Revista Poliética

Aqui a primeira edição da revista do grupo de estudos em Ética e Filosofia Política da PUC-SP.
O tema do qual todos os artigos dessa edição tratam é o da injustiça.
Vale a pena ler.

 

http://revistas.pucsp.br/index.php/PoliEtica/issue/archive

Todos os livros de Michel Foucault para download

Nesse site do grupo de estudos foucaultianos, todos os livros do filósofo francês estão disponibilizados para download gratuito, assim como livros de comentadores e leituras introdutórias.
Não percam!

http://geffoucault.blogspot.com.br/p/livros-para-download.html

Marilena Chauí: A ascensão conservadora em SP e os perigos à democracia

Chauí, como sempre, dá uma lição de racionalidade e sobriedade ao refletir sobre o atual estado de coisas na classe média conservadora paulista. A inação e a irracionalidade do pensamento conservador medíocre é sinal de um retrocesso daquilo que, em tese, alicerça o pensamento democrático.

Pela reabilitação do uso público da razão, e por uma ética desprovida de ideologia.

Homofobia e moralidade I

Homofobia e moralidade I

Introdução

As relações homossexuais, desde que o mundo é mundo e o homem é homem, existem. Estão tanto no mundo civilizado quanto no mundo animal. Lembremos da antiguidade clássica, Grécia e Roma, dos diálogos de Platão, das peças de Aristófanes, das relações entre os soldados em Esparta. Existem diversas explicações para as várias práticas comportamentais na antiguidade, na modernidade e na contemporaneidade, mas o que vou refletir nesse texto é um problema muito mais sério do que a simples investigação dos motivos por trás das práticas homossexuais, e questiono até a relevância de pesquisar tais motivos. Realmente importa saber o porquê? Se é biológico, psicológico, social, uma mistura de todos esses supostos, realmente importa? Se de fato descobrirmos os motivos desse comportamento, mudaria algo na vida dos homossexuais? Bom, aumentaria nosso conhecimento, e mais nada. Heterossexuais continuariam suas vidas assim como os homossexuais.

Pois bem, deixarei de lado esse pequeno problema (apesar que direi algo sobre isso mais a frente) para investigar um problema muito maior, como dito acima, a saber, o de porque os homossexuais são tão odiados na civilização contemporânea. Porque seu estilo de vida causa ódio, repulsa, intolerância e outros sentimentos negativos em pessoas que, muitas vezes, não são más?

Existem, portanto, determinados pressupostos que devem ser esclarecidos, analisados racionalmente, para, por fim, identificar se as razões relativas à repulsa contra homossexuais são sustentáveis, são fundamentáveis, são racionais.

Para começar, algumas palavras sobre a ética

Sempre que escrevo algo sobre a ética (no contexto desse texto usarei as palavras ética e moral como sinônimas), acho necessário explicitar algumas coisas sobre essa disciplina. Pode parecer meio chato, mas é fundamental para podermos ter um critério de avaliação racional sobre o que é “certo” e o que é “errado”.

Uso geralmente um texto que escrevi a algum tempo, e essa parte está contida em outros artigos, e nesse artigo, portanto, não será diferente. Comecemos, pois, a investigação (breve) sobre a natureza da ética.

Para começar nossa discussão, que faz parte do campo da ética, que por sua vez é uma disciplina (e talvez a mais importante) da filosofia, é importante fazer algumas distinções e esclarecer, acima de tudo, o que é a ética. Tentarei não fazer uma exposição exaustiva desse conceito, e exporei apenas o necessário para se ter uma boa clarificação do que é realmente a verdadeira natureza da ética.

Primeiramente direi algumas breves palavras sobre a filosofia para posteriormente estabelecer dentro da prática filosófica as investigações de natureza ética.

A filosofia, desde seu estabelecimento no século VI a.C. por Parmênides de Eléia1, sempre foi um exercício puramente racional. Parmênides desenvolveu uma definição do Ser sobre bases puramente intelectuais e lógicas (tanto é que foi ele quem primeiro estabeleceu o princípio de identidade lógica) demonstrando que a contradição é irracional e o irracional é insuportável. O filósofo eleático distinguiu os dois caminhos que os seres humanos podem seguir em qualquer investigação racional: o caminho consequente que conduz à verdade ou o caminho das simples opiniões que conduzem ao erro. “…é preciso que de tudo te instruas, do âmago inabalável da verdade bem redonda, e de opiniões de mortais, em que não há fé verdadeira (ou seja, certeza)”.2 Nas palavras dos grandes especialistas na filosofia grega antiga, “Parmênides afirma que em qualquer investigação há duas, e apenas duas, possibilidades logicamente coerentes, que se excluem mutuamente – a de que o objeto de investigação existe ou a de que não existe. Em bases epistemológicas, ele rejeita a segunda alternativa como ininteligível. Em seguida, ataca o comum dos mortais (ou seja, o senso comum inconsequente, a doxa, a opinião) por demonstrarem com as suas crenças que nunca escolhem entre as duas vias ‘é’ e ‘não é’, mas que seguem ambas sem discriminação”.3

Bem, tudo isso foi dito para esclarecer como, desde Parmênides, a filosofia se constituiu como uma pratica racional e consequente sobre problemas bem determinados. Desde essa época a filosofia já era concebida como “desafio ao senso-comum”.

Ora, a preocupação com questões éticas, e o estabelecimento da ética como investigação filosófica, contudo, surgiu com um personagem muito conhecido da humanidade, Sócrates.

Antes de Sócrates, as preocupações dos “filósofos” concentravam-se, sobretudo, em questões relativas ao cosmos e a physis, em outras palavras, concentravam-se na tentativa de compreender a configuração do real, do mundo, e não do homem e suas ações.

Sócrates, no início de suas investigações filosóficas, concentrou-se também (como os filósofos posteriores) em buscar respostas a respeito do ser das coisas a partir de elementos naturais, porém, abandonou bem cedo o estudo da natureza (physis). No diálogo “Fédon”, Sócrates dirá que se decepcionou com os estudos da physis, pois as respostas que encontrou davam conta mecanicamente, por exemplo, de suas ações enquanto cidadão. Ou seja, os físicos explicariam o fato de Sócrates estar preso e condenado à morte porque seu corpo é constituído por ossos e músculos e que esses músculos se contraem dando movimento ao corpo e que, por conseguinte, esse movimento teria levado Sócrates para a prisão. Não contente com esse tipo de resposta mecanicista, Sócrates se voltará para os estudos dos homens nas cidades e buscará as causas que motivam os homens a agir. Esse abandono da physis também se dá pelo fato de que a natureza não exerce o logos. Os animais, os campos, as árvores não consentiam em ensinar-lhe alguma coisa. Sócrates demonstrava que o homem se define por ser um animal racional, sua natureza era racional (como posteriormente dirá Aristóteles), e apenas o homem pode exercer o diálogo (dia– através, logos– discurso, razão), “o através do discurso/razão”, pois naturalmente desenvolvia a linguagem.

Ora, Sócrates funda a ética em bases puramente racionais, não existindo uma fonte externa à própria razão capaz de estabelecer o que é o justo ou o injusto, o certo ou o errado. Nas palavras de Sócrates, a ética nos diz “como devemos viver”. Se o que eu disse à respeito da filosofia é certo, o mesmo se aplica à ética. Se a filosofia é um exercício puramente racional, por conseguinte, a ética também é.

Como disse o filósofo americano James Rachels, a filosofia “como qualquer outra investigação humana responsável é, do princípio ao fim, um exercício da razão. As ideias que devem prevalecer são aquelas que tiverem as melhores razões do seu lado”.4

Não discutirei aqui as diversas teorias éticas desenvolvidas pelos filósofos, contudo, direi que para que um juízo tenha valor ético, ou, para que determinada teoria ética constitua-se de maneira consistente, “primeiro: os juízos morais tem de se apoiar em boas razões; segundo, a moral implica a consideração imparcial dos interesses de cada indivíduo”.5

Ora, o que eu disse pode nos levar a duas consequências interessantes. A primeira é a de que a ética independe da religião e a segunda é a de que nossas inclinações afetivas não constituem base alguma para a moralidade. As críticas à teoria ética religiosa (a chamada teoria dos mandamentos divinos) e as críticas à teoria ética que diz que temos o sentimento de que as ações são boas ou ruins (a chamada teoria do subjetivismo ético), não serão feitas aqui, e isso deixarei para um próximo texto. Contudo, afirmo que em bases racionais essas duas teorias apresentam sérios problemas, e nossa única opção frente a elas é abandoná-las como teorias defeituosas e insuficientes.

Continuando com o texto, podemos concluir então que a ética é uma disciplina filosófica puramente racional, e para que juízos éticos sejam válidos, eles devem apoiar-se em boas razões. Dizer que os juízos éticos devem apoiar-se em boas razões não significa nada mais que dizer que esses juízos e suas justificativas estão disponíveis para a análise de qualquer sujeito racional, ou seja, as razões se apresentam a qualquer ser-humano e podem ser compreendidas por qualquer ser-humano que saiba pensar consequentemente. Enquanto que uma ética baseada na religião se apóia, em última instância, na fé, ou seja, suas justificativas estão condicionadas a serem aceitas apenas por quem compartilha da fé pressuposta, ao mesmo tempo, uma ética baseada em sentimentos subjetivos só será justificável para as pessoas que possuem as mesmas inclinações subjetivas. Ou seja, o único critério aceitável de uma ética objetiva, não pode ser senão fundado na própria objetividade da razão.

Para os propósitos desse texto, acredito que o que foi dito acima seja suficiente para compreender as reflexões posteriores, e, apesar da conceitualização feita acima poder ser criticada por muitos, não vejo como essas críticas poderão ser bem fundamentadas em critérios que se sustentem firmemente.

Se a ética não for um exercício da razão, então não há possibilidade de ética.

Homossexuais e seus carrascos

Bom, como foi dito, me movimentarei sobre as bases estabelecidas acima. Tentarei ser o mais consequente possível.

Como todos devem saber, as críticas negativas feitas ao comportamento homossexual são em sua esmagadora maioria de caráter religioso/moralista, e isso é tanto consciente como inconsciente. Digo isso, pois temos tanto os religiosos convictos de que Deus estabeleceu a “abominação” da prática homossexual já no velho testamento, quanto os cidadãos que se auto-intitulam não religiosos mas que também desaprovam essa mesma prática, e tentam justificar essa desaprovação de muitas formas, sendo a mais comum dizer que “não parece natural”. Ambas possuem raízes na religião judaico-cristã. A primeira fica explicitamente clara, sendo apenas necessário consultar o Levítico 18:22. A segunda alegação, de que é contrária a natureza, pressupõe que a natureza foi feita inteligentemente por um criador que colocou cada coisa no seu lugar, e que cada coisa deve permanecer nesse mesmo lugar. Adão e Eva foram criados e não Adão e Ivo. Não é essa piadinha que costumamos ouvir? Está aí, pois, a origem religiosa da homofobia.

Os críticos dos homossexuais baseiam seus argumentos no fato de que estes últimos possuem algum tipo de desvio moral que corrompe e macula a sociedade. Temos os exemplos vergonhosos, tanto do deputado fascista e racista (eleito pelo povo) Jair Bolsonaro, que além de defender o regime militar e suas atrocidades, milita ferozmente contra a causa gay, quanto do pastor Silas Malafaia, o porta voz dos evangélicos irracionais (isso para falar apenas dos mais expressivos na mídia). Para esses senhores, homossexuais são estupradores, pedófilos e exibicionistas que desvirtuam os verdadeiros valores da sociedade.

Ora, suas criticas poderiam ser justificáveis, mas não são. Poderiam, digo, se encontrasse base factual para o que afirma, mas não existe tal base. Suas razões são ilusórias, marcadas por um discurso ideológico-religioso irracional.

Analisemos, pois, os argumentos dos críticos do comportamento homossexual, que no fundo, são todos os mesmos e velhos sofismas de sempre.

Primeiramente, devemos sempre ter em vista que homossexualidade não é escolha e sim descoberta.
“O fato mais pertinente é que os homossexuais seguem o único tipo de vida que lhes dá oportunidade de ser felizes. O sexo é um impulso particularmente forte – não é difícil saber porquê – e poucas pessoas são capazes de conceber uma vida feliz sem a satisfação das suas necessidades sexuais. Não devemos, no entanto, centrar-nos apenas no sexo. Mais de um escritor gay afirmou já que a homossexualidade não se centra em saber com quem se tem sexo; mas sim em saber quem se ama. Uma vida boa, para gays e lésbicas, assim como para qualquer outra pessoa, pode significar viver com alguém que se ama, com tudo o que isso envolve. Além disso, as pessoas não escolhem a sua orientação sexual; tanto homossexuais como heterossexuais descobrem ser o que são sem terem tido qualquer voto na matéria”.6

O que Rachels escreveu acima já deveria ser o suficiente para que a discussão fosse encerrada, contudo, é necessário examinar os argumentos que sempre ferem a índole dos homossexuais.

Não existem provas, base factual, evidência, que possam provar que homossexuais são imorais, que possuem uma índole perversa e desvirtuada que ameaçam a estrutura moral da sociedade. Como disse Rachels, “Além da natureza de suas relações sexuais, não há qualquer diferença, entre homossexuais e heterossexuais de índole moral ou na participação da sociedade. A ideia de que os homossexuais são de alguma forma perniciosos, revela-se um mito muito semelhante à ideia de que os negros são preguiçosos ou os judeus avarentos”.7

Como não há fatos que provem a perniciosidade moral dos homossexuais, todos os ataques acabam caindo sempre no velho chavão “é contrário à natureza”.

Ora, o “contrário à natureza” é algo extremamente vago, e se perguntarmos às pessoas que defendem tal princípio, não conseguirão sustentar de maneira clara o que tal coisa significa. A partir de Rachels, clarificarei pelo menos três formas de compreender essa afirmação.

A primeira reduz o “contrário à natureza” a uma noção estatística. A segunda reduz-se à ideia de finalidade de uma coisa, e a terceira pode ser reduzida à um termo de avaliação particular.

Comecemos, pois, pela primeira.

Uma noção estatística diz respeito a números, ou seja, o “contrário à natureza” seria tudo aquilo que se difere do que a maioria das pessoas são. Ora, se isso fosse moralmente errado, todas as diferenças estatísticas, pela lógica, deveriam ser condenadas. Peguemos o caso dos canhotos, ou dos ruivos, por exemplo. Estatisticamente, são inferiores à maioria numérica, porém, não há motivo algum para afirmarmos que isso é contrário à natureza, ou pior, que isso deve ser considerado uma coisa má. “Pelo contrário, as qualidades raras são frequentemente boas”, afirma Rachels. Essa primeira noção, por conseguinte, deve ser abandonada, pela falta de justificativa que ela possui.

A segunda noção de “contrário à natureza” diz respeito à finalidade de uma coisa. Tomemos o exemplo de nosso próprio corpo. Nossos órgãos, segundo os que defendem tal argumento, foram feitos para determinadas finalidades (percebam que só o fato de dizer que “foram feitos” implica um criador, uma consciência, o que já apresenta um problema), como nosso olho que foi feito para enxergar, ou nossas pernas que foram feitas para andar. Ou seja, nessa mesma linha, nossos órgãos genitais foram feitos para a procriação. Contudo, quem está disposto a ser coerente consigo mesmo, seguindo esse pensamento, deve abandonar todas as outras atitudes que implicam um uso “contrário à natureza” do próprio corpo. A masturbação seria condenada, assim como utilizar os olhos para flertar com alguém. Utilizar os dedos para acompanhar uma música ou fazer um sinal com as mãos seriam, ambos, antinaturais. “Portanto, a ideia de que é errado usar as coisas para outras finalidades que não são as “naturais” não pode ser defendida convenientemente, logo essa versão do argumento falha”.8

E por último, “contrário à natureza” como termo de avaliação pessoal, talvez seja o mais comum e o mais pernicioso, isso porque esconde um preconceito velado que insiste em ser negado por quem o possui. Isso pode significar algo do tipo: “contrário àquilo que uma pessoa deveria ser”. Essa posição é normativa, e implica que quem a sustenta, já sabe o que alguém deveria ser. Mas isso é impossível. A única possibilidade é um dever-ser pessoal, ou seja, deve ser aquilo que eu achar que deve ser. E mais uma vez, Rachels fulmina: “Mas se é isso que ‘contrário à natureza’ significa, então, dizer que algo é errado porque é contrário à natureza seria uma afirmação frívola. Seria como dizer que isso ou aquilo é errado porque é errado. Este tipo de observação não fornece, naturalmente, qualquer razão para condenar coisa alguma”.9

Concluindo, se não pudermos encontrar uma explicação mais elaborada sobre o que significa esse “contrário à natureza” (e tal explicação não existe), essa linha de raciocínio deve ser abandonada por seres-humanos racionais e éticos, pois não há uma única razão para sustentá-lo. O único motivo para tal pensamento é a ignorância. E condenar pessoas por viverem segundo a única forma que possuem para serem felizes, é a ação mais perversa que alguém pode cometer enquanto homem. Como disse Drummond, “somos humanos, isto é, achamos que somos”. E é nessas horas que percebemos exatamente isso.

Para a finalidade inicial de tais problemas, esse texto é suficiente. O próximo artigo, sobre esse mesmo tema, falará sobre o fato de se homossexuais atacam os valores da família e se a igreja realmente é tão condenatória em relação aos homossexuais.

1A história tradicional da filosofia atribui a Tales de Mileto o início das investigações filosóficas, contudo, o que Tales e os outros sábios gregos chamados de “físicos” faziam era radicalmente diferente do que Parmênides fez. Não entra no mérito desse texto discutir quem verdadeiramente criou a filosofia, porém, atribuo a Parmênides e não a Tales a “invenção” da prática filosófica, com a criação da ontologia. A título de curiosidade, convencionou-se dizer que Tales é o primeiro filósofo apenas porque Aristóteles, o grande filósofo grego e talvez o maior filósofo de todos os tempos, disse isso a respeito de Tales. A afirmação de Aristóteles bastou para que Tales ficasse na história do pensamento humano como sendo o primeiro filósofo.

2PARMÊNIDES. Os pré-socráticos. Tradução de J. C. De Souza. Ed. Abril: São Paulo, 1973. p. 147, fr. 1.

3KIRK, G.S., RAVEN, J. E, SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2008. p. 251.

4RACHELS, J. Problemas da filosofia. Tradução de Pedro Galvão. Gradiva: Lisboa, 2009. p.12.

5RACHELS, J. Elementos de filosofia moral. Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves. Gradiva: Lisboa, 2004. p. 27.

6Idem.p. 71-2.

7Idem. p. 72.

8Idem. p.73.

9Id. Ibidem.

Pequenos textos sobre grandes temas em Aristóteles

Introdução

Esse texto foi originalmente um trabalho do curso de história da filosofia da PUC-SP. Em seu formato originário, haviam perguntas e, abaixo delas, as respectivas respostas. Modificamos o formato original, que não continha titulos e nem uma aparente unidade entre os temas, porém percebemos posteriormente que os temas, para quem tem alguma base do pensamento de Aristóteles, estão instrinsecamente ligados. Esperamos que seja um texto que, apesar de sua objetividade e síntese, possa trazer alguma informação nova, ou, em última instância, um auxílio para a leitura integral dos textos de Aristóteles. Para as pessoas que gostariam de pesquisar o pensamento (político e ético) de Aristóteles mais a fundo, sugerimos, tal como nossa grande mestra, a Profª. Drª. Ana Maria Yamin, que a leitura das obras  “Ética a Nicômaco”, “Política” e “Retórica” fossem lidas como um continuum, cujos temas se interpenetram e formam uma unidade. Um exemplo disso é que, sem a leitura correta da obra “Ética a Nicômaco”, a “Retórica” pode (e efetivamente é) ser compreendida como um manual sofístico, o que de fato, não é.  Publicaremos textos referentes à “Retórica” posteriormente.

A distinção entre o agir na ignorância e o agir por ignorância.

Aristóteles relaciona o agir na ignorância e por ignorância, com atos voluntários e involuntários. Podemos definir atos involuntários, a partir de dois pontos: são involuntárias as ações feitas sob compulsão (coação por violência), ou por ignorância, por desconhecer as circunstancias do ato. Logo, podemos definir como involuntários, todos os atos que se originam fora do agente. “São, pois, consideradas involuntárias aquelas coisas que ocorrem sob compulsão ou por ignorância; e é forçado ou compulsório aquilo cujo princípio motor se encontra fora de nós e para qual nada contribui a pessoa que age e que sente a paixão – Por exemplo, se tal pessoa fosse levada a alguma parte pelo vento ou por homens que dela se houvessem apoderado[1].

Os atos voluntários (onde acontecem em casos particulares),  podem ser definidos como o oposto dos atos involuntários, pois o agente conhece, e não ignora nenhuma das circunstâncias da ação. “Como tudo o que se faz coagido ou por ignorância é involuntário, o voluntário parece ser aquilo cujo princípio motor se encontra no próprio agente que tenha conhecimento das circunstâncias particulares do ato.”[2]

Definidos os tipos de atos, podemos definir o que seria agir na ignorância e por ignorância.

Ora, tudo o que se faz por ignorância é não-voluntário, e só o que provoca pesar e culpa é involuntário. Quando determinado homem faz algo devido a sua ignorância, em relação às circunstâncias do ato, e não sente o pesar de sua ação, não agiu voluntariamente, pois não sabia o que fazia, entretanto, também não agiu involuntariamente, pois o ato não lhe causa dor alguma. “E assim, das pessoas que agem por ignorância, as que se arrependem são consideradas agentes involuntários, e as que não se arrependem podem ser chamadas de agentes não-voluntários (…) [3]

Mas agir na ignorância se distingue bastante do agir por ignorância, pois quando um homem age na ignorância, age voluntariamente. Tentarei explicitar essa passagem com um exemplo do próprio Aristóteles, e por conseguinte uma explicação minha: “(…) pois do homem embriagado ou enfurecido diz-se que age não em resultado da ignorância, mas de uma das causas mencionadas, e contudo sem conhecimento do que faz, mas na ignorância[4]. No momento da realização do ato, por exemplo, um acidente de trânsito causado por um motorista embriagado, seria uma ação do motorista sem o conhecimento do que ele próprio faz no momento, pois age na ignorância das circunstâncias de seu ato, contudo é voluntário porque o motorista sabe que a bebida alcoólica causa efeitos colaterais em seu corpo e em sua consciência, e mesmo assim escolheu dirigir embriagado, logo, age não por ignorância mas na ignorância.

A distinção entre o conhecimento relativo às ações humanas e à matemática

No domínio da matemática, podemos esperar exatidão, pois a matemática raciocina sobre coisas eternas e imutáveis, e existe uma regularidade natural (pois a matemática está intrinsecamente ligada com as leis da physis) em seus conceitos cuja mutação não depende da intervenção humana.

Mas em relação às ações humanas (a ética e a política), não existe uma regularidade sempre constante, pois as ações humanas possuem apenas uma regularidade relativa. A variedade das ações humanas é tão grande, que exigir exatidão em conclusões sobre sua investigação seria tão insensato quanto exigir um raciocínio provável de um matemático. Dirá Aristóteles, “Ora, as ações belas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião, de forma que se pode considerá-las como existindo por convenção apenas, e não por natureza”[5]. Por isso, no domínio das ações humanas, só podemos nos contentar em indicar a verdade de maneira aproximada, levando em conta o que acontece de maneira verdadeira apenas na maior parte das vezes, e com premissas da mesma natureza, senão corremos o risco de nos equivocar e emitir opiniões errôneas sobre o que nos propusemos a investigar.

Sobre a responsabilidade de construção de nosso próprio caráter

Segundo Aristóteles, os homens só se tornam justos (ou virtuosos, pois a justiça é a virtude que abarca todas as outras), através do hábito e da prática de atos justos. Mas para se praticar atos justos, é estritamente necessário um mestre (um tipo de treinador), que já tenha adquirido uma disposição de caráter permanente (hexis), e necessariamente virtuosa, para que possa ensinar, e despertar a virtude nos homens que se submetem (ou são submetidos) à tal educação. Mas assim como atletas olímpicos, que só conseguem se sair vitoriosos porque treinaram voluntariamente e habitualmente, para se adquirir a “hexis” virtuosa, os homens devem querer agir e praticar atos voluntários, pois apenas o ensino do mestre, sem a prática (e a vontade) do estudante, não lhes garante a aprendizagem das virtudes. “(…)mas porque os atos que estão de acordo com as virtudes tenham determinado caráter, não se segue que sejam praticados de maneira justa ou temperante. Também é mister que o agente se encontre em determinada condição ao praticá-los: em primeiro lugar deve ter conhecimento do que faz; em segundo, deve escolher os atos, e escolhê-los por eles mesmos; e em terceiro, sua ação deve proceder de um caráter firme e imutável(…), aquelas mesmas que resultam da prática amiudada de atos justos e temperantes – são, numa palavra, tudo” [6] . Logo, os próprios homens são co-responsáveis pela disposição de caráter que adquiriram através da práxis.

O eqüitativo como  superior ao justo

Em se tratando de juízes, que  julgam sobre atos ocorridos na polis, existem dois tipos de juízes: o justo e o eqüitativo. Mas dirá Aristóteles, que “Essas coisas não parecem ser absolutamente idênticas entre si (…); se, o justo e o eqüitativo são diferentes, um deles não é bom; e, se são ambos bons, têm de ser a mesma coisa (…). Em certo sentido, todas elas são corretas e não se opõem umas às outras; porque o eqüitativo, embora superior a uma espécie de justiça, é justo, e não é como coisa de classe diferente que é melhor do que o justo. A mesma coisa, pois, é justa e eqüitativa e, embora ambos sejam bons, o eqüitativo é superior7.

O Homem (juiz) justo, levará em conta, na hora do julgamento, apenas o crime cometido e a punição referente ao crime, como consta na legislação. Mas o eqüitativo não deixa de ser também justo (em se tratando da justiça absoluta), mas é superior que um certo tipo de justiça, a justiça legal, que possui erros e devem ser corrigidos. “E essa é a natureza do eqüitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade”8.

Através dessa correção da justiça falha, o eqüitativo leva em consideração, não só o que consta na lei, mas as circunstancias em que o crime foi cometido, levando em conta as condições objetivas que levaram o infrator a cometer o crime, evitando assim, que uma grande injustiça seja cometida. Um exemplo conflitante seria o de uma mãe que rouba um pão para evitar que o filho morra de fome, o justo a condenaria, mas certamente o eqüitativo a absolveria.

O homem: um animal naturalmente social

Aristóteles definirá o homem, como um animal naturalmente social, pois a finalidade do homem, é a finalidade política.

A natureza de uma coisa pode ser tanto seu início quanto seu fim, e em relação ao homem, sua natureza está inexoravelmente ligada ao seu fim (telos). Uma coisa atinge sua finalidade, sua excelência (areté), quando cumpre o papel que naturalmente deve cumprir, assim, como para uma faca realizar a sua natureza e atingir sua excelência, deve ser afiada e cortar, o homem deve atingir a vida social, pois sua finalidade é política. “ Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala(…)a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e portanto também, o justo e o injusto;”9

Através desse dom (racional), o homem pode transmitir sentimentos morais que só ele possuí, e a comunidade de seres com tais sentimentos é a comunidade política. Um homem fora da cidade não tem papel, não possui utilidade, como uma peça de gamão, fora de seu tabuleiro.


[1] Aristóteles, Ética a Nicômaco; livro III, cap. I, 1110 a.

[2] Aristóteles, Ética a Nicômaco; livro III, cap. I, 1111 a.

[3] Aristóteles, Ética a Nicômaco; livro III, cap. I, 1110 b.

[4] Aristóteles, Ética a Nicômaco; livro III, cap I, 1110 b

[5] Aristóteles, Ética a Nicômaco; livro I, cap. III, 1194 b.

[6] Aristóteles, Ética a Nicômaco; livro II, cap. IV, 1105 a – 1105 b.

7 Aristóteles, Ética a Nicômaco; livro V, cap. X, 1137 b.

8Aristóteles, Ética a Nicômaco; livro V, cap. X 1137 b.

9 Aristóteles, Política; livro I, cap I 1253 a.

A natureza da justiça

natural-x-artificial


Muitos pensadores têm a justiça como algo inventado pela humanidade. Decerto que as noções do que seja justo e do que não seja justo são proporcionadas pela razão e que as opiniões que esta, a razão, tem, provêm, em grande parte, das experiências que o individuo sente e delibera, sendo, em parte, influenciado pelos costumes da sociedade em que vive, supomos que a justiça é inerente a natureza humana, pois tem relação com a razão. Mas, o que é justiça? Seria ela inventada?

É observável em diversas sociedades que as noções de justiça são diversas – inclui-se as de injustiças também -, sendo muitas vezes o que é justo em um lugar, injusto em outro logo adiante do território ou no próprio tempo, como de país para país ou de hoje para daqui a mil anos. Mas, uma coisa é certa: essa noção existe em qualquer sociedade. Pois, a vida em sociedade ajuda para o avanço da razão. Podendo-se dizer, então, que, pelo menos no que se sabe até hoje, sociedade, razão e noção de justiça estão bem relacionadas.

Mas, teria, por necessidade, uma ordem para sociedade, razão e noção de justiça? Aqui uma suposição lógica seria: para se formar uma sociedade é preciso ter noções de justiça para tornar possível o convívio de tantas diferenças particulares, que para ter noções de justiça, é preciso ter razão, que se desenvolve com a sociedade. Porém, aqui sendo simplista, é muito difícil provar ou, sequer, mensurar o quando e quanto nas relações destas três: sociedade, razão e noção de justiça.

Porém, parto de uma opinião muito aceita: a de que a noção de justiça vem da razão e de que a justiça é uma virtude artificial, enquanto inventada pelo homem, mas natural, enquanto uma invenção necessária. Em uma palavra: a justiça é natural, enquanto a tomemos por necessária e vinda da virtude, que é natural. Mas, há um grande pressuposto: o de nosso indivíduo humano estar em sociedade. Pois, se pressupormos um ser humano isolado, sabemos que não desenvolve a mesma razão que um ser humano em sociedade e dotado de uma língua.

Então, vejo que cabe-nos perceber que: a justiça, enquanto algo natural, por que não se manifesta num indivíduo isolado, este, que vive de instintos e de tão pouca razão, que é plausível, para muitos, dizer que sequer a tem? A justiça seria para o humano algo inato, porém em potência que pode se desenvolver ou não? Ao que parece, se tomarmos a justiça, a noção de justiça ou, ainda, certa razão desenvolvida que nomeamos como razão – pois, parece que, para alguns, razão ou se tem ou não tem-, vemos que só existem, de fato, em sociedade.

Assim, aqui o conceito que se usa de natural pode alternar nossas conclusões, ao que parece, sobre o assunto da justiça. Se usarmos natural como algo que seja inato e que só apareça no desenvolver do indivíduo – em potência – dependendo das influências externas e suas relações com o indivíduo – a necessidade -, a justiça seria natural mesmo. Mas, se usarmos natural como algo que seja inato e que aparece no indivíduo independendo das influências externas e suas relações com o indivíduo, vemos que não é isso que acontece, vide o exemplo do homem isolado. Deste último modo, através da contradição que implica o exemplo do homem isolado, a justiça é vista como algo realmente inventado, ou seja artificial.

Então, à luz desta linha de raciocínio, chegamos a duas definições plausíveis que são contraditórias entre si, sobre o mesmo assunto. Agora, saber qual é verdadeira e qual não é sobre o natural, naturalmente parece não estar ao alcance da humanidade, pelo menos até hoje. Mas, uma coisa é certa: o modo como observamos uma coisa ou um acontecimento influencia nossos pensamentos e ações, assim como estes últimos influenciam como observamos.

Paulo Übermensch