paixão Netto, São Paulo, Edições Loyola, 1998

ILLANES, Jose Luis & SARANYANA, Josep Ignasi. Historia de La Teologia, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1995.

JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego, Tradução: Artur M. Parreira, São Paulo, Martins Fontes, 2001.

____________. La Teología de Los Primeiros Filosofos Gregos, México, Fondo de Cultura Económica, 3ª. Reimpresión, 1992.

PLATÃO. A República, Tradução: J. Guinsburg, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 2ª Edição, 1973.

LIVRO D CONCÓRDIA. (Editado por) Leopoldo Heimann. Traduzido por Arnaldo Schüller. 4ª Edição, São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre, Concórdia, 1993.


[1] Platão critica os discursos dos poetas sobre os deuses e propõe que os filósofos tracem regras para que eles possam compor: Vide Republica 377b – 383c.

[2] Uma simples e boa explicação sobre a dimensão teológica da obra de Aristóteles pode ser lida em BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles, tradução: Dion Davi Macedo, São Paulo, Edições Loyola, 1998. Sobretudo, o 3º Capítulo: “O método da metafísica”.

[3] Para uma exposição sucinta do que sejam os revivals evangélicos, Vide: http://en.wikipedia.org/wiki/Christian_revival

UMA REFLEXÃO A PARTIR DO TEXTO “UM TROTE NO ESTILO SOKAL POR UM FILÓSOFO ANTIRELIGIOSO”.

Por: Carlos Eduardo Bernardo.

“Quem procurar sinais da presença de uma divindade irônica mexendo seus pauzinhos por trás do enorme jogo do mundo, não encontrará nenhum indício disto no gigantesco ponto de interrogação que se chama cristianismo. Veremos que a humanidade se ajoelha diante da antítese daquilo que no início era o sentido e a lei do Evangelho, que no conceito de ‘igreja’ santificou-se justamente o que o ‘mensageiro feliz’ considerava inferior e ultrapassado em relação a esse conceito; porém, procuraremos em vão uma forma maior de ironia da história mundial”.

(Friedrich W. Nietzsche, O Anticristo, 36.)

Introdução.

Diego Azizi, meu amigo, e, articulista deste blog, traduziu o artigo de Jerry A. Coyne[1], Um trote no estilo Sokal por um filósofo antireligioso [sic]. O artigo nos apresenta a faceta do Dr. Maarten Boudry, filósofo antirreligioso. O Dr. Boudry remeteu um “pós-moderno e teologicamente sofisticado […]” resumo para duas conferências de teologia, porém era um resumo “falso”, um texto no estilo Sokal.

Um texto no estilo Sokal é uma fraude acadêmica, um texto verborrágico e prolixo, mas sem sentido algum, propositalmente escrito com grande poder de sedução devido o excesso de palavras difíceis e citações aparentemente eruditas, cujo propósito é testar o rigor acadêmico e a legitimidade de instituições que se pretendem bastiões de cultura acadêmica sobre determinada disciplina[2].

Dadas características desse tipo de escrito, espera-se que nenhuma instituição acadêmica séria aprove sua publicação, todavia o escrito de

Dr. Maarten Budry

Dr. Maarten Boudry (1984). Pesquisador  e Membro Docente do Depto. de Filosofia da Universidade de Ghent (Bélgica) 

Boudry foi aprovado para as publicações.

Este episódio parece comprovar que não apenas a religião cristã, em suas expressões mais populares, mas também suas expressões mais requintadas, representadas pelo labor teológico – os seminários, as conferências, os periódicos e outros – são indignos de crédito.

A Teologia enquanto instituição cristã pretende ser um conhecimento “científico e racional das coisas divinas”, mas não consegue distinguir entre um conhecimento fundamentado de uma fraude acadêmica, na área mesma em que se pretendem especialistas.

O presente escrito pretende refletir sobre o significado da submissão a instituições de ensino e teológico de textos no estilo Sokal, e, também pretende demonstrar que a eficácia desse tipo de teste é garantida por uma defecção intrínseca à constituição do próprio cristianismo.

O Texto.

Se há realmente uma batalha entre a religião e a antirreligião, em especial entre o cristianismo e o ateísmo, é possível considerar cada argumento, cada referência, cada denúncia, cada gesto de um dos lados, em relação ao outro, como se fosse um “ataque” e a reação do outro como uma “defesa”, ou simplesmente um “contra-ataque”.

Por este ângulo a submissão de textos no estilo Sokal às instituições de divulgação e ensino teológico, aparentemente significa que os ateus e outros antirreligiosos consideram a teologia como a “última forma resistente do cristianismo”.

Desde ao advento da Modernidade (séc. XVI) o cristianismo começou a cindir-se em duas ‘instituições’, a igreja e a teologia.

Nos primórdios o cristianismo tinha na vida cotidiana e no serviço da igreja a formação espiritual e intelectual de seus fiéis, inclusive dos líderes, sendo sua ocupação de ordem prática e não teórica.

Ao longo dos séculos este modelo se manteve relativamente inalterado, apesar de, no período medievo, a educação “teológica” ter sido transferida para os mosteiros, ainda assim manteve-se intramuros da igreja.

O século XVI viu o surgimento dos primeiros seminários teológicos católicos, mas foi principalmente a partir dos meados do século XVIII, sobretudo com o advento do ‘movimento evangélico’ e o “boom” do racionalismo, que o cristianismo tomou de empréstimo os modelos seculares de formação, a universidade[3]. Estes modelos sobrepostos aos moldes do ensino teológico protestante de algumas universidades “misturaram- se” à mística da ‘religião do coração’, ensejando o ensino de uma teologia evangélica, biblicista e fundamentalista.

Esta teologia também tomou do racionalismo as categorias discursivas com objetivo de defender a fé e formar líderes competentes para a igreja.

Este é basicamente o momento histórico em que o cristianismo cindiu-se em duas ‘instituições’ diferentes: a igreja e a teologia.  A primeira seria o bastião da fé e a segunda o bastião da intelectualidade cristã.

A teologia se hipostasiou em face da igreja, assim como, o cristianismo, séculos antes, hipostasiara-se em face das comunidades dos fiéis, o que era

uma vida de simples testemunho da fé em Cristo Jesus, foi substituída gradativamente pelo assentimento intelectual num determinado conjunto de doutrinas, alicerçadas numa leitura muito questionável da Bíblia.  De igual modo o testemunho “itinerante” dos fiéis o mundo antigo, nas primeiras comunidades, fora gradativamente absorvido pela imposição de adesão a igreja como estrutura monolítico-centralizada.

Sobretudo a partir do século XIX e em parte do século XX, muitos jovens considerados fervorosos e fiéis na fé, perdiam-se ou sentiam-se fortemente abalados em suas convicções ao ingressarem nos seminários, advoga-se que isso se dava por causa da exigência do uso rigoroso da razão no exercício de análise do conteúdo da fé[4].

Porém, a divisão à qual nos referimos não trouxe benefícios aos cristãos, foi sim malévola, pois enfraqueceu suas fileiras de modo indelével.

Houve um “confinamento” da fé nas congregações, de modo que pessoas mais cultas, sobretudo os não cristãos, começaram a acreditar em um determinado estereotipo: os cristãos nas congregações são pessoas ignorantes, “burras”, estúpidas que se deixam manipular por pastores espertalhões!

Também foi criada a imagem dos teólogos como aqueles que dominam racionalmente a fé, como aqueles que são os únicos habilitados para pastorear a igreja e fazer frente ao secularismo e à crescente onda de incredulidade que “assalta” ao homem moderno.

Em consequência disto o século XX testemunhou muitos conflitos entre os teólogos e os pastores de campo; os primeiros criticavam a fé ingênua e “supersticiosa” da congregação, eles supunham que esta ingenuidade era alimentada por seus pastores, e, os últimos criticavam a atitude acentuadamente teórica dos teólogos, consideravam sua abordagem excessivamente racional, distante da realidade das congregações, além de acusarem os teólogos de se portarem diante dos demais fiéis e líderes com atitude de pretensa superioridade.

O caráter individual de muitos adeptos, suas intenções e seu testemunho não estão em causa. Todavia, analisando com rigor e imparcialidade é difícil negar que a igreja, enquanto congregação, o grupo de fiéis que busca orientar-se quase exclusivamente pela fé, entrou em colapso, e isso devido à sua própria ingenuidade, à superstição sob o título de piedade, mas, sobretudo à corrupção extrema de seus líderes; estes se envolveram no jogo de vaidades e se deixaram dominar pela ambição em conquistar o poder secular.

Esta conjuntura colocou o cristianismo em descrédito diante da sociedade secular e mesmo para muitos fiéis, o que se constata facilmente por meio dos dados de estatísticas acerca da crescente perda de fiéis a cada dia[5]. Muitos ex-adeptos do cristianismo se tornam seus mais ativos opositores, engrossando principalmente as fileiras do ateísmo; a veemência com que negam a fé cristã, estes que outrora a professavam, é proporcionalmente inversa à defesa que dantes dela faziam.

Os teólogos, e, a teologia, representada pelos seminários, aparentemente são a única frente de resistência ainda fortificada contra o secularismo e o ateísmo, ao menos assim tem sido considerado pela igreja, sobretudo em sua corrente denominada ‘evangélica’.

Posto que, a igreja perdeu sua credibilidade e não consegue fazer frente ao

Será  a teologia  o último refúgio do cristianismo?

Será a teologia o último refúgio do cristianismo?

avanço da racionalidade científica e dos ataques do ateísmo “militante”, os teólogos foram reabilitados com o objetivo principal de defender a igreja, supostamente, sobre as mesmas bases científicas e racionais.

Esta atividade teológica, de cunho apologético, tem sido constante principalmente nos Estados Unidos da América (USA), onde o fundamentalismo cristão resiste ao secularismo crescente e às inquirições do ateísmo.

Mas, se pudéssemos provar rigorosamente que as pretensões acadêmicas dos seminários e outras instituições de ensino teológico não se sustentam? Se conseguíssemos demonstrar que todas as verborrágicas obras de teologia, racionalmente justificadas, não passam de quimeras sustentadas apenas pelo envoltório de um bom discurso?  A consequência não seria a desmoralização dos seminários, e, a desarticulação do discurso teológico frente aos nossos contemporâneos?

Aparentemente este é caminho mais eficiente para a derrocada final do cristianismo.

Há tempos livros têm sido escritos e documentários produzidos com o intuito de desmascarar ou refutar teorias acerca da fé ou da religião, tanto por parte de ateus, quanto por parte de religiosos. Há muito, debates públicos entre ateus e teólogos têm sido promovidos com o propósito de “dar a vitória” a um dos lados!

O uso do estilo Sokal parece ser um modo devastador de minar a autoridade das instituições de ensino teológico, pois, seu sucesso indica que apesar de se pretenderem eruditas, não sabem distinguir entre o que seja uma fraude acadêmica e o que seja um escrito sério com fundamentos epistêmicos acerca de assuntos em que deveriam ser exímios especialistas.

A possibilidade de eficácia desta espécie de ataque ao cristianismo tem como fonte a própria natureza desta religião, conforme sua moderna configuração, ou seja, o desvio do cristianismo, enquanto instituição, sua cisão em duas instâncias na tentativa em equiparar-se ao modelo secular, é que possibilita esta investida.

A bifurcação igreja/seminário feriu o principio de unidade do Evangelho, pois dividiu a igreja em uma classe de doutos e outra de símplices[6].

A própria existência de seminários atesta a inépcia da igreja em formar seus membros no Evangelho. A preocupação da igreja jamais deveria ter se demovido da existência em testemunho vivo de Cristo, para a elaboração teórica da fé. Os lideres da igreja nos primórdios se formavam na vivência, no seio das comunidades, eram homens simples, mas envoltos em uma aura de espiritualidade e autenticados pela prática do amor ao próximo, isso de tal modo que impactavam com seu testemunho mesmo aos homens que poderiam ser considerados mais incrédulos.

É possível pensar, de acordo com as características do Evangelho, que o Sokal pode afetar frontalmente a teologia, porque a sua esfera, o seu “lugar” (gr. ho tópos) é a imanência, ela é um exercício teórico marcado pelas contingências históricas[7], assim como os que nela se exercitam. Todavia o Sokal não pode afetar o Evangelho, porque sua essência está na esfera, no “lugar” de transcendência[8]. Dizer isso é assumir que a teologia, bem como a religião, é uma construção humana, e, portanto está marcada pelas contradições que o humano carrega em si enquanto ser de agonia. Mas, esta argumentação é em si mesma uma abordagem teológica, sobre a qual não pretendemos nos debruçar.

Conclusão.

O resultado das articulações políticas de Constantino, no século IV, sofreu dobras e desdobras ao longo dos séculos, marcado por momentos históricos vergonhosos: Cruzadas, a cisão na Reforma, as Guerras da Religião, a Inquisição, o silencio diante das atrocidades do nazismo e a cínica conivência com diversos regimes autoritários e ditatoriais em diversas partes do mundo.  Com este histórico o cristianismo parece ter encontrado o fim de seus recursos.

A Europa, outrora foco disseminador do cristianismo, está tomada por uma onda de incredulidade crescente, e nas Américas as igrejas também sofrem perdas consideráveis.

Se os teólogos conseguiam, de algum modo, salvaguardar as fronteiras da cristandade, sua seriedade teórica, além de ser questionada, está sendo testada e parece não alcançar êxito em seus resultados.

Não é possível terminar este escrito sem retornar, ainda que brevemente, à citação em epígrafe. Dentre os críticos da fé cristã Nietzsche foi o mais agudo e aquele que fez o melhor diagnóstico acerca do cristianismo. Ele pode dizer

Friedrich W. Nietzsche (1844-1900). O mai agudo crítico do cristianismo.

Friedrich W. Nietzsche (1844-1900). O mais agudo crítico do cristianismo.

que no cristianismo “[…] a humanidade se ajoelha diante da antítese daquilo que no início era o sentido e a lei do Evangelho […]”. É visível que ele opõe o Jesus do Evangelho ao cristianismo e o seu Cristo, pois em sua visão, o cristianismo apresenta ao mundo um antievangelho sob o título de Evangelho, além de transformar o ‘mensageiro feliz’ e gracioso no pregador de uma mensagem de ressentimento, que noutra parte, ele, designa pelas expressões “má-nova” e desevangelho[9].

Talvez toda esta situação, a queda do cristianismo, o fim da “civilização cristã”, abra espaço para o Evangelho, para vidas transformadas que não afirmam qualquer superioridade de si, mas se doam em verdade para que todos possam realizar-se em suas possibilidades reais. Talvez, seja necessário o esvaziamento dos templos para que haja o pleroma de Cristo naqueles que realmente a Ele se entregaram e mostram isso na entrega ao outro, na linguagem cristã: na entrega ao próximo.

Da morte de Deus, constatada por Nietzsche, sobe o cheiro pútrido que contamina os ares, e, esse cheiro nada mais é que o próprio cristianismo, suas doutrinas, suas práticas, seus ritos, sua teologia, enfim, tudo o que se constitui em detrimento do Evangelho.

Se as igrejas são túmulos de Deus, suas lapides os seminários são e as teologia o seu epitáfio.

Esperamos que haja realmente “a manhã do terceiro dia”!

Bibliografia.

CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Stromata. In: www.earlychristianwritinngs.com/clement.html

LOUREIRO, Maria Amélia Salgado. (Coord.) História das Universidades, São Paulo, Estrela Alfa Editora, S/D.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: Maldição do Cristianismo. Rio de Janeiro, Newton Compton Brasil Ltda., 1992.

THIELICK, Helmut. Recomendações Aos Jovens Teólogos e Pastores, São Paulo, Editora SEPAL, 1990.

http://whyevolutionistrue.wordpress.com/2012/09/25/a-sokal-style-hoax-by-an-anti-religious-philosopher-2

http://projetophronesis.com/2013/03/26/um-trote-no-estilo-sokal-por-um-filosofo-antireligioso-a-sokal-style-hoax-by-an-anti-religious-philosopher/

http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?view=noticia&id=1&idnoticia=2170&t=censo-2010-numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao.

http://en.wikipedia.org/wiki/Alan_Sokal

 

http://skepp.be/nl/levensbeschouwing-evolutie/vrije-universiteit-voor-schut-met-namaakartikel#.Udg9wzuorqF


[2] Sugere-se como leitura introdutória acerca do que seja o trote no estilo Sokal (Sokal hoax) a página da Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Alan_Sokal

[3] Importante lembrar que as Universidades têm origem ligada às transformações pelos quais passaram os ‘ensinos maiores ou gerais’ (lat. studium generale), importantes conjuntos de escolas monásticas e episcopais da Idade Média. Algumas dentre as mais importantes universidades norte-americanas nasceram com objetivo de reavivar a fé cristã, Harvard (1636) e a Princeton (1896), por exemplo, porém secularizaram-se no decorrer dos séculos.

[4] Sugiro a leitura de THIELICK, Helmut. Recomendações Aos Jovens Teólogos e Pastores, São Paulo, Editora SEPAL, 1990, o livro relata este fenômeno e propõe um lenitivo ao problema, uma espécie de código de ética que gerenciasse suas primeiras experiências nos seminários, este escrito, dentre outros, indica quais eram as dimensões do problema.

[5] O quadro no Brasil é relativamente diferente, enquanto análise estatística, o Censo Demográfico 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou um crescimento na população evangélica, que passou de 15% em 2000 para 22,2% em 2010, embora a maioria religiosa no Brasil ainda se declare de fé católica. Todavia, o mesmo Censo registrou um considerável aumento no número daqueles que se declaram sem religião, em 2000 eram quase 12,5 milhões (7,3%), e, em 2010 ultrapassam os 15 milhões (8,0%). Informações adicionais que revelam o perfil daqueles que integram cada uma das fileiras podem ser obtidas em http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?view=noticia&id=1&idnoticia=2170&t=censo-2010-numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao.

[6] Não ignoramos que na história da igreja este tipo de classificação não é estranha, Clemente de Alexandria, por exemplo, classificava os cristãos entre dois grupos: o simples fiel e o gnóstico, cristão perfeito (Strom. IV, 21; 130,1), porém, este caso se trata de uma topologia que visa um determinado fim no contexto de uma teoria específica. Já no exemplo do cristianismo contemporâneo, se trata de uma práksis que não se presta a uma justificativa teórica, na realidade é vergonhosamente mascarada sob um discurso de igualdade que não encontra qualquer ressonância na realidade.

[7] O próprio Boundry relativiza a importância de seu hoax, ao admitir que toda disciplina científica é suscetível à uma paródia, ainda que considere a teologia como aquela que é mais suscetível.

Vide: http://skepp.be/nl/levensbeschouwing-evolutie/vrije-universiteit-voor-schut-met-namaakartikel#.Udg9wzuorqF

[8] Embora o Evangelho seja de transcendência, sua virtude é exatamente participar, enquanto logoi de Deus, para os que creem assim, da automanifestação do Divino no plano da imanência.

[9] Vide: Nietzsche, O Anticristo, 39.

Um trote no estilo Sokal por um filósofo antireligioso (A Sokal-style hoax by an anti-religious philosopher)

Por Jerry A. Coyne


Sou um grande fã do Dr. Maarten Boudry, um filósofo belga que é pesquisador-bolsista do departamento de filosofia e ciências morais da Ghent University. Boudry passou muito tempo mostrando que religião e ciência são incompatíveis, atacando a distinção entre “naturalismo metafísico” e “naturalismo metodológico” (uma distinção bastante adorada pelos acomodacionistas), e geralmente humilhando (
pwning*) “teólogos sofisticados™.”

Vocês podem encontrar minhas discussões anteriores sobre o trabalho de Boudry aqui, aqui e aqui, e se vocês estão familiarizados como o escorregadio teólogo Alvin Plantinga, certifiquem-se de ler a nova resenha de Boudry sobre o livro de Plantinga “Where the Conflict Really Lies: Science, Religion, and Naturalism. A resenha de Boudry está disponibilizada online, começando na p. 21 da the latest newsletter from The International History, Philosophy and Science Working Group.

Mas hoje eu apresentarei algo mais: um verdadeiro trote no estilo Sokal perpetrado por Boudry. Ele me informou ontem que submeteu um falso, pós moderno e teologicamente sofisticado resumo para duas conferências sobre teologia:

A propósito, eu pensei que você pudesse achar isso engraçado. Eu escrevi um resumo fraudulento cheio de baboseira (gibberish) teológica (no estilo Sokal) e o submeti a duas conferências sobre teologia, as duas das quais aceitaram de pronto . O resumo entrou nos processos da conferência de “filosofia reformacional”. Veja Robert A. Maundy (um anagrama de meu nome) na p. 22 do programa”.

Para não dar trabalho para você, leitor, eu reproduzo abaixo, com a permissão de Boudry, o resumo de “Maundy” . Note-se que ele inventou uma faculdade, também, mas a citação de John Haught é real.

Os paradoxos da desordem darwiniana. Acerca de uma reafirmação ontológica da ordem e da transcendência.

Robert A. Maundy, College of the Holy Cross, Reno, Nevada

Na perspectiva darwiniana, a ordem não é imanente à realidade, mas sim um aspecto de auto-afirmação de realidade na medida em que é experimentada por sujeitos situados. Contudo, não é tanto a realidade que é auto-afirmativa, mas a ordem estrutural criativa da realidade que se manifesta para nós. Ser-completo, em oposição ao Ser-um, subscreve o nosso sentido fundamental de localidade e particularidade no universo. A valorização da ordem qua significativa ordem, ao invés da ordem-em-si-mesma, foi completamente objetivada na cosmovisão darwinista. Esse processo de descontextualização e reificação do significado acabaram, em última instância, por conduzir à des-ordem’ ao invés da ‘esta-ordem’(this-order). Como resultado, o materialismo darwinista confronta-nos com a erradicação do significado da experiência fenomenológica da realidade. A teologia negativa, no entanto, sugere a reavaliação da desordem como um pressuposto necessário à ordem, esta sem a qual a ordem não pode ser pensada de uma maneira ordenada. Nesse sentido, des-ordem se dissolve em manifestações de ordem transcendentes ao reino materialista. De fato, ordem se torna somente transparente qua ordem na medida em que está situada em um contexto de caos e ausência de sentido. Essa oposição binária entre ordem e des-ordem, ou entre ordem e aquilo que perturba a ordem, encarna um paradoxo central do pensamento darwinista. Como Whitehead sugere, a realidade não é composta por substâncias materiais desordenadas, mas com eventos ordenados serialmente que são experienciados em um sentido subjetivamente significativo. A questão não é o que estrutura a ordem, mas qual estrutura é imposta na nossa concepção transcendente de ordem. Através do foco estrito sobre o desordenado estado do ser-presentado, ou da “incoerência de uma multiplicidade primordial”, como John Haught bem colocou, materialistas darwinistas perdem o sentido da definitiva ordem no desdobramento do ainda-não-ser. Contrariamente ao que Dawkins afirma, se nós reformularmos nosso senso de “localicidade” da existência dentro de um espaço de contingência radical do destino espiritual, então a ordem absoluta reemerge como uma possibilidade ontológica. O discurso da des-ordem sempre já incorpora um momento criativo que permite a si próprio transcender o contexto no qual encontra a si mesmo, mas também a encontrar conforto e “respostividade” em uma ordem absoluta na qual ambos engendram e retém significado. Criação é a condição de possibilidade do discurso que, por sua vez, evoca-se como apresentando a própria criação. Discurso darwinista é, portanto, somente uma emanação do discurso absoluto da des-ordem, e não o contrário, como materialistas brutos como Dawkins sugerem.

Eu desafio vocês a entenderem o que ele está dizendo, mas claro está que isso apela para aqueles que, mergulhados na Teologia Sofisticada™, adoram muitas palavras difíceis que nada dizem/significam, mas que de alguma forma parecem criticar o materialismo enquanto afirma o divino. Não fará mal também se você humilhar Dawkins algumas vezes.

Isso mostra mais uma vez o apelo da baboseira (gibberish = palavras que nada dizem) religiosa aos crentes educados, e demonstra que organizadores de conferências também não lêem o que publicam, ou lêem e acham que, se o texto é opaco (complicado, difícil) é porque deve ser profundo.


Traduzido livremente e sem muito rigor por Diego Azizi.
Fonte: http://whyevolutionistrue.wordpress.com/2012/09/25/a-sokal-style-hoax-by-an-anti-religious-philosopher-2/

*Pwning (de pwned) é um estrangeirismo de gíria da internet usado comumente em comunidades de jogadores. Quer dizer que uma pessoa foi humilhada por outra pessoa, ou por um grupo. É uma variação de owned, porém mais ofensiva.

Razão, Fé e Ciência – Assunto Fascinante, Relações Conflituosas.

Por: Carlos Eduardo Bernardo.

Para Um Bom Começo.

Todas as pessoas têm naturalmente certa compreensão do que se quer dizer quando se fala sobre fé; ainda que tenham dificuldade em conceituá-la dificilmente irão dissociar a fé das noções que têm acerca de religião, Deus ou mundo espiritual. Certamente essa é a primeira associação que se faz com o conceito de fé: a fé religiosa.

Todavia, esse senso comum acerca da “fé religiosa” está marcado por certa incipiência e esta o aproxima da idéia mais geral de crença. Mas crença não

Paul Tillich (1886-1965). Teólogo protestante de perspectiva existencial. "[...] fé é a preocupação última  de todo ser humano".

Paul Tillich (1886-1965). Teólogo protestante de perspectiva existencial. “[…] fé é a preocupação última de todo ser humano”.

implica necessariamente a dimensão religiosa, pode-se crer nas instituições, nas pessoas ou em esperanças que têm as mais variadas origens, e, neste sentido é possível falar de fé política, fé antropocêntrica, fé institucional e assim por diante.

Não é tarefa fácil definir “fé”, pois muitas definições são possíveis, mas neste contexto se toma por referência a contribuição de Karl Rhaner (1904-1984) e Paul Tillich (1886-1965), pois parece que elementos que compõe suas

Karl Rahner (1904-1984)Importante teólogo católico e sua contribuição com a leitura existencial da fé

Karl Rahner (1904-1984)
Importante teólogo católico e sua contribuição com a leitura existencial da fé

respectivas definições podem ser atribuídos a todo exercício de fé, independente da religião. A presente reflexão trata da fé em sua dimensão mais especificamente religiosa, no entanto convém clarificar qual seja a concepção – conceito – de fé religiosa visado neste texto. A fé religiosa é aqui entendida como a disposição de “abertura subjetiva e ilimitada do sujeito” (RHANER, 1989, p.32) para com aquele que “é último em ser e em sentido” (TILLICH, 1987, p.485), o transcendente que tem em si prerrogativas que possibilitam a relação, a religação (lat. religio).

Por que temos que escolher entre a fé e a razão? Porque supomos que elas são instâncias mutuamente excludentes? Por que supomos que se alguém “crê não pensa e se pensa não crê”?

Estas questões não são colocadas com objetivo polêmico ou apologético, mas, simplesmente em caráter reflexivo. Pois é fácil encontrar diversos textos que, de um modo, ou de outro, fazem apologética da fé ou da razão, ou apenas polêmica desta temática.

Quando resolvemos uma equação não usamos o sentimento, quando apreciamos Quinta de Beethoven não fazemos racionalmente, embora não estejamos despojados dos sentimentos ou da racionalidade nos dois casos, e, por vezes fazemos uso seletivo de nossos atributos de acordo com o objetivo a que nos propomos. Nada impede que se faça uma análise matemática da Quinta referindo-se a sua métrica, ou que resolvamos apaixonadamente uma equação de segundo grau, mas, isso não é o que se espera de todos e não é que fazemos com maior freqüência.

Ao ultrapassar a fase da vida em que se tem uma visão mágica do mundo, crer na existência do Papai Noel, ou noutras fábulas, é tão ingênuo quanto à tentativa em “calcular quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete”; mesmo que se provasse a existência dos anjos jamais poderíamos fazer tal cálculo, porque essa existência ultrapassaria o âmbito de tudo que é de competência da razão.

A racionalidade procura o objeto que lhe é próprio, assim como fé também o faz. Colocar os objetos da fé na esteira da razão ou os objetos da razão na esteira da fé só ocasiona equívoco e problemas para o desenvolvimento da humanidade nos dois aspectos. Quando falamos das descobertas de Albert Einstein (1879-1955) pensamos em Ciência e não em religião, ainda que se possa advogar que num sentido muito peculiar Einstein foi um homem profundamente religioso, quando falamos de Paul Tillich pensamos em religião e não em Ciência, embora Tillich demonstre um conhecimento profícuo de assuntos científicos.

O fiel interessado em saber acerca da formação geológica da Terra procura informações num livro de Ciências, mais especificamente de Geologia, um aluno universitário que queira saber o crê um cristão começa pela leitura dos Evangelhos. Não se espera encontrar descrições dos aspectos constitutivos da litosfera, ou da hidrosfera na Bíblia, ou nos Evangelhos, assim como não esperamos encontrar no Tratado de Geologia Geral a narrativa do nascimento virginal de Jesus Cristo.

Ao não fortalecer a fé do indivíduo a Ciência em nada é diminuída, porque este não é seu objetivo; de igual modo a Religião não é menos importante por não nos enriquecer em conhecimentos sobre os fenômenos naturais, pois seu objetivo não é este. Porém a Religião será sempre diminuída se for evocada com propósito a obstruir o avanço da Ciência e certamente seus argumentos não serão nem um pouco religiosos, já a Ciência é sempre diminuída quando evocada com o puro propósito de destruir a fé, ou substituir a religião[1].

Stephen Jay Gould (1941-2002), talvez, o mais destacado evolucionista do século passado, desenvolveu uma descrição apropriada da capacidade de abrangência tanto da ciência, quanto da religião, ele a chamou “Teoria dos Magistérios Não-Interferentes”. Sua teoria propõe que as duas instâncias são magistérios – serviços – distintos, cujo campo de atuação não se permite interferir, pois, seus objetos e objetivos são de naturezas totalmente díspares, a ciência tem como objeto a Natureza e trabalha com explicações naturalísticas, o que coloca fora de seu alcance tanto os “objetos” da religião, quanto da moral.

A religião, por outro lado, objetiva a salvação – ou emancipação – espiritual da humanidade, ela cuida de questões sobre o relacionamento com Deus – ou com os deuses – no seu escopo estão inseridos assuntos relativos a espíritos, anjos, demônios, Deus e divindades, destino eterno da humanidade ou do indivíduo. Portanto, suas “explicações” jamais serão naturalísticas, e, seu objeto jamais será a Natureza – a menos que defendamos tratar-se da Natureza Oculta das Coisas, o que não inferimos neste contexto.

Os campos da religião e da ciência são distintos e dependem de instâncias de juízo, ou valorativas diferentes, a religião está submetida à instância da fé, e a ciência à instância da razão que se debruça sobre evidências dadas nos objetos da natureza, buscando corroboração para suas teorias na experiência.

Muitos cristãos ficaram indignados com a definição de fé dada por Richard Dawkins (1941): “[…] uma confiança cega, na ausência de evidências, até mesmo nos dentes das evidências”. Mas, não há motivos para tanta indignação. É possível que o adjetivo “cego” quanto ligado ao substantivo “fé”, seja o motivo principal de tal reação, porém, essa é a única forma como se pode qualificá-la em face da ciência e da razão, pois, seus objetos são invisíveis para estas instâncias e o cristão não deveria ofender-se com o cético quando ele afirma que a situação que se lhe apresenta no mundo da fé é como uma cegueira, pois ela o é realmente, e, isso do ponto de vista em que se coloca o homem “sem fé”, mesmo o homem de fé se posiciona ante o seu alvo como quem pode vê-lo, ainda que este lhe seja invisível como Moisés que ficou firme como se visse o invisível ou quando Paulo disse que Deus é invisível, e, é este o sentido da impossibilidade em ser visto, enquanto objeto da fé[2], ainda o homem de fé se move ante o que seja evidente como que lhe atribuindo menor importância, comparado ao homem sem fé, ou até mesmo ignorando as coisas visíveis, porque não são elas quem o orienta.

O homem de fé pode igualmente dizer que a atitude do homem sem fé, ao tratar racionalmente das “coisas espirituais”, é uma “racionalidade cega”, e, os homens que não creem não devem ficar indignados com isso, pois, podem perceber que o tratamento das coisas da fé com os olhos da razão não consegue chegar a assentir o objetivo da fé. É algo como tentar sentir o cheiro de uma flor com os olhos, ou o gosto da maçã com a ponta dos dedos, em ambos os casos são necessários os sentidos adequados, o olfato para o aroma e o paladar para o gosto. Igualmente, a razão para os cálculos e a fé para se aceitar um evento sobrenatural. Continuar lendo

Obra Completa de René Guenon em espanhol

René Guenon, assim como Mircea Eliade, é um pensador obrigatório para quem busca estudar os aspectos do sagrado, as raízes das grandes religiões, seus significados simbólicos e seus erros hermenêuticos. Com um conhecimento não só teórico mas também prático (Guenon realmente vivia nas religiões que estudava, conhecendo de dentro), o pensador francês nos proporcionou um vasto estudo sobre o islamismo, os ritos e símbolos vedas, as diversas correntes do cristianismo, dentre muitas outras. Uma fonte inesgotável sobre conhecimentos tradicionais, Guenon merece ser lido.

Link: https://sites.google.com/site/textostradicionales/ren-gunon-abdel-wahid-yahia

O AUTÔNOMO NO PENSAMENTO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO. UMA RESPOSTA À LEITURA DE FRANCIS SCHAEFFER.

“Se alguém vai passar uma longa temporada no exterior, é de se esperar que aprenda a língua do país a que se destina. Mais do que isso, entretanto, faz-se necessário ele poder realmente comunicar-se com aqueles no meio dos quais viverá. Impõe-se-lhe aprender ainda outra língua – a das formas de pensamento das pessoas com quem falará. É somente assim que conseguirá real comunicação com elas e a elas”.
(SCHAEFFER, 1974, p.5.).

Dr. Francis Schaeffer (1912-1984). Um dos mais importantes pensadores do Cristianismo no século XX.

Com Posfácio do Professor Doutor Carlos Arthur Ribeiro Nascimento.


Apresentação.

A gênese deste escrito lança raízes em minhas experiências de leitura há muito passadas.
Durante muito tempo – em meados da década de 90 – fui um leitor entusiasmado e voraz das obras de Santo Tomás de Aquino, sobretudo, dos títulos mais acessíveis ao público não-especializado – Compêndio de Teologia (1272) e O Ente e Essência (1254-1256) . Suas obras me auxiliavam na reflexão de minha vivência de fé cristã num mundo cada vez mais secularizado; e foi assim por um longo tempo.
Até que tomei conhecimento das obras do teólogo reformado Francis Schaeffer, este com muita erudição e apelo à autoridade dos textos bíblicos proferira certo juízo negativo acerca de determinados aspectos da obra de Santo Tomás, juízo este que alterou minha própria apreciação dos escritos do Aquinate e fez com que fenecesse a admiração e o interesse que tinha por sua obra.
No trato que mantive durante os anos subseqüentes com diversos escritos históricos e filosóficos, deparava-me constantemente com referências ao Doutor Angélico e a influência de sua obra na Filosofia e na Teologia Ocidental; e, pressentia que haveria um momento de minha vida em que eu teria que acertar contas com o Aquinate, lidar com nossa relação mal-resolvida.
Ao tomar conhecimento que teria a oportunidade de ser aluno do Professor Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento no curso de graduação em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, não hesitei e matriculei-me em sua disciplina – mesmo já tendo cursado uma equivalente. Esta não era a primeira vez que o professor cruzava meu caminho, há alguns tivemos um encontro casual numa Livraria – Sebo – no bairro de Pinheiros, onde após um período de conversa acerca de temas filosóficos – sem eu saber quem era meu interlocutor – ele me disse: – Meu jovem você devia fazer Filosofia!
Ante a expectativa deste curso, crescia em mim a certeza que a oportunidade para retomar a questão, que ficara em aberto, se daria por meio deste contato renovado com o entusiasmo e o fascínio provocado pela obra de Santo Tomás através das exposições do professor Carlos Artur. A ocasião se mostrava oportuna, durante um semestre aprendemos mais sobre a atmosfera intelectual em que se formou o pensamento do Aquinate. E sob a orientação do professor debruçamo-nos sobre o “Comentário de Santo Tomás ao Tratado da Trindade de Boécio” e também sobre o “Comentário de Santo Tomás à Metafísica de Aristóteles” – tudo isso sob o amparo de diversos textos complementares.
Compartilhei com o professor meu interesse em elucidar minha “velha” questão, expondo-lhe, inclusive, os detalhes da tese de Schaeffer – tese esta que ele achou interessante e inusitada, mesmo apresentando breves ressalvas – fiz a proposta de, a partir dos conhecimentos adquiridos em seu curso, tratar da questão confrontando os dois pensadores no meu trabalho de conclusão ao semestre. Minha proposta foi aceita com entusiasmo e sob sua orientação, retomei a questão.
Portanto, o escrito que o leitor tem em mãos é fruto da necessidade intelectual-espiritual do autor em resolver um relacionamento passado que ficou mal-resolvido, em expurgar o sentimento de frustração diante de teorias que parecem irreconciliáveis e em resgatar uma “velha” e boa amizade que outrora estava perdida no passado da incompreensão e da desesperança.
Todavia, apesar da tônica de pessoalidade conferida por esta breve apresentação, este escrito é paradigmático e pretende também – talvez até de modo primeiro – servir como uma pequena contribuição ao necessário, porém difícil diálogo entre a Teologia Católica e a Teologia Protestante e à tentativa de apaziguar “querelas antigas” apontando para a importância conjunta da contribuição intelectual e do vigor espiritual destas duas grandes tradições à Civilização Ocidental!
Agradeço a Deus por esta oportunidade, e, ao professor Carlos Arthur que tão gentil e perspicazmente me conduziu por estas sendas e escreveu o singelo posfácio a este texto.
São Paulo, 18 de Janeiro de 2011.
Carlos Eduardo Bernardo


Resumo.

Neste breve escrito pretendemos refletir acerca de uma concepção atinente ao pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274), conforme exposta nas obras de Francis Schaeffer, mormente em seu livreto, A Morte da Razão . Concepção essa que perpassa não apenas a trilogia à qual pertence esta obra, mas a todo o pensamento do autor em questão. Grosso modo, podemos dizer que Francis Schaeffer advoga encontrar na obra de Santo Tomás de Aquino, a idéia de uma autonomia da razão, mas não apenas isso, e sim uma autonomia da razão frente ao problema soteriológico.
Portanto, pretendemos averiguar se esta tese de Schaeffer se justifica ou não; para tanto, nos reportaremos não apenas à obra em questão, mas, sobretudo, aos escritos do próprio Santo Tomás de Aquino, que com certeza são abundantes na discussão sobre o status da razão, tanto no estado pré-queda, quanto no estado pós-queda, lembrando que este último é o mais relevante para a presente discussão.
Palavras-chave. Razão, Intelecto. Autonomia. Salvação. Irracionalidade. Modernidade.
Sobre o autor.
Francis Schaeffer (1912-1984) é talvez um dos mais importantes pensadores do Cristianismo, de vertente evangélica, do século XX. Crítico de arte, dramaturgo, filósofo, teólogo e ministro cristão. Pensou os problemas relativos à fé e a cultura e percebeu, como nenhum outro antes, que o grito surdo e o desespero do homem moderno são resultantes de uma fuga para um mundo de irracionalidade que nega o único fundamento legítimo para todo conhecimento, Deus.
Schaeffer era dotado de enorme perspicácia intelectual e profundidade espiritual; junto a sua esposa Edith Schaeffer fundou em 1955 a Comunidade L’Abri (Suíça), local que se tornou um importante centro espiritual e de propagação do Evangelho, além de um pólo de convergência intelectual, onde Schaeffer amadureceu ainda mais seu pensamento através dos diversos diálogos ali travados, fazendo com que sua abordagem fosse livre dos diversos academicismos, embora conservasse todo rigor necessário para a inquirição filosófica .

A Morte da Razão – Editora Fiel (ABU)

O Problema.
Schaeffer considera a obra de Santo Tomás Aquino aquela que transformou de forma efetiva o mundo, e, segundo ele, foi realmente Santo Tomás quem nos introduziu na Renascença humanista. Além disto, Santo Tomás quem abriu-nos o caminho à discussão que é convencionalmente designada “natureza e graça”, sendo a graça o nível superior da realidade e a natureza o nível inferior. O autor representa isto com o seguinte diagrama:

GRAÇA, O NÍVEL SUPERIOR:
DEUS O CRIADOR; O CÉU E AS COISAS CELESTES; O INVISÍVEL E SUA INFLUÊNCIA NA TERRA; A ALMA HUMANA; A UNIDADE.

NATUREZA, O NÍVEL INFERIOR:
A CRIAÇÃO; A TERRA E AS COISAS TERRENAS; O VISÍVEL E O QUE FAZEM A NATUREZA E O HOMEM NA TERRA; O CORPO HUMANO; A DIVERSIDADE.
(Schaeffer, 1974, p. 7).
Schaeffer argumenta que até a introdução deste dualismo a representação do mundo seguia um esquema bizantino, ou seja, as realidades celestes capitalizam toda a importância e sua santidade impunha uma representação simbólica, em hipótese alguma eram representadas de forma realista. A natureza, em si mesma, não suscitava interesse no artista, a não ser enquanto símbolo das coisas celestes. O autor observa, acertadamente, que Santo Tomás mantinha um princípio de unidade que correlacionava os dois âmbitos (graça e natureza), e, que a partir de sua proposta, muitos se esforçaram para manter a unidade, numa esperança de racionalidade. E conclui que antecipando o pensamento renascentista, Santo Tomás deu-nos a noção da necessidade de valorização da natureza, posto que, a valorização apropriada da natureza equivale à valorização apropriada do próprio Deus e vice-versa.
Todavia, Schaeffer nos diz que é a partir destas considerações introdutórias que podemos lançar um novo olhar sobre o diagrama natureza e graça.
Ao mesmo tempo, estamos agora em condições de ver o significado do diagrama da natureza e graça numa perspectiva diferente. Embora bons resultados adviessem da posição de maior realce conferida à natureza, isso deu lugar a muita coisa de cunho destrutivo, como se verá.
(Schaeffer, 1974, p. 9).
Schaeffer advoga que a valorização da natureza, de acordo com o esquema supra, deduzida do pensamento de Santo Tomás, já tem o germe do humanismo que caracterizará o período renascentista, e isso, em uma tendência sempre crescente até assumir as proporções que podemos contemplar nos tempos hodiernos. Esse germe é a afirmação da autonomia da razão.
Na concepção tomista a vontade humana estava decaída, mas não o intelecto. Dessa noção incompleta do conceito bíblico da Queda, defluiram todas as dificuldades subseqüentes. O intelecto humano se tornou autônomo. Em um aspecto era o homem agora independente, autônomo.
(Schaeffer, 1974, p. 9).
Segundo Schaeffer, um dos resultados do conceito de autonomia da razão é a capacidade humana em elaborar uma teologia natural, esta é uma teologia que pode ser formulada independentemente da Escritura. Schaeffer tenta fazer justiça a Santo Tomás lembrando-nos que este pressupunha uma unidade final entre esta teologia natural e aquela haurida da Escritura.
Como o autor, de forma perspicaz, salienta, as diversas disciplinas (ou saberes) são elaborações humanas e coisas de homens, estas “[…] não se podem conceber como linhas paralelas não relacionadas”. (Schaeffer, 1974, p.10). Portanto, os efeitos nocivos desta autonomia logo se fizeram sentir em todas as áreas e inclusive na Filosofia.
Com base neste princípio de autonomia, também a filosofia se tornou livre e se separou da revelação. Portanto, a filosofia começou a criar asas, por assim dizer, voando por onde quer que lhe aprazia, deixando à margem as Escrituras. Não quer dizer que essa tendência não se manifestara em tempos anteriores, apenas que de agora em diante se patenteia de maneira mais completa. Nem se limitou à teologia filosófica de Tomás de Aquino. Bem logo se fez sentir no mundo da arte.
(Schaeffer, 1974, p. 10).
Para Schaeffer, Santo Tomás abriu o caminho a um humanismo autônomo, a uma Filosofia autônoma, enfim a um movimento de autonomia que desaguou como um dilúvio e proporcionou à natureza, agora autônoma, o poder de devorar a graça, processo esse que se tornou efetivo na Renascença.
Desembaraçando o emaranhado.
Schaeffer é sem dúvida alguma um pensador digno de respeito, A Morte da Razão, foi, dentre suas obras, a primeira que tivemos oportunidade de ler, e, confessamos que a despeito de seu pequeno porte a ela é extremamente rica, variada e provocativa.
Não fosse por uma preocupação em se manter o rigor filosófico de nossas reflexões, talvez, jamais voltássemos às questões que ela nos suscitou. Todavia, tendo voltado, propomo-nos em levar esta empresa até o fim. Naturalmente, não esgotaremos o problema, mas com certeza desembaraçaremos, ao menos um pouco, o complexo emaranhado em que parece ter sido envolvido o pensamento de Santo Tomás de Aquino, o Doctor Angelicus!
A abordagem Dois-Andares.
Inicialmente devemos tecer algumas observações sobre o esquema graça e natureza, representado no diagrama proposto por Schaeffer, e, que segundo ele remete-nos a uma nova concepção da realidade, concepção essa inaugurada por Santo Tomás.
Esta abordagem habitualmente é designada como conceito dois-andares, e desde o momento em que os cristãos envolveram-se, realmente, com a Filosofia ela foi procurada e exercitada no decurso dos séculos, e isso, mesmo por contemporâneos de Santo Tomás.
Posto que, esta abordagem está intimamente relacionada à possibilidade de se fazer dois tipos de teologia; poderíamos retroceder a inquirição sobre este recurso até períodos que antecedem o próprio advento do Cristianismo, apontando para que o pensar esta possibilidade de duas teologias é, sem dúvida alguma, muito mais antigo, e isso se tivermos em conta que uma teologia revelada, de certo modo, já se encontra na base da religião dos hebreus (sempre vinculada à revelação bíblica) e uma teologia natural, remonta à Filosofia clássica de Platão (c 428-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), para não falar dos pré-socráticos, embora não possamos deduzir disto que qualquer relacionamento entre ambas já existisse na Antigüidade . Porém, não enveredemos por essas sendas, pois elas nos conduziriam a caminhos mais longínquos do que aqueles que importam a esta reflexão.
O que realmente é necessário destacar é que a abordagem dois-andares já se fizera presente, ao menos, deste Agostinho (354-431) e Boécio (480-524). Ainda mais, é notório que mesmo no período da Patrística, o problema de se estabelecer à exata relação entre a fé e a razão já se tornara central da reflexão cristã, e, isso de modo mais acentuado entre os Padres Gregos. Certo é que alguns tinham uma visão mais organicista da relação entre ambas, a exemplo de Clemente (c.150-217) e Orígenes (c.185-253); porém, tem sido sustentado que outros as concebiam como relativamente estanques, e que esta tendência foi a que se tornou mais comum no período medieval . Todavia sempre houve entre ambas a convicção de que a fé e razão não são de natureza totalmente heterogêneas devido à possibilidade em correlacioná-las!
A Distinção das Ciências.
Em Santo Tomás vemos uma culminância possível do esforço em conjugar harmoniosamente a auctoritas e a ratio, esforço este que se desenrolara durante séculos, onde ora a pêndulo se inclinava mais para a ratio, a exemplo de Boécio (480-524), ora se inclinava mais para a auctoritas, Hilário (315-367). Sempre que se fazia necessário um modelo que mantinha o equilíbrio entre os dois princípios, era necessário retornar a Agostinho, o Mestre do Ocidente. Mas, novos problemas se punham diante do Cristianismo, e a redescoberta de Aristóteles requererá uma nova síntese que viesse a nutrir-se menos do neoplatonismo e que se conciliasse com as novas fontes de saber que impulsionavam as ciências .
Mas ao fazer isso, Santo Tomás não confundiu as disciplinas e tampouco atribuiu à razão alguma qualidade que, de certo modo, ferisse a graça, antes ele estabeleceu solidamente a distinção entre a filosofia (entendida como a philosophia prima) e a teologia (entendida como doctrina sacra) delimitando claramente os seus terrenos. Boehner observa:
Embora, pensadores cristãos de eras anteriores houvessem percebido claramente a distinção entre filosofia e teologia, contudo nem sempre procederam a uma delimitação exata entre as duas ordens, pelo menos no que concerne à exposição concreta de suas doutrinas. Com S. Tomás acentua-se a tendência para destacar as conseqüências práticas desta distinção, já teoreticamente reconhecida, entre os dois domínios. Todavia, a idéia de uma filosofia separada e totalmente autônoma lhe é tão alheia quanto aos outros grandes vultos da filosofia cristã.
(Boehner / Gilson, 2008, p. 450).
Consideremos que Santo Tomás adota a distinção aristotélica das três ciências, a saber: as teóricas ou especulativas; as práticas e as produtivas. Sendo que entre as ciências teóricas, temos a Teologia, a Matemática e a Física.
No Comentário ao Sexto Livro da Metafísica de Aristóteles, Santo Tomás distingue as três partes da filosofia teórica, sendo a primeira uma aitiologia (aquela que trata das causas), livro V I, Lição 1ª. 1164; a segunda uma ontologia (aquela que trata o ente enquanto ente), Livro VI, Lição 1ª. 1165 e por fim, a terceira uma teologia (aquela que trata das inteligências separadas / Deus e os anjos).
Porém, Santo Tomás distingue esta Teologia ou Metafísica, daquela que ele chamará de Teologia das Escrituras ou a Sagrada Doutrina.
Era necessário existir para a salvação do homem, além das disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão humana, uma doutrina fundada na revelação divina.[…] Portanto, além das disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão, era necessária uma doutrina sagrada, tida por revelação.[…] Nada impede que os mesmos objetos de que as disciplinas filosóficas tratam, enquanto são conhecíveis à luz da razão natural, sejam tratados por outra ciência, como conhecidos à luz da revelação divina. A teologia, portanto, que pertence à doutrina sagrada difere em gênero daquela que é considerada parte da filosofia.
(Suma de Teologia, 1ª, q.1 a.1solução e resposta ao 2º. Artigo.)
Por meio desta distinção podemos entender que se Santo Tomás concede à razão uma importância elevada no processo de inquirição sobre Deus e de questões correlatas no âmbito da natureza (andar inferior), porém, ele não o faz em detrimento da fé e da revelação (andar superior), mas, concedendo que:
A sabedoria filosófica tem como sujeito o ente como tal e só conhece Deus como sua causa eficiente e final última. Embora esse conhecimento seja a aspiração mais profunda das criaturas intelectuais, só é atingível pela sabedoria filosófica de modo precário e longínquo. A teologia das Escrituras tem o próprio Deus como sujeito, tal como ele se revela, comunicando algo de seu próprio conhecimento. (Nascimento, C. A.R. do. s/d. p. 126)

Logo, o sujeito-gênero das inquirições diferem, embora coincidam; em uma nota da Suma de Teologia, 1ª, q.1 solução, o comentarista observa que a teologia natural é uma parte da metafísica que considera Deus como o principio de seu sujeito-gênero: o ser enquanto ser; logo, o princípio de todos os seres. Até este ponto é possível chegar através exercício racional, pois Deus mesmo nos deu indícios no plano da natureza pelos quais podemos estabelecer esta inquirição (Romanos 1.20); todavia, é necessário ir mais além se pensamos no conhecimento soteriológico sobre Deus, e, para isso se faz necessário uma teologia das Escrituras, que se pauta na revelação de Deus, ou seja, no conhecimento que Ele nos dá de si mesmo. Pois, da primeira forma, teremos que nos reportar a ele “[…] como o olho da coruja para com a luz do Sol, como diz no livro II da Metafísica, não podemos chegar a ele, pela luz da razão natural, senão na medida em que somos conduzidos a ele pelos efeitos”. (Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio. 5, a. 4, trad. p, 132).
A abordagem dois-andares, se realmente consta na obra de Santo Tomás, pauta-se em uma clara distinção, solidamente estabelecida, entre os campos atinentes à razão e a fé, portanto acreditamos que, após as breves considerações supra, fica claro que a relação entre ambas, bem como entre a teologia natural e a teologia das Escrituras, implicam em liberdade condicionada da razão que não fere o domínio da Graça!
Todavia, encerraremos este tópico com uma citação de Gilson, que corrobora nossa conclusão.
Todo domínio da filosofia pertence exclusivamente à razão; isso significa que a filosofia deve admitir apenas o que é acessível à luz natural e demonstrável apenas por seus recursos. A teologia baseia-se, ao contrário, na revelação, isto é, afinal de contas, na autoridade de Deus. […] Assim, delimitados os dois domínios, deve-se constatar, porém, que ocupam em comum certo número de posições. Em primeiro lugar, o acordo de direito entre suas conclusões últimas é coisa certa, muito embora esse acordo não apareça de fato. Nem a razão, quando fazemos uso correto dela, nem a revelação, pois ela tem Deus por origem, seriam capazes de nos enganar. Ora, o acordo da verdade com a verdade é necessário. É certo, pois, que a verdade da filosofia se uniria à verdade da revelação por uma cadeia ininterrupta de relações verdadeiras e inteligíveis, se nosso espírito pudesse compreender os dados da fé. […] a impossibilidade em que temos de tratar filosofia e teologia por um método único não nos proíbe considerá-las como constituindo, idealmente, uma só verdade total.
(Gilson, 2007, pp. 655-656).
Mesmo considerando que as verdades da fé não se alcançam através razão, depois de concedidas por meio da revelação são passíveis de articulação, aprofundamento e defesa por meio desta.
A Queda, a razão e a autonomia.
Afirmar que Santo Tomás tinha uma noção incompleta da Queda, nos parece um tanto temerário. Santo Tomás tinha uma noção completa da Queda, todavia, em face da noção da Queda proposta e adotada pela Reforma, quase três séculos depois, admitimos que sua concepção é radicalmente diferente.

Santo Tomás de Aquino (1225-1274) – Botticelli. “A graça não destrói a natureza, mas a conduz à perfeição”

Este problema é tratado pelo Aquinate na Iª Seção da IIª Parte da Suma de Teologia, Questão 85. Tentaremos sintetizar sua posição. Ao responder a questão: “O pecado diminui o bem da natureza?”; Santo Tomás, inicialmente, distingue os três possíveis significados de bem da natureza.
1º. Os princípios que constituem a natureza, com as propriedades deles decorrentes (como as potências da alma).
2º. A inclinação natural para a virtude como um bem especifico da natureza.
3º. O dom da justiça original que foi dado a toda humanidade no primeiro homem .
Quanto à ação do pecado ele nos diz que no primeiro aspecto não houve perda nem diminuição, quanto ao terceiro foi totalmente tirado após a Queda, já o segundo (a inclinação natural para a virtude) foi diminuída . Santo Tomás nos diz.
Como foi dito, o bem da natureza que diminui pelo pecado é a inclinação natural à virtude. Esta inclinação convém ao homem pelo fato de ser ele racional. É isso que lhe permite agir segundo a razão, e isso é agir segundo a virtude. Ora, o pecado não pode tirar completamente do homem que seja racional, porque já não seria capaz de pecado. Por conseguinte, não é possível que o predito bem da natureza seja tirado totalmente.
(Suma de teologia. Iª. IIª , q. 85, a.2, solução)

Santo Tomás defende que esta inclinação tem sua raiz na natureza racional, e, que “tende ao bem da virtude como a um termo, a um fim”. (Idem.), explica-nos que a diminuição poderia ocorrer de duas formas, no lado da raiz ou no lado do termo, porém, ele não pode diminuir no lado da raiz, pois isso diminuiria a própria natureza, o que já se estabelecera (diminuir na raiz colocaria o risco de desaparecimento a própria natureza racional); conclui Santo Tomás, que a diminuição se dá do lado do termo, no colocar impedimento para que tal inclinação não se chegue a ele. Eis como conclui esse momento de sua argumentação.
Mas, porque há diminuição pelo impedimento posto para não chegar ao termo, é claro que isso pode ir ao infinito, uma vez que o homem pode acrescentar ao infinito pecado sobre pecado. Entretanto, a inclinação não desaparece totalmente, pois fica a raiz. Tem-se um exemplo disso no corpo diáfano que tem, por ser diáfano, uma inclinação para receber a luz. Esta inclinação ou aptidão é diminuída pelas nuvens que sobrevêem, se bem que ela subsista sempre na raiz da natureza.
(Suma de teologia. Iª. IIª , q. 85, a.2, solução).

No artigo 3º. Santo Tomás trata especificamente das seqüelas do pecado, (e isso também em relação aos efeitos da Queda) sobre as potências inferiores e a própria razão. Na alma há quatro potencias que podem ser sujeitos de virtudes: a razão; a vontade; o irascível e concupiscível. Segundo o Doutor Angélico, quando estas quatro potências são demovidas da sua ordem (dos seus respectivos fins) temos que quanto à razão, há ignorância, quanto à vontade, há malícia, quanto ao irascível, há fraqueza e quanto ao concupiscível, há concupiscência . E assim, conclui:
Portanto, são quatro feridas infligidas a toda a natureza humana pelo pecado do primeiro pai. Ora, como a inclinação ao bem da virtude é diminuída em cada um pelo pecado atual, como fica claro pelo que foi dito, estas são quatro feridas conseqüências dos outros pecados, a saber, a razão encontra-se embotada, sobretudo em matéria de ação; a vontade endurecida em relação ao bem, e aumenta uma maior dificuldade de agir bem e a concupiscência inflama-se mais.
(Suma de teologia. Iª. IIª , q. 85, a.3, solução).

Portanto, no que tange ao conceito cristão de Queda, Santo Tomás, tem uma teoria plena e coerente, óbvio que diverge da concepção pessimista latina em que o homem era considerado despojado dos dons gratuitos e ferido em sua natureza, concepção essa que, em certo sentido, será retomada pela Reforma. A origem da teoria do Doutor Angélico pode ser localizada na concepção do Pseudo-Dionísio, que ao tratar dos anjos que pecaram, este observa que os mesmos conservaram em integridade o que pertence à natureza . Santo Tomás seguirá esta perspectiva para elaboração de sua teoria, que tende a evitar extremos perigosos.
Schaeffer adere à noção da Reforma, porém, ao fazê-lo, não considera de modo pleno a apreciação de Santo Tomás sobre este tema. Sustenta que somente a noção reformada pode ser considerada bíblica e que, de modo “contrário a Santo Tomás”, somente a Reforma preserva a autonomia como atributo exclusivo de Deus.
A Reforma aceitou a noção bíblica de uma Queda total, absoluta. O homem em sua totalidade era obra de Deus; agora, porém é decaído em sua natureza, inclusive o intelecto e a vontade. Em contraste com a posição tomista, admitia que somente Deus é autônomo.
(Schaeffer, 1974, pp. 18-19).
Há dois problemas com relação à atitude reformada, um deles é a crescente tendência a absolutização de sua hermenêutica da Queda, e, o outro é a não consideração de certas nuanças do pensamento de Santo Tomás, exatamente aquelas que tentamos ressaltar. Quanto ao falar de uma autonomia da razão em Santo Tomás; primeiro, cremos que as explicitações, supra, não deixam qualquer dúvida de o quanto é impróprio atribuir-lhe tal conceito.
Mas, acrescentamos a isso, que nos parece deveras anacrônica essa atribuição, uma vez que, não se pode dizer com certeza que a conjuntura histórico-social e as condições culturais e espirituais da época em que Santo Tomás viveu exalavam a atmosfera propícia à eclosão deste conceito; sobretudo, porque que o conceito de autonomia da razão é, conforme uso corrente, sem dúvida alguma, fruto das reflexões do Iluminismo. Cuvillier resumiu este conceito de autonomia da seguinte forma: “Estado da vontade racional que não obedece senão a regra imanente de si mesma”. (Cuvillier, 1976, p. 15). A origem conceitual do autônomo remonta até os escritos de Kant (1724-1804), que considera todo “ser dotado da faculdade de razão como potencial fundador de uma legislação universal” . Podemos afirmar que se esta concepção fosse apresentada a Santo Tomás, ele oporia a ela a noção de que “[…] a razão encontra-se embotada, sobretudo em matéria de ação; a vontade endurecida em relação ao bem, e aumenta uma maior dificuldade de agir bem e a concupiscência inflama-se mais”.
Conclusão.
Deste breve percurso podemos concluir que a abordagem dois-andares sempre foi familiar ao Cristianismo (com suas devidas variações) e que Santo Tomás, embora não fazendo uso da metáfora, talvez respirasse a atmosfera composta pelas implicações relativas a esta abordagem, todavia; mesmo estas implicações se integram dentro de conjunto arquitetônico, por ele construído, de forma a harmonizar coerentemente o exercício teológico natural com o exercício teológico da Doutrina Sagrada. Na elaboração de sua teologia (ulteriormente chamada aristotélico-tomista) valoriza-se demasiadamente a razão, posto que, leva em conta a sua capacidade em alcançar certas modalidades de verdade ; todavia, também considera que ela necessita da fé, pois sozinha não pode alcançar o conhecimento do mistério essencial de Deus.
Confrontando a teologia filosófica de Santo Tomás, relativa à razão e às potências inerentes ao homem, com aquela que foi desenvolvida pela Reforma; vemos o quanto realmente o homem é valorizado, e isso, de modo a constituir o que Pedro Dale Nogare chamou de um verdadeiro humanismo cristão . Dados os princípios adotados na consecução de seu intento, extraídos principalmente do Corpus Aristotelicum, disponível em sua época, o conjunto arquitetônico de sua obra não poderia ter outro caráter. E se expressa algo que é compreendido como uma visão otimista do homem é porque também extrai das Escrituras a afirmação da grandeza do homem, enquanto ser criado à imagem de Deus, imagem essa, que em algum sentido, manteve-se mesmo após a Queda, como se pode deduzir das palavras do Apóstolo Santo Tiago (S.Tiago 3,9).
Ao contrário, Schaeffer, adotando a perspectiva reformada sobre o homem e principalmente sobre a Queda, não poderia construir, de modo coerente, um conjunto arquitetônico de caráter diferente do que construíra; a sobrevalorização da vontade em contraposição à razão, traço característico da mentalidade semita, conforme a expressão das Escrituras; principio sempre tão caro à Reforma, confere à sua antropologia bíblica uma tonalidade sombria que logo se destaca ao contrastar-se com a concepção tomista.
Podemos depreender disto que uma dentre as duas concepções é melhor ou pior que outra, enquanto representação dos arcanos de Deus expressos nas Escrituras? De maneira alguma! Antes, são diferentes, devido os diversos motivos, já apontados neste escrito, mas ambas se nutrem da mesma fonte espiritual originária. Ambas pretendem atribuir a Deus toda glória e toda soberania, porém enquanto a Reforma escolheu para isso a via negativa, ou seja, tirar tudo do homem para engrandecer a Deus, Santo Tomás preferiu uma via positiva, preservar a integridade de algo no homem, para que em todas as coisas, inclusive nessa característica, Deus seja engrandecido!

Posfácio.

Este trabalho traz contribuições importantes para deslindar a sofrida relação entre as tradições cristãs: católica e protestante. A observação final – feita pelo autor – indica um ponto chave na diferenciação das duas atitudes: Tomás utiliza uma lógica de participação e a Reforma uma lógica da univocidade (herdada da escolástica do século XIV – nominalistas). Talvez a metáfora de dois-andares já seja comprometida com esta lógica da univocidade.
Santo Tomás usa na arquitetura geral do seu pensamento uma lógica platônica, ou melhor, neoplatônica, cuja peça central é a idéia de participação, isto é, o absoluto (Deus, as idéias) não exclui, mas fundamentam o relativo (criaturas, mundo material). Para Tomás, talvez fosse melhor usar a metáfora da água ou do óleo (graça) que empapa e limpa ou perfuma o pano (natureza) em que penetra. Confira a conhecida frase de que “a graça não destrói a natureza, mas a conduz à perfeição”. (Suma de Teologia, Iª parte, Q 1, a. 8, resp. ao arg. 8).
O trabalho do jovem autor revela um esforço bastante bem sucedido de leitura e confronto dos textos utilizados.
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento.

Bibliografia.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica – Volume I, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

________________. Suma Teológica – Volume II, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

________________. Suma Teológica – Volume IV, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

________________. Suma Teológica – Volume V, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

_________________.Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio: Questões 5 e 6. (tradução e introdução de Carlos A. R. do Nascimento), São Paulo, Fundação Editora UNESP, s/d.

BOEHENER, Philotheus / GILSON, Étienne. História da Filosofia Cristã, Petrópolis, RJ. Vozes, 2008.

CUVILLIER, Armand. Pequeno Vocabulário Filosófico. In: Coleção Atualidades Pedagógicas. Volume 82. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976.

GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 2007.

NASCIMENTO, Carlos A. R. do. “Tomás de Aquino, a metafísica e a teologia”. In: Frutos de Gratidão – Homenagem a Francisco Catão em seus oitenta anos. São Paulo, Paulinas – Unisal, s/d.

SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. Aliança Bíblica Universitária (ABU) – Fiel, São Paulo, 1974.

__________________. O Deus que se Revela. Editora Cultura Cristã, São Paulo, 2002.

As relações entre fé e razão

Introdução

Os textos que se seguem foram instigados por questões passadas na disciplina de Introdução ao pensamento teológico  do curso de Filosofia da PUC-SP. O tom do texto, às vezes, pode parecer ofensivo, mas foi necessário um tom mais duro para desfazer alguns erros que teólogos (muitos, mas não todos, obviamente) deixam passar sem problematizá-los devidamente e que a filosofia acaba por, consequentemente, tratando de forma radical e rigorosa.

Preferi manter os textos em sua forma apresentada ao professor, com as perguntas e as respectivas respostas, sem nenhuma alteração. Espero que esses pequenos textos possam ajudar o leitor no tratamento mais rigoroso dos temas abordados e que possa servir de auxílio para aqueles que sempre se fizeram as mesmas perguntas, mas sempre ficaram aporéticos.

Boa leitura.

Fé e razão: por que esses dois elementos são capazes de combinar-se e de colidir-se com tanta frequência? (resposta também válida para a pergunta: É possível conciliar fé e razão?)

R: A pergunta possui um erro genético, pelo que me parece, ao pressupor a possibilidade tanto da combinação entre fé e razão quanto da colisão entre esses dois conceitos.

Primeiramente devemos nos perguntar se esses dois conceitos são capazes de combinar-se, levando em conta que a fé aqui empregada é a fé religiosa, senão deveríamos explicitar os diversos sentidos de crença, ou melhor, distinguir tipos de crenças da fé propriamente dita, o que, seguramente não farei.

Pois bem, aceitamos que, se a razão parte de um princípio, em última instância, lógico das proposições empregadas (os pressupostos devem ser apoditicamente demonstrados, respeitando o princípio de identidade e não-contradição) e a evidência deve ser, no mínimo analítica (digo no mínimo pois, se faltam evidências sintéticas, as únicas possíveis têm que ser analíticas), não há espaço para a fé. Na concepção clássica grega, conhecimento racional (episteme) e crença (pistis) são ordens diferentes de discurso, sendo que o primeiro, poderíamos dizer, diz respeito às verdades demonstradas e o segundo à fé (ou seja, a evidência da demonstração não é feita nunca, arrisco a dizer). Por exemplo, Parmênides, Platão e também Aristóteles, separam conhecimento científico (consequentemente racional) tanto da pistis (crença) quanto da doxa (opinião). Ora, o que podemos inferir disso, senão a conclusão de que a fé e a razão não podem combinar-se? Claro que podemos partir da fé para o conhecimento racional do objeto da fé (como faz Agostinho, por exemplo, com a máxima de Isaías “se não crerdes não compreendereis”)1 mas isso não é prova de combinação entre razão e fé, e sim da subordinação da razão à fé, e isso com respeito ao conhecimento de coisas como a alma ou Deus. Kant, com sua publicação da Critica da razão pura, demonstra explicitamente que a razão pura não consegue atingir os objetos que ela (a razão) pretende na metafísica, sem cair nas famosas antinomias e que o conhecimento científico é conhecimento simplesmente do fenômeno e das leis necessárias que regem suas relações. A famosa frase kantiana “tive que limitar o conhecimento para abrir espaço para a fé” demonstra que são domínios diferentes, irredutíveis e incombináveis. No primeiro o “aparato cognitivo do sujeito”, com suas formas puras da intuição consegue fazer a síntese entre tempo e espaço com os conceitos a priori (categorias) e assim fundamentar a ciência do fenômeno. Com essa argumentação, Kant separa o domínio do conhecimento do domínio do puramente pensável. Os objetos da fé são apenas pensáveis, não podemos conhece-los através da razão pura, pois não são fenômenos e sim coisas em si. Desse modo a fé opera como sentimento, como revelação, mas nunca como razão, afinal, se a fé dependesse de demonstração racional, não haveria porque ser fé, e saber que algo existe é diferente de crer que algo existe. Saber é demonstrar, crer é um ato de confiança, de sentimento. Temos muitos exemplos na história da filosofia na tentativa de conciliação entre fé e razão, porém, seria proveitoso ver como isso se dá na história na mesma medida em que seria impossível fazê-lo aqui, mas tenho a convicção (claro que sempre provisória) de que essas duas instâncias podem ser submetidas uma à outra, mas não combinadas, conciliadas.

Com essa minha exposição, acabei por exclusão, demonstrando então que fé e razão colidem-se sempre e isso é inevitável, pois a razão sempre exigirá demonstração, seja empírica, seja lógica (se for suficientemente consequente), e a fé possui a virtude de não exigir tal demonstração, senão acaba perdendo seu estatuto de fé. Essas duas instancias pretendem dizer coisas diferentes sobre o mundo e as coisas, e cada uma, a seu modo possuem defeitos e virtudes, contudo, qualquer um que se deixe pensar consequentemente pode aceitar as demonstrações da razão, mas apenas alguns aceitarão as proposições da fé. Carl Sagan definiu certa vez que a fé nada mais é do que a crença na falta de evidências, e isso a define suficientemente bem para afirmar o que entendo também por fé.

A existência de Deus pode ser definida filosoficamente?

R: A existência de Deus pode ser argumentada filosoficamente, porém, ser definida já é um problema que dificilmente poderá ter uma resposta positiva. Há quase 3000 anos que a questão da existência de Deus é suscitada sem previsões de acabar (claro que por parte dos filósofos ateus essa questão é um falso problema). Desde a Grécia clássica essa questão foi colocada aos filósofos, mas nunca como um problema realmente sério. Platão, Aristóteles, os estóicos, os sofistas, Sócrates e muitos outros nunca duvidaram da existência dos deuses2, porém, Protágoras, o grande sofista, afirmava que qualquer suposição acerca dos deuses era errada, alegando que seu conhecimento era impossível. “Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana”.3 Agostinho e Tomás de Aquino argumentaram sobre a existência de Deus, porém as teses mais difundidas são a de Anselmo e a do moderno design inteligente. Não podemos afirmar que Aristóteles prova a existência de Deus pois sua teoria do primeiro motor imóvel ou da causa primeira pode ser interpretada de diferentes formas, sem com isso, afirmar necessariamente que esse motor ou causa primeira é Deus.4

Mas, como a pergunta reza o seguinte: “se a existência de Deus pode ser definida filosoficamente?” Irei apenas focar no argumento sobre se a existência é um predicado que pode ser definido.

A ideia de que Deus é um ser necessário sustenta essa hipótese, e atribuímos esse argumento, primeiramente a Anselmo (1033-1109), conhecido como o pai do escolasticismo medieval. Anselmo sugeriu que devemos compreender Deus como “aquele a partir do qual nada maior se pode conceber”. Deus é perfeito em todos os sentidos, nada lhe falta. Anselmo foi além e disse que isso é verdadeiro por definição. É um contra-senso imaginar Deus com alguma imperfeição, assim como é um contra-senso imaginar um quadrado redondo, ou um triângulo com cinco lados. Ora, se um ser é perfeito por definição, logo, ele deve existir, pois não existir seria uma imperfeição (seria menos perfeito do que os seres que existem), coisa impensável de um ser absolutamente perfeito. “Por essa razão é impossível que Deus não exista e é isso que se entende por um ‘ser necessário’”.5Com outras palavras, necessário é aquilo que não pode deixar de existir. Eis, em linhas gerais, o que se conhece como argumento ontológico. Parece ser um truque retórico mas esse argumento realmente persuadiu as grandes mentes da filosofia moderna, como Descartes ou Leibniz, e até mesmo Newton, que sustentam a validade de tal argumento. Contudo, já na época de Anselmo, um monge chamado Gaunilo encontrou uma grande falha nesse argumento. Gaunilo identificou que se esse argumento pode provar a existência de Deus, prova também a existência de uma ilha perfeita, de um homem perfeito, de um rato perfeito, ou de qualquer coisa que se julgue perfeita. Pensemos pois em uma banana perfeita, com o tamanho perfeito, cheiro perfeito, sabor e textura perfeitas, coloração perfeita, etc… Ora, essa banana têm que necessariamente existir, pois se não existisse, não seria perfeita. Uma sociedade perfeita também, o mesmo raciocínio. Mas existe a sociedade perfeita? Segundo Anselmo deve existir, senão não seria perfeita. Contudo, esse argumento apenas nos mostra como seriam essas coisas perfeitas se existissem, mas não podem afirmar que existem de fato. Acho que já consegui expressar a ideia de Gaunilo aqui, porém, ele evidencia a invalidez do argumento, mas não explica a natureza dessa invalidez.

Incrivelmente, 700 anos passados sem nenhuma oposição radical a esse argumento, apenas com Kant é que a natureza do erro desse argumento é apresentada. Para Kant, a existência não é algo que podemos predicar, e nem definir. A existência tem um sentido muito claro no campo do conhecimento possível. A existência é uma categoria formal, como a causalidade. Podemos apenas aplicar essas categorias às percepções sensíveis. “Mas justamente o aplicarmos às percepções sensíveis a categoria de existência (…) é o ato pelo qual estabelecemos os objetos a conhecer, os fenômenos. Este é o sentido de existência”.6 Ou seja, para afirmar que algo existe, possuir a simples ideia de algo não garante a existência, pois as coisas não existem por definição. É necessário obter a percepção sensível correspondente. Ora, não podemos ter a percepção sensível correspondente de Deus, pois Deus não é um fenômeno, não se apresenta aos meus sentidos. Kant então encontra a natureza do erro do argumento ontológico e impossibilita a existência de Deus como mera definição ideal.

Kant é um filósofo muito complexo, mas divertidíssimo de se ler (quando se compreende aquilo que está sento dito). Sua epistemologia é uma construção fantástica e uma instituição do pensamento humano. Para a compreensão desse argumento, portanto, é necessário que se compreenda o problema da Critica da razão pura, e sua solução. Mas acredito ter exposto o básico para a elucidação do problema da existência de Deus por definição.

Por que o sistema de fé não precisa ser discutido?

Essa questão parece invocar a ilusão de uma resposta simples, mas os problemas inerentes à pergunta são profundos. Primeiramente, a questão pressupõe que o sistema de fé não precisa ser discutido, o que humildemente discordo de maneira radical. Segundo, a questão deveria ser reformulada da seguinte forma: O sistema de fé deve ser discutido ou apenas aceito? Ora, aceitar de antemão um sistema de fé é incriterioso, principalmente se tratando de filosofia, e nenhum filósofo abriu mão de discutir esse assunto.

Então, antes de dar uma resposta definitiva a essa questão, coloquemos a seguinte indagação: As crenças religiosas são verdadeiras? Penso que o cerne da questão realmente atinge esse ponto, e nenhum filósofo foge dessa pergunta, pois buscam a verdade da fé e não apenas a constatação daquilo que as pessoas acreditam ou deixam de acreditar.

Algumas pessoas de fé aceitam que existem boas razões para acreditar que o mundo foi criado por uma divindade toda-poderosa. Outras dizem que a razão é irrelevante, basta apenas considerar declaracões da bíblia e da autoridade religiosa, mesmo que essas declarações não exijam confirmação por argumentos racionais, e são essas pessoas que afirmam que a fé não precisa ser discutida. Se deixarmos a questão por aqui, é possível concluir que algumas pessoas acreditam e outras não, e nada mais há para se dizer. É tentador parar por aqui, mas se quisermos pensar filosoficamente, penso eu, devemos antes de chegar a essa conclusão precoce, avaliar todos os argumentos a favor da existência de Deus, em outras palavras, todas as supostas provas disponíveis. Existirão boas razões para apoiar a crença em Deus? “Não podemos dizer que a crença religiosa é apenas uma questão de fé antes de estarmos certos da impossibilidade de encontrar argumentos racionais”.7Evidentemente não analisarei todos esses argumentos, nesse momento, pois são muitos e a intenção dessa resposta não é essa, mas enumerarei (genericamente, diga-se de passagem) quais são esses argumentos e o leitor poderá analisá-los por si próprio.

Argumento do desígnio: Podemos inferir que Deus existe a partir da natureza do mundo que nos rodeia.

Argumento da negação do acaso: Ou as maravilhas da natureza ocorreram por acaso ou são produtos de um design inteligente. Não podem ter ocorrido por acaso, logo, são produtos de um design inteligente.

Argumento da igualdade de provas: Concluímos corretamente que objetos como relógios foram feitos por criadores inteligentes, pois suas partes funcionam conjuntamente obedecendo a um propósito. Temos as mesmas provas de que o universo foi feito por um criador inteligente, pois suas partem funcionam conjuntamente obedecendo a um propósito, logo, podemos concluir justificadamente que o universo foi feito por um criador inteligente.

Argumento da causa primeira, sustentando que Deus é a primeira causa em uma cadeia causal: Tudo o que existe deve ter uma causa. A cadeia causal não pode recuar indefinidamente e em algum ponto devemos chegar a uma causa primeira. Essa causa primeira podemos chamar de Deus.

Argumento de que Deus deu origem à existência do universo como um todo: Tudo o que existe dentro do universo faz parte de um vasto sistema de causas e efeitos. Mas o universo exige uma explicação – por que razão existe? A única explicação plausível é a de que Deus é a causa do universo. Logo, para explicar a existência do universo, é razoável crer em Deus.

Argumento de que Deus é um ser necessário: O universo é uma coisa dependente. Não pode existir por si. Deus, um ser necessário, é a única coisa que não é dependente. Logo, o universo é sustentado por Deus.

Pois bem, eis os argumento existentes colocados genericamente (pois há muito o que destrinchar neles).

Durante a história da filosofia e da ciência, todos esses argumentos foram fortemente combatidos (não apenas por ateus, mas por pessoas que apenas pensavam consequentemente) e invalidados, desde Epicuro, passando por Protágoras, Gaunilo, Hume, Espinosa, Kant, Darwin, Russell e alguns outros. Ora, demonstrei aqui que durante a história da filosofia a fé foi sim discutida, e fortemente discutida. Contudo, as pessoas (ou a maioria delas) raramente acredita em Deus através de argumentos. Ou aceitam cegamente por estarem inseridas em determinada cultura ou por alguma convicção pessoal, interna. A irrelevância da necessidade de argumentos parece evidente. Porém, não são tão irrelevantes assim. “Os argumentos não são irrelevantes se queremos saber no que é razoável acreditar. Uma crença é razoável apenas se existem provas da sua verdade”.8Todos os argumentos que enumerei, me parecem inválidos, pois apresentam refutações fulminantes e contradições intrínsecas, mas, isso não prova a inexistência de Deus, prova apenas que esses argumentos são inválidos. No futuro podem surgir argumentos melhores que provem a validade da fé, mas, com isso, o propósito da fé se extinguiria, e ela passaria a ser conhecimento demonstrado. Portanto, a fé pode ser entendida como uma questão de convicção interna e não algo que pessoas razoáveis tenham de aceitar. Mas a história nos mostrou que a fé sempre foi discutida, e deve sim ser discutida, para que, em última instância, absurdos em nome da fé não prejudiquem a vida social e o bem estar de todos, como, infelizmente, já acontece.

É possível conciliar ciência e teologia?

Essa é outra pergunta dificílima que desafia tanto cientistas como teólogos, mas cuja resposta, se for analisada honestamente e consequentemente, não é tão complicada como costuma ser apresentada.

De antemão eu darei a minha conclusão, e depois demonstrarei como cheguei a ela.

Afirmo, peremptoriamente, que ciência e teologia9 não podem conciliar-se.

Durante a história da ciência, e principalmente com o advento da ciência moderna (com seus princípios na era da Renascença), as proposições científicas (principalmente da filosofia natural, posteriormente chamada de física) encontraram uma barreira nas posições teológicas (reduzindo aqui apenas à teologia cristã), que em última instância, deveriam estar de acordo com aquilo que estava escrito no livro sagrado, na palavra divina. Esse choque inevitável nos mostrou os maiores crimes cometidos contra o conhecimento humano, os autos-de-fé como as fogueiras, as condenações diversas aos cientistas, (Galileu, Giordano Bruno, Copérnico, Newton, Descartes, e muitos outros) desde a inclusão no índex dos livros proibidos até a pena capital por blasfêmia e heresia (e muitas vezes por bruxaria!). Hoje em dia não é diferente, pensemos apenas nas questões mais cabeludas que envolvem ciência e teologia, como a discussão sobre o aborto, as células-tronco, a eutanásia e os procedimentos anti-concepcionais. Há uma verdadeira guerra lá fora, sem contar o que poderíamos dizer do mundo islâmico.

Contudo, esse choque se dá, pois as duas disciplinas possuem cosmovisões diferentes, irredutíveis. Galileu, o grande filósofo da natureza que fundou a cinemática, a descrição do movimento dos corpos, pensava desse modo. Suas descobertas foram explicitamente de encontro com as proposições dos teólogos de sua época, e, aparentemente, contra o próprio texto sagrado. Contudo, Galileu era cristão, e aceitava também que a palavra de Deus era infalível e a bíblia era realmente a palavra de Deus, verdadeira. Ao mesmo tempo, Galileu era um grande defensor da verdade da ciência, copernicana, e a sua própria. Ora, mas como são possíveis que duas verdades sejam contraditórias? Dado o fato de duas verdades se contradizerem, uma necessariamente é falsa, e sabemos que Galileu ficou do lado da ciência.

Mas e a teologia? Ora, Galileu nos mostra que a contradição é apenas aparente, pois, de maneira alguma essas duas disciplinas estão falando da mesma coisa, ou possuem os mesmos propósitos. “Assentado, portanto, que a Escritura, em muitas passagens, não apenas admite, mas necessita necessariamente de exposições diferentes do significado aparente das palavras, parece-me que, nas discussões naturais [científicas] deveria ser deixada no último lugar”.10O filósofo afirma que é por ignorância dos doutores da igreja, que detendo-se no significado literal das passagens da escritura, encontram contradições entre as proposições científicas e as teológicas, pois tentam “comprometer as passagens da Escritura e obrigá-las de certo modo a dever sustentar como verdadeiras algumas conclusões naturais, das quais, por sua vez, o sentido e as razões demonstrativas e necessárias nos pudessem manifestar o contrário. (…) Por isso, além dos artigos concernentes à salvação e ao estabelecimento da Fé, contra a firmeza dos quais não há perigo nenhum que possa jamais insurgir doutrina válida e eficaz, seria talvez ótimo conselho não lhes acrescentar outros sem necessidade”.11 Esse acréscimo de valor de verdade científica nas escrituras não deve ser feito, pois as escrituras não estão falando disso, afirma Galileu. Portanto, não pode existir contradição entre as escrituras sagradas e as ciências, pois elas não dialogam, não estão falando das mesmas coisas, nem na mesma língua. E termina dizendo que “se os primeiros escritores sagrados tivessem tido o pensamento de persuadir o povo das disposições e movimentos dos corpos celestes, não teriam tratado tão pouco destes, que é como nada em comparação com as infinitas conclusões profundíssimas e admiráveis, que estão contidas em tal ciência12 [astronomia].

Pois bem, se não há contradição entre as duas disciplinas, tampouco há conciliação, tendo em vista o fato de que dizem coisas diferentes acerca do mundo e das coisas. Uma diz sobre a verdade demonstrada nos experimentos físicos, a outra, diz sobre a salvação da alma humana e o estabelecimento da fé em Deus.

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Existe conflito entre livre-arbítrio e liberdade? (também responde a pergunta O que é o livre arbítrio?)

Segundo Boehner e Gilson, a vontade livre (liberum arbitrium), ou melhor dizendo, sua existência, nunca foi um problema para Agostinho. Sua existência é evidente e incontestável. O real problema é o uso que se faz da vontade livre, o seu valor e sua bondade. “Qual a razão de ser da vontade, e como conquista ela a sua perfeição na liberdade?”13

A vontade em si mesma não é boa nem má, pois é através dela que buscamos o bem e o mal, portanto ela é neutra. Vontade que escolhe o mal é má e vontade que escolhe o bem é boa.

Agostinho irá negar que a vontade é um bem perigoso, dado o fato de que é através dela que podemos fazer o mal, pois o nosso destino, determinado por Deus, é a participação na felicidade, “o que pressupõe a presença, em nós, de uma vontade capaz de tomar posse desta felicidade”.14 É a vontade que faz a mediação entre o sumo bem e os bens inferiores.

O sumo bem é Deus e esses bens inferiores, como o conhecimento, é comum a todos, ou seja, todos possuem acesso. A felicidade é um bem próprio e pessoal, e está contido nela a posse do bem supremo e do conhecimento da verdade, mas é “necessário que esta felicidade decorrente do objeto comum a todos se transforme em propriedade pessoal”.15 Ou seja, deve haver a intervenção ativa da vontade, pois se trata da minha felicidade. Cada um só pode ser feliz na própria felicidade, dirá Agostinho.

O pecado consiste na rejeição pela vontade desses bens comuns a todos mas também pessoais, para regozijar-se no seu próprio e egoístico bem. Não busca a felicidade através da posse do sumo bem e da verdade. É através da soberba, da vã curiosidade e do vício que o homem exclui-se a si mesmo da vida que deve ser buscada, através da má vontade livre, “passando a levar uma vida de morte”.16 Ou seja, apenas na vontade livre para o bem é que é possível atingir a felicidade.

Contudo, a vontade livre não consegue atingir sempre o bem, pois o homem é herdeiro da queda do paraíso, da culpa original e do pecado pessoal. A liberdade só é possível se o homem conseguir se desembaraçar dessa culpa e desse pecado oriundos da queda. Segundo Agostinho o homem caiu do paraíso por vontade própria, mas não é por vontade própria que pode se reerguer. “Para poder recuperar a justiça perfeita que possuíra no paraíso, foi preciso que Deus o restituísse ao estado de liberdade com seu auxílio gratuito”.17A vontade livre, ou livre arbítrio, não se perde, mas a capacidade de se fazer o bem depende de Deus. Ou seja, apenas a graça de Deus nos torna realmente livres. Contudo, a liberdade supõe o livre arbítrio, pois a liberdade é o livre arbítrio libertado por Deus. A força para fazer o bem vem de Deus mas através do livre arbítrio que o bem pode ser feito e a felicidade pode ser adquirida. A liberdade é, pois, a vontade livre boa. O conflito só se dá, poderíamos dizer, entre a liberdade e a vontade livre má, egoísta. Em Agostinho não há conflito entre a liberdade e o livre arbítrio, mas um depende do outro, e ambos dependem de Deus, ou seja, não existe a possibilidade de uma vontade livre absoluta.

O que é Ordo Amoris?

Em poucas palavras, Agostinho diferencia, na sua doutrina da ética, dois conceitos fundamentais que nortearão esse aspecto de sua filosofia, a saber, o conceito de uti e frui.

Na vida moral do sujeito, os atos individuais implicam uma tomada de posição frente as coisas. Para Agostinho, utilizamos as coisas ou fruímos as coisas. Fruir significa amar a coisa por ela mesma. Usar é se servir de algo como meio para atingir aquilo que se ama, apenas se o objeto for digno de ser amado, diz Agostinho. A fruição só pode ser de Deus, pois ele é o sumo bem e o único que pode ser amado em si mesmo, por ser Deus e nada estar acima dele.

Como apenas Deus merece a fruição, o amor ilimitado, os outros objetos terão um amor limitado, melhor dizendo, os outros objeto deverão ser limitados ao tipo de amor que eles merecem. “Nossa primeira tarefa moral é, pois, a de ajuizar todas as coisas segundo o seu verdadeiro valor, e de conformar o nosso amor a essa valoração. O resultado de tal procedimento será a instauração da ordem do amor pela prática da virtude, que outra coisa não é senão o amor bem ordenado: ‘Unde mihi videtur, quod definitio brevis et vera virtutis: ordo est amoris‘. O vício, por sua vez, é a inversão desta ordem do amor”.18

Basicamente a ordem do amor é isso, e essa ordem será fundamental para Agostinho fundar sua ética e sua ordem social na Cidade de Deus.

1Ver Gilson, E. Boehner, P. História da filosofia cristã. Vozes: Petrópolis. p.153. Apesar de Agostinho buscar fundar a crença em Deus em uma verdade evidente, racional e consequente, existem duas condições que devem ser cumpridas para atingir o ponto de partida da prova, a boa fé e a fé. A razão vem depois. Agostinho acha esses pressupostos insuficientes para a prova, contudo, parte deles.

2Podemos supor que os gregos Diágoras, Pródico e Crítias sustentavam a crença na inexistência dos Deuses, mas só podemos afirmar isso com ressalvas. Ver W. Guthrie. Os Sofistas. Ed. Paulus, p.219 – 229.

3 Guthrie, W. Os Sofistas. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995. p.218.

4Ver Vigo, A. G. Aristóteles, una introducción ou Guthrie W. Os filósofos gregos, de Tales a Aristóteles, para ver como era o conceito de theos nos gregos clássicos.

5Rachels, J. Problemas de Filosofia. Gradiva: Lisboa. p.50.

6Morente, M. G. Lições preliminares de filosofia. São Paulo: Mestre jou. p.250.

7Rachels, J. Problemas da filosofia. Gradiva:Lisboa. p. 29.

8Idem. p. 52.

9Não trago para a discussão o que poderia ser a ciência do theos em Aristóteles, e me limito a falar da teologia cristã, apesar de admitir que não limito a teologia à religião cristã, mas infelizmente, parece que essa disciplina foi empobrecida e reduzida apenas a isso.

10Galilei, G. Ciência e fé. São Paulo:Unesp. p. 19.

11Idem. p.21.

12Idem. p. 22.

13 Gilson, E. Boehner, P. História da filosofia cristã. Vozes: Petrópolis. p.191

14Idem. p. 192.

15Id. Ibidem.

16Id. Ibidem.

17Id. Ibidem.

18Idem. p. 194.

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