Philothánatos; Religião, Morte, Símbolos e Outras Grandes Bobagens!

memento

Os assuntos sobre os quais pretendo tratar são de grande importância ‘espiritual’, e, a abordagem levada em efeito é resultado de longos anos de reflexão, todavia este escrito não passa de um mero esboço e não pretende ser rigorosamente acadêmico ou ter alcançado sua forma definitiva. Agradeço a toda equipe do Projeto Phronesis pela oportunidade em expressar-me através de seu blog.

Noutras circunstâncias eu não ousaria escrever sobre estes assuntos (porque tantas besteiras são ditas e escritas sobre espiritualidade que eu acredito poder poupar as pessoas das minhas próprias), mas diante do interesse demonstrado pelo Sr. Alexandre Malvino Torres , Teólogo e Pastor, eu sou obrigado a realizar este empresa.
O acima citado pastor questiona-me acerca de minha verdadeira identidade, dentre outras coisas, mas a única resposta que eu lhe posso dar é que não sei quem sou, pois minha identidade é um fluxo constante, ela se desconstrói e se reconstrói a cada dia; portanto não espere muito de mim, assim como, eu não espero muito das pessoas.

Quanto à abordagem e os resultados aconselho a todos que não os tenham muito a sério, porque é uma dentre muitas abordagens possíveis e nem ao menos posso dizer que seja a melhor; os resultados embora conseqüentes, não se pretendem a Verdade, mas suponho que contenham em si mesmos alguns aspectos que podem ser tidos por verdadeiros em muitos contextos. Logo, podem significar algo para outras pessoas, bem como significam para mim.

Porque é tudo uma grande bobagem?

Talvez seja porque o discurso não chegue nem de longe a refletir os problemas do espírito e também porque se realmente significa algo, significa mais para aquele que o pensou e escreveu, do que pode significar para àqueles que o lêem. Mas, muito mais ainda porque minha resposta ao teólogo e a todos os que pensam de modo semelhante a ele, jamais satisfará uma ‘cabeça feita’, antes fará com que ele acredite com mais vigor que Philothánatos vive num mundo e fala uma língua que para eles são ininteligíveis, um mundo e uma linguagem de absurdidade. Neste ponto suponho que estejam com a razão.

Curiosamente sou questionado acerca do recurso usado na escritura de meu singelo conto. Kierkegaard (1813-1855), um dos escritores que mais inspiram minha atividade e meu pensamento, usava deste recurso literário (pseudônimo-heterônomio), segundo France Farago, a utilização de pseudônimos (heterônimos) em sua escrita pode equivaler à maiêutica socrática: “[…] coloca em debate através de personagens fictícias e paradigmáticas, as diferentes opções existenciais que se correspondem e se interpenetram de uma obra para outra.” (Farago, 2006, p.60). Confesso-me tributário ao mestre dinamarquês e francamente marcado pela perspectiva filosófica existencial, portanto sustento que não se deve tomar minha ação como indicativo de covardia, mas, sim como um recurso que visa suprir a nossa necessidade em lançar um olhar multifocal sobre pontos de vista díspares acerca das mais importantes questões que nos afligem. Não serve este recurso literário para fazer falar na primeira pessoa atores que sustentam opções existenciais diferentes correspondentes aos possíveis? Simultaneamente não mantém, com certa relatividade, o distanciamento do verdadeiro eu do escritor?

Quanto ao problema da irreconciliabilidade entre o ser cristão e o ser filósofo (noutras palavras “o ser teólogo e o ser filósofo”) sugiro a leitura de meu breve artigo ‘Filosofia e Teologia – Paul Tillich’ , ali eu deslindo o texto da Conferência de Paul Tillich (1886-1965), no Union Seminary, New York. Tillich distingue o exercício de pelo menos duas formas de Teologia: a ‘teologia querigmática’, que se constrói unicamente sobre o kerygma, portanto sem referências filosóficas, e, a ‘teologia filosófica’, que se constrói, também a partir do kerygma, porém estabelecendo relações endógenas com a filosofia.

Mas o problema é mais agudo, pois se trata de apresentar sob uma mesma personagem as máscaras do cristão e do cético.

Meu interlocutor lembra que o cristão é aquele que crê, enquanto o cético é aquele que de tudo duvida; o cristão é só fé, pois é apenas na fé que se pode agradar a Deus, e, por fim, o cético não acredita que se pode chegar à verdade absoluta!

Passo a elucidação de questões implícitas nos enunciados supra e pretendo fazer isso conduzindo o pensamento em um movimento espiralado, partindo da superfície, até alcançar um pouco mais de profundidade.

A oposição entre o cristão e o cético conforme se nos apresenta em seu comentário só é admissível na medida em que concordássemos em reconhecer na fé um componente de ordem epistemológica, ou seja, se aceitamos que a fé seja uma capacidade de conhecimento, então seríamos forçados, por uma questão de coerência, a reconhecer a contradição que se estabelece entre ‘o homem de fé’ e ‘o cético’. Embora os teólogos estejam acostumados a declarar que o exercício da fé envolve três elementos: o intelectual; o emocional e o volitivo (Thiessen, 1994, p. 255), habitualmente no cristianismo fazem da fé a crença num determinado ‘corpo de doutrinas’, o assentimento intelectual em algo inacreditável. Portanto a fé é posta como uma espécie de conhecimento, uma atitude do intelecto em relação a determinado objeto.

O ceticismo é uma posição epistemológica que se refere tanto à possibilidade do conhecimento em geral, quanto a um conhecimento específico.

“No primeiro caso, estamos perante o cepticismo lógico. Também se lhe chama cepticismo absoluto ou radical. Quando o cepticismo se refere somente ao conhecimento metafísico, falamos de um cepticismo metafísico. No domínio dos valores distinguimos um cepticismo ético e um cepticismo religioso. Segundo o primeiro, é impossível o conhecimento moral; segundo o último, o religioso. Finalmente, há que distinguir o cepticismo metódico e o cepticismo sistemático. Aquele designa um método; este, uma questão de princípio”.
(Hessen, 1976, p.41)

Posto nestes termos, a fé e o ceticismo opõem-se realmente, pois o que temos nada mais é que o conflito entre o dogmatismo e o ceticismo.

Mas, não é essa concepção que faço da fé, antes tenho como referência a conceituação proposta por Tillich: “Fé é o estado de ser apoderado pela potência do ser-em-si.” (Tillich, 1972, p. 134) Deste modo fé não se põe na ordem epistemológica, não é uma afirmação teórica acerca de algo duvidoso, mas é um estado “[…] é a aceitação existencial de algo que transcende a experiência ordinária” (Ibidem). A fé não anula a ‘finitude essencial’ do humano, cuja expressão mais radical é a morte, mas ela faz com que nos aceitemos, assim como, somos aceitos “[…] a despeito de nosso desespero sobre a significação dessa aceitação”. (Ibidem, p. 136).

“A incerteza, a insegurança e a dúvida estão inclusas na finitude; num movimento memorável da Teologia Sistemática lemos:
Finitude inclui dúvida. A verdade é o todo (Hegel). Mas nenhum ser finito possui o todo; portanto, é uma expressão da aceitação de sua finitude que ele aceite o fato de que a dúvida pertence a seu ser essencial. Mesmo a inocência sonhadora supõe dúvida. Portanto, a serpente no mito da história do paraíso podia provocar a dúvida no homem”.
(Tillich, 2002, p.300)
Essa é a condição paradoxal do homem, ela é bem expressa na ontologia fundamental de Heidegger, em sua consideração acerca do homem como um ‘ente jogado no ser’; toda decisão humana implica num risco, na esfera da construção do ‘si-para-si’, do ‘si-para-o-outro’, e, finalmente, do ‘si-para-o-Totalmente Outro’ (usado agora a linguagem de Kierkegaard).
Mesmo no âmago do coração do mais sincero dos crentes digladiam os sentimentos e pulsões mais contraditórias e o cristão tomado pelo ‘novo homem’, ao menos, por princípio deveria ser mais sensível a essa condição. Toda essa conjuntura deveria ser considerada com mais seriedade pela teologia evangélica, pois aqui todo evangelicalismo está muito longe da atitude dos reformadores, e, em especial de Lutero (1483-1546), em sua teologia o reformador alemão soube resguardar este caráter dialético e paradoxal, o homem: semper peccator, semper iustus semper paenitens. Lutero concebia a vida cristã de modo muito dinâmico, a conversão, como um princípio, a vida cristã, como a caminhada rumo à perfeição, perfeição esta que se encontra sempre além do limiar do horizonte. Ao comentar determinado verso da epístola ‘Aos Romanos’, (12,2); escreveu Lutero:
“Este comentário é feito em razão do aperfeiçoamento. Pois ele fala àquelas pessoas que já começaram a ser cristãs. A vida delas não se encontra em um estado de repouso, mas sim, num movimento do bom para o melhor, […] O ser humano está sempre no não ser, no vir a ser, no ser sempre em privação, na potencialidade, em processo; sempre no pecado, na justificação, na justiça, ou seja, ele é sempre um pecador, sempre um penitente, sempre justo […] Portanto, a penitência é o meio entre a injustiça e a justiça. Dessa forma um ser humano está no pecado como o terminus a quo [ponto de partida], e, na justiça como o terminus ad quem [ponto de chegada]. Por conseguinte, se nos arrependemos sempre e fazemos penitência, sempre somos pecadores e, não obstante, também somos, pela mesma razão, justos e justificados, somos em parte pecadores e em parte justos, isto é, nada somos senão penitentes”.
(Lutero, 2003, Vol. 8, pp. 321-322)

É na esteira desse pensamento que se situa a concepção que tenho sobre a condição do cristão, de modo que assumo o caráter paradoxal da mesma. Quando afirmo colocar em questão, a cada dia, as verdades da fé, me refiro às representações que fazemos daquilo que consideramos dados da revelação, que em última instância são espirituais, e, como bem afirmou Ken Wilber: “[…] quando a mente tenta reconhecer o domínio espiritual, seu modo é paradoxal ou radicalmente dialético, e seu interesse é soteriológico” (Wilber, 1995, p. 248). Portanto, se pode ler; pensar ou discorrer sobre Deus, ou qualquer outro referente espiritual, contanto que se assuma a limitação de suas representações, que elas se constituem num jogo de trocas simbólicas que necessita por si próprio sempre de elucidações acerca de seu sentido, cujo referente último estará sempre além destas mesmas representações.

Logo, sem qualquer contradição, sustento que na condição de cristão sou um homem de fé, ou seja, fui apoderado pela potencia do ser-em-si, mas na condição de filósofo eu questiono constantemente o conjunto de representações do sagrado, enquanto sentenças de conhecimento acerca do que se propõem: ‘o sentido último’. Esta paradoxal congruência é possível posto que os próprios ‘dados revelacionais’ se medeiam pela linguagem que é também um conjunto de símbolos que se estruturam e se desenvolvem histórico-socialmente, portanto precisam ser elucidados tendo em conta seus respectivos contextos (Heidegger, por exemplo, propõe as seguintes categorias: existencial-ontológico e histórico-hermenêutico).

Agora considero o questionamento acerca do significado do nome “Philothanatos” e de seu uso em referência a alguém que se considere um cristão!
Ser ‘amigo da morte’ é uma blasfêmia, uma ofensa aos valores cristãos e uma afronta à humanidade; a morte é inimiga, é do Inimigo, a morte é a estranha, a intrusa neste mundo.

Este discurso é uma das muitas expressões da atitude homem diante da morte, atitudes construídas socialmente e suscetíveis a transformações constantes ao longo dos séculos, como bem demonstrou Ariès (1997).

Não decorre, necessariamente, disto que a morte tenha sido considerada um bem ou que em algum momento tenha deixado de ser considerada ‘assustadora’; a morte sempre causou medo no homem devido ao seu caráter enigmático e ao total desconhecimento de sua natureza.
Ocorre, sobretudo, em nossa época que se acentua a perda da familiaridade com a morte e ‘o morrer’, a morte se nos tornou ‘selvagem’, conforme a tese de Ariès (1982), nós a expulsamos de nossas casas junto com nossos moribundos:
O homem de hoje, por não vê-la com muita freqüência e muito de perto, a esqueceu; ela se tornou selvagem, e, apesar do aparato científico que a reveste, perturba mais o hospital, lugar de razão e técnica, que o quarto da casa, lugar dos hábitos da vida quotidiana.
(Ariès, 1977, p. 171)
Em conseqüência humanidade se recusa a pensar na morte, até mesmo em pronunciar-lhe o nome, ou, numa atitude antitética, sobretudo nas Américas há uma banalização da morte, sua espetacularização, ela é reduzida à insignificância de um acontecimento banal “[…] de que se finge falar com indiferença. Nos dois casos, o resultado é o mesmo: nem o indivíduo, nem a comunidade têm bastante capacidade para reconhecer a morte” (Ariès, 1982, p. 670).

Na medida em que é concorde, nas Escrituras Cristãs, que as palavras de Jesus são ‘palavras de vida eterna’; é possível acreditar nelas e ao mesmo tempo ser ‘amigo da morte’?

Talvez para os teólogos (e mesmo para ao público não-especializado) seja difícil compreender como sustento a condição a que esse refere nome PhilothánatosI!
O paradoxo se estabelece porque os princípios e procedimentos adotados pelo teólogo não são idênticos àqueles com os quais nos servimos para pensar o problema da religião. Posto que não seja teólogo, mas “filósofo”, eu me ocupo fundamentalmente dos ‘símbolos religiosos’; estes estão ligados à experiência religiosa e a uma cosmovisão religiosa. É exatamente na medida em que esta experiência ou cosmovisão religiosa se insere no contexto histórico que o filósofo, seguindo a trilha do historiador das religiões, pode refletir sobre ela e buscar a compreensão de seu sentido.

Por esta perspectiva, diferentemente do teólogo, pode-se considerar as religiões ‘sistemas simbólicos’ (Geertz, 1989, Eliade, 1996), que apresentam um determinado ponto de referência, de sentido e um determinado plano existencial.

Naturalmente a antropologia reconhece o homem como animal symbolicus e se pode dizer, junto a White (1955, pp. 303-311, apud F. H. Cardoso & O. Ianni,1966, p.180) que o “símbolo é o universo da humanidade”.

Porém, há diferentes sistemas simbólicos para diferentes aspectos da civilização. Há, por exemplo, uma simbologia jurídica; uma simbologia médica, científica; no caso que nos interessa a simbologia religiosa.

Os símbolos religiosos visam uma realidade metaempírica, são ‘hierofanias’: “manifestações do sagrado” (Eliade, 1999, p. 217). A significação última dos atos religiosos, enquanto símbolos da experiência relacional homem/sagrado, refere-se a valores ou figuras sobrenaturais.
Aprecio o modo como Tillich se refere à função dos símbolos (religiosos) segundo a qual apontam para além de si mesmos “[…] no poder que eles apontam para revelar níveis da realidade que de outro modo estão velados, e, para abrir níveis da mente humana que de outro modo não estão acessíveis” (1955, p. 109, apud Eliade, 199 p.220).

Apesar de sua referencia supra-cósmica os símbolos religiosos estão submetidos às mesmas ‘normas’ hermenêuticas que os símbolos não-religiosos e eles têm características análogas a estes, portanto podem ser interpretados pelos mesmos métodos. Ainda que de posse de hermenêuticas distintas os especialistas concordam que os símbolos têm como característica comum a ambivalência (Guénon, 1989), ou a polissimbolizabilidade (M. F. Dos Santos, 1956), ou ainda multivalência (Eliade, 1999), o historiador romeno assim define essa capacidade “[…] de exprimir simultaneamente várias significações cuja vinculação não fica evidente no plano da experiência imediata”. (Eliade, 1999, p. 221), deste modo mesmo aspectos antagônicos podem ser simbolizados por um mesmo símbolo. Quando o filósofo, Mario Ferreira dos Santos, fala sobre a polissimbolizabilidade dos símbolos, ele diz que um “[…] simbolizado pode ser referido por vários símbolos” (M. F. Dos Santos, 1956, p. 18), e, Guénon diz que ambivalência do símbolo, faz que em contextos diferentes, dentro de uma mesma tradição espiritual, o mesmo símbolo tenha significados aparentemente contrários, mas que no fundo são complementares (Guénon, 1989).

Ora, a morte no contexto da Bíblia e ao longo da história cristã, simboliza e é simbolizada de múltiplas formas (por exemplo: separação, sono e viagem), enquanto ela mesma simboliza a condição do homem pecador diante de Deus: ‘morto em delitos e pecados’. Por outro lado, ela também simboliza a passagem da velha para a nova vida, o nascimento contínuo do novo homem em Cristo, pois a regeneração tem a necessidade absoluta do itinerário que passe pela morte, a esta a ressurreição subseqüente pressupõe.

É natural, e também curioso, que seguindo a tendência da Modernidade de alheamento da morte, a teologia cristã evangélica tenha concentrado sua atenção apenas no simbolismo ‘negativo’ da morte, enquanto o misticismo cristão concentrou-se no seu simbolismo ‘positivo’, a morte como símbolo de um movimento de transformação exterior radical.

Não se pode dizer que de acordo com o kerygma há uma relação constante entre a conversão e a mortificação? Poderíamos entender a “metastrophé” cristã como uma trajetória de sucessivas mortes iniciáticas? “Sicut scriptum est: Quia propter te mortificamu tota die […]”

Talvez o cristão tenha mais motivos para adotar a meditatio mortis como modalidade de vida, do que qualquer outro homem. E talvez o filósofo esteja mais próximo do cristão, que assim o faça, na medida em que seu modo de vida consista em inquirir sobre o sentido da morte e em preparar-se para morrer (Fédon. 64 a, c).
Mas, para aqueles que tanto se importam com a sua vida e temem ao menos o pensar na morte, segue o conselho que o apóstolo hauriu da sabedoria antiga: “Manducemos, et bibamus, cras enim moriemus”.

Philothánatos

BIBLIOGRAFIA

ARIÈS. Philippe. História de Morte no Ocidente. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves S. A. 1977.
____________. O Homem Diante da Morte, Vol. II. Rio de Janeiro, 1982.

CARDOSO F, H. & IANNI, Octávio. (Orgs.). Homem e Sociedade: Leituras Básicas de Sociologia Geral. Terceira Edição, São Paulo, Editora Nacional, 1966.

ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o Andrógino – Comportamentos Religiosos e Valores Espirituais Não-Europeus. São Paulo, Nartins Fontes, 1999.

FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis, RJ, Vozes, 2006.

HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. Coimbra / Portugal, Arménio Amado Editor, Sucessor, Brasil, Livraria Martins Fontes, 1976.

LUTERO, Martin. A Epístola do Bem-Aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos, In: Obras Selecionadas, São Leopoldo/RS, Editora Sinodal, Porto Alegre/RS, Concórdia Editora, 2003.

THIESSEN, Henry Clarence. Palestras em Teologia Sistemática. São Paulo, Imprensa Batista Regular do Brasil, 1994.

TILLICH, Paul J. Filosofia e Teologia. In: A Era Protestante. São Paulo, Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1992.

_____________. A Coragem de Ser. Rio de Janeiro, Editora Paz & Terra S. A., 1972.

_____________. Teologia Sistemática. São Leopoldo/RS, Editora Sinodal, 2002.

WILBER, Ken. Reflexões Sobre o Paradigma da Nova Era: Uma Conversa Com Ken Wilber. In: WILBER, Ken (Org.). O Paradigma Holográfico e Outros Paradoxos: Uma Investigação nas Fronteiras da Ciência. São Paulo, editora Cultrix Ltda., 1995.

Vladimir Safatle – 30 aulas – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Estes links mostram as aulas postadas ate agora.

Aula 1

Aula 2

Aula 3

Aula 4

Aula 5

Aula 6

Aula 7

Aula 8

Aula 9

Aula 10

Aula 11

Aula 12

Aula 13

Aula 14

Aula 15

Aula 16

Aula 17

Aula 18

Aula 19

Aula 20

Aula 21

Aula 22

Aula 23

Aula 24 

Aula 25

Aula 26 

Aula 27

Aula 28

Aula 29

Aula 30

Vladimir Safatle – Aula 30/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 30 [Final]

 

 

Na aula de hoje, terminaremos subseção: “O espírito alienado de si: a cultura”. Isto nos permitirá, na aula que vem, terminar o curso através de um comentário das questões centrais que aparecem na última subseção da seção “Espírito”: esta intitulada “O espírito certo de si: a moralidade”. Tais questões nos permitirão compreender elaborações centrais apresentadas por Hegel na seção final Fenomenologia do Espírito: esta intitulada “O Saber Absoluto”.

            Vimos, na aula passada, como Hegel se via obrigado a compreender as consequências deste processo de auto-dissolução do mundo da cultura através da ironização que foi objeto de nosso comentário há duas aulas atrás. Desta ironização absoluta das condutas, Hegel procurava nos demonstrar que seguiam dois desdobramentos possíveis, duas posições no que diz respeito a recuperação de princípios de valoração e formação capazes de dar conta da perda de fundamento para o Eu no interior de modos de socialização na aurora da modernidade: o emotivismo da recuperação moderna da fé (Glauben) e a pura intelecção do esclarecimento. Contra a ausência de fundamento de um processo de formação vinculado à cultura, a consciência pode procurar afastar-se do mundo através do puro pensar.

Hegel lembra que estes dois movimentos da essência irão aparecer de maneira separada, embora tenham a mesma fonte. A pura intelecção é esta essência interior satisfeita em uma quietude passiva. Como ela nasce de um afastamento do mundo da cultura, de início ela não tem conteúdo em si mesma, seu objeto é o puro Eu enquanto fonte do conceituar, isto no sentido de que o objeto só terá verdade para ela na medida em que tiver a forma do Eu (tal como vimos no caso da análise hegeliana das categorias). Lembremos aqui novamente deste postulado idealista central: a estrutura do objeto deve duplicar a estrutura do Eu.

            Já a fé irá aparecer também como pura consciência, mas que tem por objeto a essência que adquire, inicialmente, a figura degradada da representação de um ser objetivo, de um Outro além da consciência-de-si (Deus). Por isto, ela é negação do mundo através de um serviço em nome de Deus. No entanto, Hegel lembra que: “ a articulação do mundo real também constitui a organização do mundo da fé”[1], isto no sentido de que o movimento fenomenológico de auto-dissolução das determinidades duplica a estrutura do mundo teológico. Maneira de insistir que esta negação do mundo apenas irá perpetuá-lo pois é feita a partir dele mesmo.

Vimos como, na Fenomenologia, Hegel organiza sua reflexão sobre o iluminismo e suas expectativas de racionalização a partir de uma confrontação com a fé que, em vários pontos, apresenta-se como uma retomada do conflito, próprio à polis grega, entre um princípio humano e um princípio divino de conduta socialização. Continuar lendo

Vladimir Safatle – Aula 29/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 29

 

Na aula de hoje, daremos continuidade ao comentário da subseção “O Espírito alienado de Si: a cultura”, terminando a primeira parte da subseção, esta intitulada “O mundo do Espírito alienado de si” e dando conta da segunda parte: “O iluminismo”. Para a aula que vem, ficará o comentário da última parte, esta dedicada à reflexão fenomenológica sobre a Revolução Francesa, “A liberdade absoluta e o terror”, assim como o comentário da primeira parte da última subseção da seção “Espírito”, esta intitulada “O Espírito certo de Si: a moralidade”. Parte esta onde Hegel procura dar conta do que ele denomina de “Visão moral do mundo” no interior do idealismo alemão. Desta forma, terminaremos este curso comentando as figuras da consciência-de-si que finalizam a seção “Espírito”, como a Gewissen, a bela alma e o confronto entre má consciência e consciência do dever, isto a fim de mostrar como as questões postas neste momento da Fenomenologia nos levarão diretamente à tematização correta do que Hegel entende por Saber Absoluto.

            Nós vimos, desde o início do comentário da seção “Espírito” como Hegel procura constituir um trajeto de formação histórica da consciência que só ganha inteligibilidade se o compreendermos como o desdobramento histórico dos modos com que sujeitos se inserem e absorvem regimes de racionalidade encarnados em instituições e práticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ação orientada por “razões para agir”. Partimos da ruptura das expectativas depositadas na eticidade da polis grega devido à confrontação entre dois princípios que se transformam em antagônicos no interior da polis: a lei humana da comunidade e a lei divina da família. Vimos como expectativas universalizantes de reconhecimento depositadas, de maneira imperfeita, na lei divina nos levaram ao reconhecimento do universal abstrato da pessoa no estado romano de direito. Modo de reconhecimento que, por sua vez, permitiu o advento de uma experiência da interioridade que será fundamental para a constituição do princípio moderno de subjetividade.

Era através desta experiência de distanciamento do mundo resultante da posição da interioridade como espaço privilegiado para a singularidade da subjetividade que entramos na segunda subseção intitulada, não por outra razão: “O espírito alienado de si: a cultura”. “O mundo tem aqui a determinação de ser algo exterior (Äusserliches), o negativo da consciência-de-si”, dizia Hegel a fim de dar conta do teor de toda esta subseção que visa cobrir este período histórico que vai da Alta Idade Média até os desdobramentos da Revolução Francesa. Teor marcado pelo esforço da consciência em se reconciliar com o mundo, nem que seja às custas de uma reconstrução, de uma formação revolucionária do mundo social e das práticas de interação social, impulso este de formação dependente de uma reflexão filosófica de larga escala sobre a essência e seus modos de relação com a subjetividade.

Vimos como Hegel iniciava lembrando que se formar implica em “acordar-se (gemäss gemacht) com a efetividade”, com a substância, ou ainda, com um padrão de conduta que tenha valor de espécie (Art) e que permita operações valorativas que viabilizem a indicação de algo como um bem ou um mal. Tais operações valorativas aparecem, no interior de práticas sociais, como ação feita em conformidade com dois princípios distintos: um é o poder do Estado ou outro é a riqueza (Reichtum). De fato, Hegel opera tal distinção entre poder de Estado e riqueza porque tem em vista a maneira com que a conduta ética aristocrática, vinculada ao sacrifício de Si pela honra dos princípios reais, apareceu, em solo europeu, como princípio virtuoso de formação em contraposição ao vínculo burguês à acumulação de riqueza e propriedade. Hegel então procurava analisar se a ética aristocrática da honra podia, através de sua ação, realizar seu próprio conceito. Ética que se via como “heroísmo do serviço”, ou seja, como a pessoa que renuncia à posse e ao gozo de si mesma em prol da efetivação do poder ao qual se sacrifica.

No entanto, partindo desta noção já apresentada na seção “raz Continuar lendo

Vladimir Safatle – Aula 28/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 28

 

Na aula passada, acompanhamos este trajeto de formação histórica da consciência que Hegel procura descrever na seção Espírito. Vimos como tal trajeto só ganha inteligibilidade se o compreendermos como o desdobramento histórico dos modos com que sujeitos se inserem e absorvem regimes de racionalidade encarnados em instituições e práticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ação orientada por “razões para agir”. A partir da ruptura das expectativas depositadas na eticidade da polis grega e do advento da experiência de interioridade resultante do reconhecimento abstrato da pessoa no estado romano de direito, adentramos nesta parte principal da nossa seção, parte intitulada: “O espírito alienado de si: a cultura”.

Esta segunda parte da seção Espírito é a mais extensa de todas e tenta cobrir um longo período histórico que vai da Alta Idade Média até os desdobramentos da Revolução Francesa. Hegel descreve este período nos seguintes termos:

O mundo tem aqui a determinação de ser algo exterior (Äusserliches), o negativo da consciência-de-si. Contudo, esse mundo é a essência espiritual, é em si a compenetração do ser e da individualidade. Seu Dasein é a obra da consciência-de-si, mas é igualmente uma efetividade imediatamente presente e estranha a ele; tem um ser peculiar e a consciência-de-si ali não se reconhece.[1]

            Ou seja, a consciência não reconhece mais a efetividade exterior do mundo como seu próprio trabalho, como sua própria substância (tal como ocorria nas relações iniciais de eticidade). Haverá um longo caminho de reconciliação com um mundo contra o qual a consciência não cessará de lutar. No entanto, tal reconciliação só será possível quando a consciência for capaz de internalizar o mundo como o negativo de si mesma, encontrar, em si mesma, aquilo que a nega. Vimos tal movimento em operação em outros momentos da Fenomenologia. Ele foi a nossa maneira de ler o imperativo idealista de duplicação entre a estrutura do objeto e a estrutura do Eu. Nossa tarefa ficou sendo a de compreender como isto se dará no interior de um movimento historicamente determinado de formação.

Hegel inicia lembrando que se formar implica em “acordar-se (gemäss gemacht) com a efetividade”, com a substância, ou ainda, com um padrão de conduta que tenha valor de espécie (Art) e que permita operações valorativas que viabilizem a indicação de algo como um bem ou um mal. Tais operações valorativas aparecem, no interior de práticas sociais, como ação feita em conformidade com dois princípios distintos: um é o poder do Estado ou outro é a riqueza (Reichtum). De fato, Hegel opera tal distinção entre poder de Estado e riqueza porque tem em vista a maneira com que a conduta ética aristocrática, vinculada ao sacrifício de Si pela honra dos princípios reais, apareceu, em solo europeu, como princípio virtuoso de formação em contraposição ao vínculo burguês à acumulação de riqueza e propriedade. Pois Hegel quer mostrar como esta ética aristocrática irá produzir as condições objetivas para o Iluminismo.

Nesta perspectiva, o poder de Estado aparece como “ a substância simples, a obra universal, a Coisa mesma, na qual é enunciada aos indivíduos sua essência”. Ele é a “absoluta base (Grundlage)” do agir de todos. Por outro lado, a riqueza é o que “se dissolve no gozo de todos”, gozo movido pelo egoísmo de quem segue apenas seus próprios interesses imediatos (embora já vimos como Hegel contesta tal atomismo através da tematização do sistema de necessidades). A consciência pode optar pautar suas ações e julgamentos, seja a partir de um princípio, seja a partir do outro.

Hegel lembra que estes princípios podem ser invertidos. Ao internalizar princípios de formação e conduta através da obediência ao poder de Estado, a consciência encontra aqui: “sua simples essência e substância em geral, mas não sua individualidade como tal, Encontra nele, sem dúvida, seu ser em-si, mas não seu ser para-si”[2]. A obediência aparece como opressão. A riqueza, ao contrário, é “doadora de mil mãos” que tudo entrega à consciência e lhe permite o gozo da realização de seu próprio projeto, ela “a todos se entrega e lhes proporciona a consciência de seu Si”. Estas duas maneiras de julgar darão figuras distintas da consciência: a consciência nobre e a consciência vil.

            Na aula passada, seguimos os desdobramentos da consciência nobre. De fato, ela se vê como o “heroísmo do serviço”, como a pessoa que renuncia à posse e ao gozo de si mesma em prol da efetivação do poder ao qual se sacrifica. Desta forma, ela dá atualidade ao poder de Estado através de sua própria ação. Em última instância, é a consciência nobre que diz o que o poder de Estado é, daí porque Hegel afirma que este poder : “ainda não possui nenhuma vontade particular, pois a consciência-de-si servidora ainda não exteriorizou ser puro Si e assim vivificou o poder de Estado”[3]. A linguagem da consciência nobre aparece pois como o conselho (Rat) dado pelo “orgulhoso vassalo” ao poder de Estado para a efetivação do bem comum. Hegel insiste pois que este sacrifício da consciência nobre não é efetivamente um, já que é conselho que dirige o poder de Estado (jogando com a  ambiguidade) e que pauta suas ações a partir de um conceito de honra que é vínculo ao outro.

            Neste contexto, vimos como Hegel fazia novamente alusão à experiência da negatividade da morte como verdadeiro processo de formação. O verdadeiro processo de formação é o sacrifício que: “só é completo quando chega até a morte”, sacrifício no qual a consciência se abandona “tão completamente quanto na morte, porém mantendo-se igualmente nesta exteriorização”[4].

Mas neste ponto, Hegel acrescenta uma reflexão extremamente importante. Ele afirma que é através da linguagem que a consciência realiza enfim este sacrifício de si. Desta forma, a linguagem é claramente enunciada como processo de exteriorização e de auto-dissolução da identidade que deve ser lido na continuidade das reflexões de Hegel sobre o trabalho:

Com efeito, a linguagem é o Dasein do puro Si como Si, pela linguagem entra na existência a singularidade sendo para si da consciência-de-si, de forma que ela é para os outros (…) Mas a linguagem contém o Eu em sua pureza, só expressa o Eu, o Eu mesmo. Esse Dasein do Eu é uma objetividade que contém sua verdadeira natureza. O Eu é este Eu mas, igualmente, o Eu universal. Seu aparecer é ao mesmo tempo sua exteriorização e desaparecer e, por isto, seu permanecer na universalidade (…) seu desaparecer é, imediatamente, seu permanecer[5].

Ou seja, após ter dito, na seção anterior da Fenomenologia, que a linguagem era uma exteriorização na qual o indivíduo não se conservava mais, abandonando seu interior a Outro, Hegel afirma agora o inverso, ou seja, que a linguagem é o Dasein do Si como Si. No entanto, esta contradição é apenas aparente, pois a linguagem perde seu caráter de pura alienação quando compreendemos o Eu não como interioridade, mas como aquilo que tem sua essência no que se auto-dissolve. Ao falar do Eu que acede à linguagem como um universal, Hegel novamente se serve do caráter de dêitico de termos como Eu, isto, agora etc. “Eu” é uma função de indicação a qual os sujeitos se submetem de maneira uniforme. Ao tentar dizer ‘eu’, a consciência desvela a estrutura de significante puro do Eu, esta mesma estrutura que o filósofo alemão chama de : “nome como nome”. Uma natureza que transforma toda tentativa de referência-a-si em referência a si ‘para os outros’ e como um Outro. Este eu enquanto individualidade só pode se manifestar como o que está desaparecendo em um Eu universal. Novamente, Hegel se serve da lógica dos dêiticos para falar daquilo que é essencial nos usos da linguagem. A peculiaridade de nossa passagem é que ela ainda servirá para que Hegel mostre uma situação de prática social na qual o Eu se apresenta integralmente em uma linguagem que não expressa sua individualidade: trata-se da lisonja.

Hegel fez tais considerações sobre a linguagem para poder introduzir uma mudança maior na relação entre a consciência nobre e o poder de Estado com o advento da monarquia absoluta. A consciência nobre não mais tenta, através da linguagem do conselho, determinar a vontade de um poder do Estado que passa à condição de Eu deliberante e universal em sua singularidade: único nome próprio diante de nomes sem singularidade. O nome do monarca é pura vontade que decide. Desta forma: “o heroísmo do serviço silencioso torna-se o heroísmo da lisonja”, de um alienar-se, através da bajulação, à vontade de um Outro (Hegel pensa sobretudo na nobreza palaciana de Versailles sob Luis XIV):

Vê sua personalidade como tal dependendo da personalidade contingente de um Outro; do acaso de um instante, de um capricho, ou aliás de uma circunstância indiferente. No Estado de direito, o que está sob o poder da essência objetiva aparece como um conteúdo contingente do qual se pode abstrair e o poder não afeta o Si como tal, mas o Si é antes reconhecido. Porém aqui o Si vê a certeza de si, enquanto tal, ser o mais inessencial e a personalidade pura ser a absoluta impessoalidade[6].

 Ou seja, do Senhor do mundo ao monarca absoluto, temos um aprofundamento da apropriação reflexiva da natureza dilacerada da consciência. Pois, aqui,  a consciência nobre se encontrará tão dilacerada quanto a consciência vil, embora este dilaceramento seja condição para a determinação da verdade da consciência, até porque: “ a consciência-de-si só encontra sua verdade no seu dilaceramento absoluto”. Mas este dilaceramento deverá ainda durar um pouco mais.

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Vladimir Safatle – Aula 27/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 27

Na aula de hoje, continuaremos o comentário da seção Espírito indo do parágrafo 477 ao parágrafo 518, ou seja, este trecho que abarca as partes “O  Estado de direito” e “A cultura e o seu reino da efetividade”. Na aula que vem, terminaremos esta segunda parte através do comentário do trecho que vai do parágrafo 519 ao 526, trecho no qual Hegel se dedica a expor sua leitura da peça de Diderot, O sobrinho de Rameau.

            O trecho a ser comentado na aula de hoje cobre um largo período histórico que vai da hegemonia romana, passando pelo advento cristianismo, do mundo feudal com suas relações de cavalaria, vassalagem e sua ética da honra, isto a fim de terminar na reflexão sobre as relações entre nobreza e realeza na monarquia absoluta de Luis XIV. Podemos organizar nosso trecho da seguinte maneira. A parte “O Estado de direito” trata da maneira com que Hegel compreende o advento do Império romano enquanto figura da desagregação da eticidade da polis grega e da perda do fundamento substancial da razão enquanto orientação para práticas sociais e julgamento. Logo em seguida, Hegel inicia a segunda subseção do capítulo, esta cujo título é: “O Espírito alienado de si: a cultura (bildung)”. Do parágrafo 484 ao 486, encontramos um resumo geral do que se seguirá neste capítulo. Trata-se deste longo movimento de tentativa de recuperação da substancialidade da vida ética que vai desembocar no iluminismo revolucionário e em seus desdobramentos. Do parágrafo  488 ao 491, temos uma digressão a respeito do conceito de cultura e de sua proximidade estrutural com o conceito de alienação (Entfremdung). Ou seja, trata-se de insistir como os processos de formação da consciência são necessariamente processos de alienação. Do parágrafo 492 ao 508, temos o início do movimento histórico desta segunda parte através de uma descrição de relações feudais entre nobreza e realeza a partir de suas próprias expectativas de legitimidade. Hegel irá demonstrar como tais relações não realizam suas próprias expectativas  e que sua verdade é a relação de completa alienação e dilaceramento entre nobreza e monarquia absoluta, assunto que irá do parágrafo 510 até o final. Entre os parágrafos 508 e 510, Hegel insere uma nota importante sobre a linguagem em sua função expressiva (“a linguagem como Dasein do puro Si”).

            Como veremos na aula de hoje, no comentário deste longo desdobramento histórico que vai do Império romano à monarquia absoluta de Luis XIV, Hegel não se preocupa, em momento algum, em estruturar uma narrativa histórica de acontecimentos que impulsionaram o desenvolvimento histórico. Não há aqui uma filosofia da história no seu sentido mais forte do termo e mesmo a comparação entre o nosso trecho e o mesmo trecho equivalente nas Lições sobre a filosofia da história demonstra descompassos e grandes saltos evidentes. Isto nos leva a perguntar qual a natureza da narrativa e do desenvolvimento que será apresentado. Uma questão que, na verdade, toca o problema do estatuto da história no interior da seção Espírito.

            Grosso modo, podemos dizer que a maneira peculiar com que Hegel corta o contínuo histórico, selecionando alguns momentos a despeito de outros igualmente centrais, é feita em nome de uma história, não de acontecimentos, mas de padrões de socialização com seus impasses. Impasses estes vinculados à insistência de expectativas não realizadas de reconhecimento do que se aloja na posição dos sujeitos. Ou seja, trata-se principalmente de articular a perspectiva histórica a partir da maneira com que os sujeitos se inserem em práticas sociais e padrões de conduta, quais expectativas eles mobilizam nesses processos de inserção, ou ainda, de socialização e como tais expectativas iniciais são invertidas e negadas. Isto talvez nos explique esta peculiaridade maior da narrativa histórica no interior da seção Espírito, a saber, a maneira com que Hegel descreve grandes movimentos históricos sempre tendo como eixo a perspectiva da consciência inserida em práticas sociais, como se tais movimentos pudessem ser descritos como movimentos de auto-reflexão da consciência na sua confrontação direta com figuras de soberania (“O senhor do mundo” [Herr der Welt], o “poder do Estado” [Staatsmacht], o “nome próprio do monarca” etc,). O que levou comentadores como Honneth a insistir que Hegel opera como categorias: “que não concernem às relações entre membros da sociedade, mas apenas à relação destes com a instância superior do Estado”[1].

            No entanto, podemos sempre lembrar que uma fenomenologia do Espírito deve privilegiar o modo com que sujeitos se inserem e absorvem modos de racionalidade encarnados em instituições e práticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ação orientada por “razões para agir”. Neste sentido, vale sempre a pena lembrar que, no interior de práticas sociais, os sujeito realmente agem como se atualizassem constantemente uma ação direta com figuras de soberania. Apropriar-se, de maneira reflexiva, da racionalidade encarnada em estruturas sociais (condição fundamental para a realização do conceito de Espírito) só é possível levando em conta a maneira com que sujeitos justificam, para si mesmos, como agir e quais representações eles têm da figura da soberania.

            Dito isto, vale a pena fazermos uma pequena recapitulação a fim de entrarmos diretamente no comentário do nosso trecho da Fenomenologia do Espírito.

Na aula passada, vimos, através do comentário de Antígona, de Sófocles, a desagregação do conceito de eticidade em vigor na polis grega. Vimos como Hegel identificava uma linha de tensão que perpassava a eticidade grega através da dicotomia entre a lei humana e a lei divina: substâncias de dois núcleos distintos de socialização, a saber, a família e a comunidade (Gemeinwesen). A questão central era: como a lei da família e a lei da polis podiam sustentar, conjuntamente e sem cisões, esta eticidade que permite indivíduos orientarem julgamentos e ações. Pois será a partir da ruptura da complementaridade entre lei divina e lei humana, ruptura resultante da lenta consciência trágica do advento do ato (Tat) de uma individualidade singular, do absoluto ser para-si da consciência puramente singular que não se reconhece mais em um dos pólos da lei (e, por isto, se aloja em outro pólo), que a eticidade grega irá dissolver-se.

Hegel percebe a estetização de tal dissolução como tema central da tragédia grega. Daí porque o trágico será definido por Hegel como o choque entre potências substanciais e legitimas em obra no agir humano: “ O trágico consiste nisto, que os dois lados da oposição (Gegensatzes), cada um tomado por si tem uma justificação (Berechtigung), mesmo que só sejam capazes de fazer valer o verdadeiro conteúdo positivo de seus fins e de seus caracteres que como negação e lesão da outra instância”[2]. Pois, no interior da ação trágica, a consciência sabe o que tem de fazer e está decidida a pertencer seja à lei divina feminina (Antígona com suas exigência de reconhecimento de quem partilha o sangue da família), seja à lei humana masculina (Creonte com suas exigências de que tais aspirações de reconhecimento se submetam aos imperativos de preservação da polis). Este saber é o que sustenta a imediaticidade da decisão, já que ela tem a significação de um ser natural, enraizado no que a natureza inscreve como saber acessível à consciência.

Vimos que, por pensar a decisão (Entschiendeheit) como o que se fundamenta na imediatez do saber, ela não compreende a ação como mediação entre a consciência e o que se coloca como seu Outro, isto já que a consciência ética exige que o ato não seja outra coisa senão o que ela sabe. A atividade orientada pelo dever é, para a consciência, algo de imediato e imune à contradição. Desta forma, Hegel compreende que a ruína trágica está na essencialidade das duas perspectivas e, ao mesmo tempo, no engano em continuar, até o fim, acreditando que o ato ético é aquele fundamentado na certeza interior de seguir uma lei, seja ela divina, seja ela humana. Tanto que a reconciliação será, na verdade, a ruína de ambas as posições, pois ruína da própria eticidade grega. Continuar lendo

Vladimir Safatle – Aula 26/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 26

 

 

Na aula de hoje, daremos continuidade ao comentário da primeira parte da seção “Espírito”, ou seja, esta dedicada à posição do conceito de eticidade no interior da polis grega.

Vimos, desde o início deste módulo, como Hegel partia da tentativa de seus contemporâneos (e dele mesmo na juventude) em construir uma alternativa à modernidade através do recurso a formas de vida e modos de socialização próprios à uma Grécia antiga idealizada e paradigmática. No entanto, o poder absoluto de unificação em operação na polis grega será posto como o que estava fadado a dissolver-se: maneira de mostrar como modos de socialização próprios à Grécia antiga não poderiam fornecer alternativas aos impasses e às dissociações da modernidade.

Neste sentido, partimos do diagnóstico que estava presente em afirmações como:

Na verdade, a liberdade do indivíduo existe na Grécia, mas ainda não atingiu a concepção abstrata de que o sujeito pura e simplesmente depende do substancial – do Estado[1].

 

Heidegger criticara Hegel por compreender a Grécia como um “ainda não”, como “o que ainda não colocou os pés sobre a terra da filosofia, ou seja, a consciência-de-si na qual somente o objeto representado pode ser como tal”[2]. Ou seja, Hegel estaria afirmando, entre outras coisas, que a eticidade grega não podia suportar exigências de reconhecimento de sujeitos compreendidos como consciências-de-si. Daí porque ele afirmaria que a moralidade, enquanto subjetividade da convicção e da intenção ainda não estaria presente. A lei vigora por ser a lei ancorada nos costumes e no hábito. Ela não é o que se submete ao exame de uma consciência que só pode aceitar por válido aquilo cuja causa se submete ao seu pensar. Daí porque Hegel insiste que a decisão na polis era normalmente vinculada à compreensão do que enunciava os oráculos. Quando a decisão passa a ser fruto da discussão onde particulares procuram se impor no interior da polis animados pela consciência da “contradição entre seu saber sobre a eticidade da sua ação e o que é ético em si e para si”[3], então a ruína já estava à espreita.

Na verdade, este “déficit de abstração” que aparece na compreensão do enraizamento substancial dos indivíduos na determinação regional da polis grega, tende, estranhamente, a apontar para uma certa defesa do formalismo do sujeito moderno. Isto talvez possa ser explicado se lembrarmos que tal déficit de abstração vincula-se, entre outros, ao fato do fundamento da liberdade do espírito grego estar condicionado em relação essencial com um estímulo da natureza. O natural no pensamento grego não é negado, mas remodelado (umbilden) para a expressão do sujeito. Poderíamos mesmo dizer que os gregos desconhecem o trabalho da angústia; na verdade, eles conhecem apenas: “a alegre autoconfiança perante a naturalidade sensível”[4] (Das frohe Selbstgefühl gegen die sinnliche Natürlichkeit).  Isto se traduzirá no vínculo natural, não-reflexivo à estaticidade dos costumes e hábitos desta polis determinada, costumes e hábitos que expressariam a positividade da substância ética. Neste contexto, o sujeito, com suas exigências universais de reconhecimento para além de todo conjunto determinado e contextual de leis e costumes, é o que guarda a força para a criação de instituições não mais submetidas a tal naturalização.

Partindo destas considerações gerais, vimos como Hegel organizava a linha de tensão que perpassava a eticidade grega através da dicotomia entre a lei humana e a lei divina: substâncias de dois núcleos distintos de socialização, a saber, a família e a comunidade (Gemeinwesen). . A questão central será pois: como a lei da família e a lei da polis podem sustentar, conjuntamente e sem cisões, esta eticidade que permite indivíduos orientarem julgamentos e ações.

Hegel parte lembrando que não se trata aqui de alguma forma de contraposição entre natureza e sociedade, já que: “a família não está no interior de sua essência ética enquanto ela é o comportamento da natureza de seus membros”, pois “essa relação da natureza é também um espírito”[5].  Isto não impede Hegel de insistir na consciência que os gregos tinham da força disruptiva do que continua vinculado à família:

A família, como o conceito desprovido de consciência e ainda interior da efetividade consciente-de-si, como o elemento da efetividade do povo, se contrapõe ao próprio povo; como ser ético imediato se contrapõe à eticidade que se forma e se sustém mediante o trabalho em prol do universal; os Penates se contrapõem ao espírito universal[6].

Daí porque o relacionamento ético dos membros da família já deve ser algo voltado à vida ética da comunidade. Hegel descarta que tal  relacionamento ético seja o relacionamento da sensibilidade ou o exclusivismo da relação de amor. Antes, ele é o: “pôr o Singular para família, em subjugar (unterjochen) sua naturalidade e singularidade e em educá-lo para a virtude, para viver no universal e para o universal”[7]. Um viver no universal que não é simples fruto da opressão em relação às aspirações da particularidade, mas formação em direção a uma liberdade que libertação das ilusões da imediaticidade. Pois enquanto não é cidadão e pertence à família, o Singular é uma “sombra inefetiva sem contornos”.

No entanto, não deixa de ser sintomático que Hegel faça uma junção inesperada ao dizer que esta formação do Singular para viver no universal se realize de maneira mais bem acabada no rito fúnebre, no cuidado em relação ao morto (e é através da relação ao morte que nasce a consciência da lei divina). Vimos que Hegel mostrava como tal cuidado significava que a lei divina é a primeira posição da individualidade como incondicionalidade ou [por enquanto] abstração. A lei divina que encontra seu solo na família é posição do Singular como universalidade abstrata. Esta lei ganhará sua naturalidade através do seu vínculo à posição feminina. O feminino, enquanto puro “pressentimento da essência ética” fica vinculado à universalidade abstrata da lei divina da família.

Por sua vez, o governo da comunidade que efetiva a lei humana também é baseado em uma certa força da abstração. Pois este governo não é concebido a partir de uma sociedade nascida da necessidade e visando a conservação de seus membros, ele  não repousa sobre uma promessa de paz e de repouso mas realiza a negação absoluta que consiste em viver para o universal:

Para não deixar que os indivíduos se enraízem e endureçam nesse isolar-se e que, desta forma, o todo se desagregue e o espírito se evapore, o governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu íntimo pelas guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito à independência. Quanto aos indivíduos, que afundados nessa rotina e direito se desprendem do todo aspiram ao ser para-si inviolável e à segurança da pessoa, o governo, no trabalho que lhes impõe, deve dar-lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissolução da forma da subsistência, o espírito impede o soçobrar do Dasein ético no natural, preserva o Si de sua consciência e o eleva à liberdade e à força. A essência negativa se mostra como a potência peculiar da comunidade e como a força de sua autoconservação[8].

            Desta forma, vimos como a temática do conflito como fundador do vínculo social (tal como vimos na dialética do senhor e do escravo) aparece como fundamento para a ação do Estado.  Se o governo não repousa sobre uma promessa de paz é porque o processo de formação, que se iniciou na família, deve animar os processos de interação social enquanto meios para a realização da subjetividade como universalidade desprovida de toda aderência ao Dasein natural, enquanto o que se realiza através de um trabalho que é confrontação com a fragilização das imagens estáticas do mundo.

Uma certa harmonia parece se instaurar já que:

Pelo espírito da família, o homem é enviado à comunidade e nele encontra sua essência consciente-de-si. Como desse modo a família possui na comunidade sua universal substância e subsistência, assim, inversamente a comunidade tem na família o elemento formal de sua efetividade; e na lei divina, sua força e legitimação[9].

Por isto que Hegel poderá afirmar:

A união do homem e da mulher constitui o meio-termo ativo do todo, o elemento que cindido nesses extremos da lei divina e da lei humana é igualmente sua unificação imediata. que faz daqueles dois primeiros silogismos um mesmo silogismo e que unifica em um só os movimentos opostos[10].

No entanto, esta harmonia será quebrada, já que a lei divina guardada pelo feminino irá demonstrar como a lei da polis não pode realizar, de forma adequada, exigências de universalidade. É desta forma que aparece a figura do “todo como equilíbrio estável de todas as partes” ou do reino ético como “mundo imaculado que não é manchado por nenhuma cisão”.

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Vladimir Safatle – Aula 25/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 25

 

 

A aula de hoje será dedicada ao comentário da subseção “O mundo ético: a lei humana e a lei divina, o homem e a mulher”. Como ele, nós começamos a apreender, de maneira mais sistemática, a maneira com que a Fenomenologia do Espírito apresenta o conceito de eticidade ou “razão ética”: base para a articulação da noção de “Espírito”.

Como sabemos, a primeira parte de nossa seção, este que tem por título: “O Espírito verdadeiro: a eticidade” diz respeito, principalmente, à reflexão filosófica sobre o mundo grego e sobre a possibilidade de sua recuperação enquanto alternativa para os impasses e cisões da modernidade. Vimos como, neste sentido, como foi particularmente forte para a geração de Hegel (o mesmo para o Hegel de juventude; ver, por exemplo, seu Sistema da eticidade), principalmente após a crítica rousseauista à inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir uma alternativa à modernidade através recurso a formas de vida e modos de socialização próprios à uma Grécia antiga idealizada e paradigmática. Neste sentido, não é estranho que a reflexão hegeliana sobre a eticidade comece a partir de uma discussão a respeito da polis grega, ou melhor, a respeito da maneira com que os modernos compreendiam o poder absoluto de unificação que imperava na polis grega. Pois a questão fundamental aqui: “Não está vinculada aos detalhes históricos da vida grega per se mas diz respeito a saber se a vida grega idealizada por muitos de seus contemporâneos [de Hegel] pode, em seus próprios termos, contar como alternativa genuína para a vida moderna”[1]. Daí porque Heidegger irá compreender claramente que, para Hegel: “A filosofia dos gregos [e suas formas de vida] é a instância de um ‘ainda não’. Ela não é ainda a consumação mas, contudo, é unicamente concebida do ponto de vista desta consumação que se definiu como o sistema do idealismo especulativo”[2]. De fato, a maneira com que Hegel caracterizara os gregos já era bastante sintomática:

Os gregos tinham a unidade substancial da natureza e do espírito como fundamento e essência; e tendo e sabendo isto como objeto, não chegaram a desaparecer nesta unidade, mas permaneceram (gegangen) nela sem caírem no extremo da subjetividade formal [dos modernos] formando assim uma unidade consigo mesmos; como sujeitos livres que têm por essência, conteúdo e substrato esta primeira unidade; como sujeitos livres cujo objeto é a beleza[3].

Vemos como as formas gregas de vida pareciam poder realizar, assim, esta noção de vida ética de um povo expressa da seguinte forma:

O espírito é substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente: o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos, seu fim e sua meta, como é também o em-si pensado de toda consciência-de-si[4].

Mas Hegel insistirá que tal liberdade do sujeito só poderá aparecer de maneira trágica no interior da polis grega pois esta liberdade, quando se manifesta, já é sinal da ruína da eticidade grega. Esta será a função do comentário de Antígona no interior de nosso texto (mas Hegel poderia também ter lembrado de sua leitura do julgamento de Sócrates). Desta forma, a primeira parte do capítulo se organizará em dois grandes blocos: o mundo ético (onde é questão da exposição do ideal de eticidade da polis grega) e a ação ética (onde é questão do advento trágico da impossibilidade de realização de tal conceito devido às exigências de reconhecimento do que não se coloca integralmente como determinado pela lei da polis). O terceiro movimento, “O estado de direito”, é um desdobramento das conseqüências da desagregação do ideal grego de eticidade.

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Vladimir Safatle – Aula 24/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 24

 

 

Na aula de hoje, será questão, principalmente, do conceito hegeliano de eticidade (Sittlichkeit). É o comentário de tal conceito que nos permitirá finalizarmos a seção “certeza e verdade da razão”, assim como iniciarmos a seção “Espírito”.

            Na aula passada, havíamos começado o comentário da subseção “a individualidade que é real em si e para si mesma” insistindo como se tratava de um momento do texto que procurava realizar a pressuposição de que a consciência se orientava a partir da reconciliação com um curso do mundo produzido pelo próprio agir das consciências. Por isto, Hegel iniciava:

A consciência-de-si agora captou o conceito de si, que antes era só o nosso a seu respeito: o conceito de ser, na certeza de si mesmo, toda a realidade. Daqui em diante tem por fim e essência a interpenetração espontânea [bewegende Durchdringung ­ – o movimento espontâneo de interpenetração] do universal (dons e capacidades) e da individualidade[1].

A fim de expor a dinâmica desta experiência de reconciliação, Hegel sintetizava suas reflexões sobre a anatomia do ato em um momento central da Fenomenologia intitulado: “O reino animal do espírito e a impostura ou A coisa mesma”. Momento no qual é questão de uma primeira reconciliação através de uma posição imperfeita de um horizonte comum de racionalidade pressupostos pelo agir social e, principalmente, pelo falar que procura realizar aspirações de reconhecimento.

Em um momento importante, Hegel centrava a economia do texto a partir da reflexão a respeito do problema da confrontação, ou ainda, do reconhecimento, entre consciência e sua obra (que pode ser compreendida neste contexto como todo e qualquer resultado socialmente reconhecido do agir individual). De fato, a consciência, devido a sua estrutura transcendente e negativa que procura ser reconhecida “se retira de sua obra”, “ela mesma é o espaço sem determinidade que não se encontra preenchido por sua obra”. Mas lembremos que a consciência deve adotar uma posição negativa em relação à obra porque esta é aquilo que se confronta perpetuamente com outras consciências, ou seja, a significação da obra é resultado da interferência de outras consciências. Ela é o que se constrói na confrontação incessante entre consciências. Daí porque Hegel afirma:

A obra é assim lançada para fora em um subsistir no qual a determinidade da natureza originária se retorna contra as outras naturezas determinadas, nas quais interfere e que interferem nela; e nesse movimento universal [a obra] se perde como momento evanescente (…) Em geral, a obra é assim algo de efêmero que se extingue pelo contrajogo de outras forças e de outros interesses e que apresenta a realidade da individualidade mais como evanescente do que como implementada[2].

Devido à sua passagem ao campo social, a obra desaparece para dar lugar ao enlaçamento em um feixe de interpretações sempre contraditórias, polifônicas e estranhas ao próprio autor. O que a consciência experimenta através de sua obra é pois a:  “a inadequação do conceito e da realidade que em sua essência reside”[3]. Ou seja, o que a consciência vê na obra não é a simples tradução da noite da possibilidade para o dia da presença, mas a formalização da inadequação entre efetividade e conceito que é a própria essência da consciência.

De fato, Hegel afirma que o conteúdo da experiência de confrontação com a obra feita pela consciência é a obra evanescente (verschwindende Werk). Uma dissolução que ganha a forma da própria obra: “O que se mantém não é o desaparecimento, pois esta é efetiva e vinculada à obra, desaparecendo com ela. O negativo vai ao fundamento (zu Grunde) junto com o positivo, do qual é a negação”[4]. O que nos permite compreender “o desparecimento do desaparecer” do qual fala Hegel como a possibilidade de compreender a obra enquanto manifestação, enquanto apresentação do que só encontra forma nesta passagem incessante ao outro.

É neste contexto que Hegel introduz o conceito de Coisa mesma (Sache selbst). Ao apreender a negatividade que vem à cena na obra, ao apreender a multiplicidade de perspectivas que se confrontam na obra e anulam a compreensão do agir como transparência, a consciência pode compreender tal negatividade e tal multiplicação de perspectivas como manifestação da Coisa mesma. Pois a Coisa mesma seria o fundamento incondicionado do saber, fundamento que supera os momentos evanescentes da obra, já que ela se encontra em todos os momentos, transcendendo todos eles.

No entanto, vimos como a primeira apropriação reflexiva da estrutura da Coisa mesma não nos levava em direção a este saber de si que é, ao mesmo tempo, saber da efetividade, e que é a meta da Fenomenologia. Ela nos levava a um certo jogo de contrários e culto de paradoxos que será melhor tematizado na seção “Espírito”  à ocasião do comentário hegeliano do texto de Diderot, O sobrinho de Rameau. É exatamente por isto que Hegel lembrará: a primeira figura da consciência capaz de se relacionar com a Coisa mesma é a consciência honesta, ou seja, o honnête homme das conversações e salões, versado na arte dos paradoxos e das inversões. Um honnête homme que é este capaz de jogar com a multiplicidade de perspectivas através da arte da conversação brilhante. É desta forma que ele dissolve toda determinidade da coisa (Ding), o que não significa colocar um fundamento incondicionado para o saber.

            Lembrei para vocês como esta consciência que é capaz de colocar a Coisa em uma determinidade e em seu contrário é, no fundo, uma figura da ironia. Esta mesma ironia que, mais tarde Kierkegaard afirmará ser: “um jogo infinitamente leve com o nada”. Mas a consciência deve compreender de outra maneira esta incondicionalidade da Coisa mesma. Ela deve passar da ironia à dialética. Só uma verdadeira perspectiva dialética pode mostrar como:

A Coisa mesma é uma essência cujo ser é o agir do indivíduo singular e de todos os indivíduos e cujo agir é imediatamente para outros, ou uma Coisa [como vimos na definição de eticidade] e que só é Coisa como agir de todos e de cada um. É a essência que é essência de todas as essências, a essência espiritual[5].

É tendo tal questão em vista que Hegel encaminha a seção razão para seu final através de duas últimas figuras da razão: a “Razão legisladora” e a “Razão examinando as leis”. Continuar lendo

Vladimir Safatle – Aula 23/30 – ‘Fenomenologia do Espirito’, de Hegel

Curso Hegel

Aula 23

 

 

Com a aula de hoje, terminamos o módulo dedicado à leitura do capítulo V da Fenomenologia do Espírito, “Certeza e verdade da razão”. Neste sentido, antes de apresentarmos os últimos desdobramentos do capítulo, faz-se necessário voltarmos para uma apreensão geral do trajeto descrito por Hegel até aqui. Antes disto, gostaria de apresentar a reestruturação do calendário de nossas aulas.

A partir da aula que vem, teremos o seguinte calendário:

  • Dia 01 de novembro: o conceito hegeliano de eticidade (comentário da subseção: “o mundo ético). Leitura de apoio: Hegel e os gregos, Heidegger
  • Dia 08 de novembro: a leitura hegeliana de Antígona (comentário da subseção: “a ação ética”). Leitura de apoio: Seções  XIX a XXI do Seminário VII, Jacques Lacan e o capítulo dedicado à poesia dramática no Curso de estética, de Hegel
  • Dia 15 de novembro: Hegel e O sobrinho de Rameau (comentário da subseção: “O mundo do espírito alienado de si”). Leitura de apoio: Paradoxo do intelectual, Paulo Arantes e Cinismo ilustrado, Rubens Rodrigues Torres Filho
  • Dia 22: Hegel e a revolução francesa (comentário da subseção: “O iluminismo”). Leitura de apoio: O iluminismo e a revolução, capítulo de Lições sobre a filosofia da história, de Hegel
  • Dia 29: Os impasses da moralidade (comentário da subseção Gewissen: a bela alma, o mal e seu perdão)
  • Dia 06 de dezembro: O conceito hegeliano de religião (apresentação do capítulo “Religião”). Leitura de apoio: “Ces vieux mots d´athéisme …”, de Lebrun
  • Dia 13 de dezembro: O saber abosluto (apresentação do capítulo “O saber absoluto”)

Recapitulação

 

Desde o início deste módulo, procurei insistir na especificidade do capítulo “Certeza e Verdade da razão”. Pois, se na seção “Consciência”, foi questão da análise da relação cognitivo-instrumental da consciência com o objeto, e, na seção “Consciência-de-si”, questão da relação de reconhecimento entre consciências como condição prévia para o conhecimento de objetos, a partir da seção “razão”, chegamos a um estádio de unidade entre consciência e consciência-de-si, unidade que pode ser sintetizada através da noção de que a estrutura do Eu duplica a estrutura do objeto e cuja realização perfeita nos levará ao saber absoluto. Há, de fato, uma unidade de propósito nestas quatro seções finais, já que cada uma mostrará modos distintos de posição deste princípio de unidade.

Neste sentido, o “caráter progressivo” que animava o desenvolvimento da Fenomenologia dá lugar a uma procura pela perspectiva possível de fundamentação de um “programa positivo para as aspirações de fundamentação da razão”. Daí porque: “é apenas após o capítulo sobre a razão que a Fenomenologia chega ao ponto que Hegel tinha inicialmente situado no capítulo sobre a consciência-de-si: essência e fenômeno se respondem, o espírito se mostra “essência absoluta sustentando-se a si mesmo”[1].

Mas a primeira manifestação desta unidade entre consciência de objeto e consciência-de-si, unidade que Hegel chama exatamente de “razão” (lembremos da definição canônica: “a razão é a certeza da consciência ser toda a realidade”), é imperfeita. Para Hegel, tal imperfeição é a marca da razão moderna que havia encontrado sua consciência filosófica mais bem acabada no idealismo. Daí porque, a seção “Razão” devia ser compreendida como a análise das operações da razão moderna em seus processos de racionalização; razão agora reflexivamente fundamentada no princípio de uma subjetividade consciente-de-si.. Neste sentido, deveríamos encontrar aqui o que pode ser chamado de crítica hegeliana ao processo de modernização em suas dimensões: cognitivo-instrumental (razão observadora), prático-finalista (razão ativa) e jurídica (razão legisladora – que é, à sua maneira, um desdobramento da segunda).

Como já deve estar claro para vocês, a miríade de críticas que Hegel endereça aos processos modernos de racionalização convergem normalmente em um ponto comum: são desdobramentos da incompreensão a respeito da estrutura da consciência-de-si, incompreensão derivada da tendência em compreender o sujeito como locus privilegiado do princípio de identidade. Hegel insiste que o idealismo (movimento do qual ele se vê parte) nos traz um conceito renovado de consciência-de-si enquanto fundamento do saber, enquanto condição para a consciência de objeto e enquanto princípio de racionalização de todas as esferas sociais de valores. Daí porque vimos Hegel partir, na seção “razão”, de uma re-compreensão da proposição fundamental de auto-identidade do sujeito (Eu=Eu). Tratava-se de insistir que a correta elaboração do processo de formação da consciência nos impedia de compreender esta auto-identidade do sujeito como posição imediata da auto-percepção de si.

Vimos ainda como nosso capítulo começava também com uma problematização a respeito do Eu penso como fundamento para a estrutura categorial do entendimento, sendo que (sempre é bom lembrar) as categorias eram os operadores que permitiam a realização do conceito de razão como consciência de ser toda a realidade (enquanto campo possível de experiências racionais). Hegel insistia que a regra de unidade sintética do diverso da experiência era fornecida pela estruturação da própria unidade sintética de apercepções, ou seja, pela auto-intuição imediata da consciência-de-si que: “ao produzir a representação eu penso, que tem de poder acompanhar todas as outras, e que é uma e idêntica em toda a consciência, não pode ser acompanhada por nenhuma outra[2]. Kant ainda é mais claro ao afirmar que: “O objeto é aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição dada. Mas toda a reunião das representações exige a unidade da consciência na respectiva síntese”[3]. Assim, quando Hegel constrói um witz  ao dizer que, para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die Bedeutung das Seinen hat)[4], ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação que é modo da cosnciência apropriar-se do mundo.

O que Hegel procurava pois era reconstituir as aspirações da razão através da reconstituição desta categoria fundamental, a saber, o sujeito como fundamento das operações de reflexividade. Pois questionada a possibilidade da auto-intuição imediata de si, são os postulados fundamentais de constituição de processos de identidade, diferença, unidade, ligação que estarão abalados. Por isto, Hegel não esquecerá de dizer que:

Porém a razão, mesmo revolvendo todas as entranhas das coisas e abrindo-lhes todas as veias a fim de ver-se jorrar dali para fora não alcançará essa felicidade [de ser toda a realidade], mas deve ter-se realizado (vollendent) antes em si mesma para depois experimentar sua plena realização (Vollendung)[5].

Realizar-se em si mesma antes de se experimentar no mundo significa que a razão deve racionalizar inicialmente o que lhe serve de fundamento, ou seja, a individualidade, isto antes de saber como se orientar na experiência do mundo. Daí porque vimos como a crítica à dimensão cognitivo-instrumental da razão ia da observação da natureza inorgânica (física), a observação da natureza orgânica (biologia) para encontrar nas “ciências da individualidade” os paradigmas de constituição do objeto de observação científica. Ao final, vimos como a razão só podia apreender o que é da ordem do fundamento de seus processos ao abandonar a tentativa de compreender a confrontação com o objeto a partir das dinâmicas de “observação” da imediatez do ser ou da unidade imediata do Eu. Devemos compreender a razão como atividade (pensada a partir dos processos de desejo, trabalho e linguagem), e não como observação. Daí porque Hegel dirá que “o verdadeiro ser do homem é seu ato (…) o ato é isto: e seu ser não é somente um signo, mas a coisa mesma”[6]. Isto levava Hegel a procurar o fundamento da unidade da razão em sua dimensão prática, sentido maior da passagem da razão observadora à razão ativa. Como dirá Pinkard: “A concepção kantiana da racionalidade como o que é comum a todos os sujeitos e como o que os faz sujeito auto-determinados, e não substâncias determinadas de fora só pode ser realizada através da concepção da razão como prática social, e não através da concepção da razão  como princípio de combinação de representações no interior de experiência coerente. O modelo representacional de conhecimento – modelo de um sujeito inspecionando suas representações do mundo – deve dar lugar ao modelo de conhecimento como participação em práticas sociais”[7].

De fato, Hegel apresentava esta noção de que o verdadeiro ser o homem é seu ato no interior de uma reflexão sobre a fisiognomia. Vimos como a fisiognomia era uma pseudo-ciência, muito em voga à época, baseada na crença em conhecer as predisposições de conduta dos sujeitos através dos traços do rosto. O rosto aparece assim como o exterior que pode, inclusive, ser distinto da própria conduta efetiva dos sujeitos (daí a importância da relação entre o rosto e a predisposição à conduta). Isto levava a fisiognomia a defender o enraizamento do sentido da conduta na predisposição. Era contra este enraizamento da significação na interioridade da intencionalidade que Hegel afirmava que o verdadeiro ser do homem é seu ato. Pois, no ato consumado, a falsa indeterminação da intencionalidade é aniquilada e encontra sua verdadeira significação. No entanto, Hegel nada dizia sobre qual a perspectiva correta de interpretação do ato. Este era o problema que deveria ser resolvido pela subseção dedica à razão ativa. Sem uma perspectiva fundamentada e universalmente válida de interpretação do ato não haverá como darmos conta do que está em jogo nos procedimentos de fundamentação da razão. Foi para dar conta deste problema que Hegel apresentou, pela primeira vez, o conceito de “eticidade”, ou de “razão ética” para falarmos com Robert Pippin.  Esta eticidade era a manifestação (Offenbarung) do conceito de espírito como conjunto de práticas sociais racionalmente fundamentadas e reflexivamente apropriadas. Lembremos novamente da maneira com que Hegel anunciava o advento do reino da eticidade:

Com efeito, este reino não é outra coisa que a absoluta unidade espiritual dos indivíduos em sua efetividade independente. È uma consciência-de-si universal em si, que é tão efetiva em uma outra consciência que essa tem perfeita independência, ou seja, é uma coisa para ela[8].

         No entanto, sabíamos desde o prefácio da Fenomenologia do Espírito que Hegel compreendia os tempos modernos enquanto momento histórico em que: “ não somente está perdida, para o espírito, sua vida essencial; [mas] está consciente desta perda e da finitude que é seu conteúdo”[9]. Neste sentido, todo o resto do nosso capítulo pode ser compreendido como o movimento no qual a consciência descobre a necessidade e a impossibilidade de posição de um conceito de eticidade na modernidade, isto se não formos capazes de concebermos práticas e instituições sociais capazes de responder às demandas de reconhecimento de sujeitos não-substanciais e locus de uma “negatividade ´dialética´ que consiste na não-fixação do negativo, na não-opositividade dos opostos, na elevação para além de toda determinidade”[10]. Como tais práticas e instituições não são sentidas como necessárias por sujeitos que ainda se auto-compreendem como pura identidade a si na dimensão da ação, então Hegel terá que criticar todas as figuras da subjetividade agente vinculada à imediaticidade da auto-identidade. Este foi o eixo que guiou a apresentação hegeliana das figuras da razão na dimensão prática: o hedonismo faustiano, o sentimentalismo da lei do coração e a recuperação moderna do discurso da virtude natural. Veremos na aula de hoje mais três outras figuras: a individualidade romântica (o Reino animal do Espírito), o formalismo ético (Razão legisladora) e a tentativa de recuperação imediata da eticidade (Razão examinando as leis).

         Apenas a título de recapitulação, lembremos como Hegel começava apresentando esta auto-identidade da individualidade através do recurso ao agir em nome da satisfação de impulsos naturais (o hedonismo). Hegel insistia que, o prazer advindo de tal satisfação era confrontação da consciência com uma “essência negativa” (negative Wesen) que devora a quietude do gozo. Essência negativa esta que não é outra coisa que uma “categoria abstrata” (isto no sentido de uma representação que não se aplica a nenhum objeto)..

         Esta noção de essência negativa própria ao gozo do prazer era fundamental. Hegel parece estar insistindo que o agir em nome do prazer não é um agir que se aquieta no gozo. Ele é um movimento circular que nunca se realiza por ser, na verdade, um “círculo de abstrações”, já que não há nada mais abstrato do que “impulsos naturais” . Daí porque, Hegel afirma que a necessidade é apenas a “relação simples e vazia (…) cuja obra é apenas o nada da singularidade”.

         A consciência então procurava a auto-identidade de si não mais na afirmação da singularidade através de impulsos naturais, mas através da sua reconciliação imediata com o universal de todas as vontades através da “Lei do coração”. Através da lei do coração, a necessidade deixou de ser posta como a afirmação da particularidade da posição singular da consciência que procura o prazer, para ser o universal ou aquilo que funda uma lei cujas raízes se encontram no sentimentalismo do coração

Mas lembremos que ficamos com um problema relativo à indeterminação do que aparecia como “necessidade”, como “impulsos naturais”. Esta indeterminação continua. De uma certa forma, a Lei do coração não poderá ser realizada porque ela, no fundo, nada enuncia. Por isto, sob o império da Lei do coração, a consciência nunca irá se reconhecer nas conseqüências de seus próprios atos. Hegel afirma que a consciência desconhece a natureza da eficácia (Wirksamkeit) da ação, isto no sentido dela não ter à sua disposição uma perspectiva correta de avaliação dos processos de produção do sentido da ação social. Ela está certa de ter imediatamente à sua disposição o sentido de seu ato (seja ele político, moral). Poderíamos dizer, parafraseando Merleau-Ponty, que essa consciência age em nome de: “uma filosofia do homem interior que não encontra a menor dificuldade de princípios nas relações com os outros, a menor opacidade no funcionamento social e substitui a cultura política pela exortação moral”[11]. Como vimos, o resultado será um dilaceramento da identidade da consciência que não pode ser por ela reconhecido. Daí porque, a Lei do coração termina na loucura.

Vimos ainda como a consciência podia ainda tentar, deliberadamente, anular a própria individualidade para salvar o princípio de identidade. Isto ela fará através da recuperação do discurso da virtude natural, sentido fundamental da figura “A virtude e o curso do mundo”:

A consciência, através da recuperação do discurso da virtude natural tenta inverter o sentimentalismo da Lei do coração ao afirmar que seria apenas através do sacrifício da individualidade (que é visto como o “princípio de inversão” do sentido virtuoso do curso do mundo) e da aniquilação dos egoísmos que o curso do mundo pode aparecer tal como é em sua verdade. As ações não devem ser vistas como o que é feito pela individualidade, mas como o que é feito como abnegação a partir do bem em si. Abnegação feita a partir da fé em uma Providência que garante a virtuosidade do curso do mundo, isto quando a individualidade usa corretamente seus dons e forças, não interferindo a partir de seus próprios desígnios egoístas. No entanto, a consciência fez a experiência de que a individualidade é o princípio da efetividade, já que a  individualidade que atua é o que inverte o nada da abstração em ser da realidade. Daí porque Hegel pode dizer que a recuperação moderna da virtude é pura retórica que não pode determinar de maneira precisa sua significação. Ao final, vimos como a consciência virtuosa se reconciliava com o curso do mundo através da suspensão da oposição entre o agir particular e os interesses do universal: “A individualidade do curso-do-mundo pode bem supor que só age para si ou por egoísmo”, dirá Hegel, “ela é melhor do que imagina, seu agir é ao mesmo tempo um agir universal sendo em si. Quando age por egoísmo, não sabe simplesmente o que faz”[12].

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