Resumo – “República” de Platão – Livro VII

Resenha VII

            

            O livro VIII começa retomando um assunto há alguns livros deixado de lado, que são as formas de governo e os correspondentes tipos de alma, que são cinco no total, sendo uma perfeita e quatro defeituosas. A perfeita se refere a esta forma ideal de cidade discutida até agora, isto é à aristocracia, pois os melhores governam, aristoi. No entanto, estavam em falta quanto aos outro quatro tipos de governo, a saber: a timocracia, o governo das honrarias; a oligarquia, o governo dos ricos, a democracia, o governo da maioria do povo; e a tirania, o governo de um. Análise toma o foco de mostrar as origens de um governo ao outro, então começam sobre como a timocracia se origina da aristocracia.

            Essa mudanças de governo ocorrem na verdade dentro dos próprios governos, sendo a causa desta em questão, a transgressão das normas de reprodução dos guardiões. Desta maneira, da aristocracia, onde os melhores são escolhidos para governar, a timocracia nasce do desrespeito pelos ciclos de fertilidade dos guardiões e a mistura das diferentes raças, isto é, como dito em outro livro, da procriação fora do melhor tempo da vida e da mistura maior dos piores homens que dos melhores. Essa prole enfraquecida, portanto, só pode gerar desigualdades e desarmonia, o que por fim provocará a falta de justiça, ódio, desequilíbrio e guerra. Ademais, essa raça ou geração mais fraca tende a exercer mais a ginástica à música, o que os torna mais agressivos, violentos, ávidos de riquezas e honrarias, misturando assim o bem e o mal do caminho. Assim também devemos considerar os homens correspondentes a esta forma de governo.

            A forma de governo que vem da timocracia é a oligarquia, onde os ricos comandam e os pobres excluídos. Neste governo, as leis são feitas para satisfazer ao avarento da timocracia, ou seja, ele se torna mais rico e começa a se preocupar apenas com seus próprios bens, desprezando totalmente a virtude. Para tanto, a escolha do governante é a quantidade de dinheiro e, usando a força, governa pelo medo. Entretanto, em tal condição o conflito de ricos e pobres é constante. A cidade entra em desarmonia, pois o inimigo interno é constante, enquanto que no caso de inimigo externo, os ricos hesitarão em dar armas aos pobres e ainda mais em arcar com a guerra. Em extrema situação de pobreza, é muito plausível que pessoas abandonem tudo para roubar, profanar e saquear, dando abertura grande ao crime, uma vez que o desejo por dinheiro não é só dos ricos, mas contamina também aos pobres. Então, a satisfação desenfreada dos desejos subjugarão a virtude, acabando por educar as crianças de uma mesma maneira pobre.

            Quando os ricos tiverem que vender tudo para saldar suas dívidas e se tornarem poucos na sociedade. E, quando os pobres foram tantos em condições tão humilhantes que a revolta fosse eminente, surge então a democracia da oligarquia, pois os ricos estão em ruínas e a maioria precisa decidir pela cidade. Nesta situação, os cargos públicos serão decididos por meio do sorteio, o que caracteriza a liberdade de falar e fazer qualquer coisa. Desta maneira, muitos a escolhem como a melhor forma de governo.

            No entanto, por fim Sócrates diz ser a tirania a forma mais bela de governo, que nasce da democracia. É no desejo desenfreado do grande bem da democracia, a liberdade, que leva à sua destruição. Isto é, quando é exigido do governo mais do que se pode conceder, como que bêbados de liberdade, acabam por chegar à anarquia. Os papeis começam a se exacerbar e a se inverter. Os cidadãos ignoram qualquer lei que ameace sua liberdade, porém por fim as ignora completamente, tornando todos os libertos em escravos deste exagero, já que todo exagero em uma direção tem uma resposta equivalente na direção contrária.[1]

            Nesta forma de governo, há três grupos de pessoas: os zangões, pessoas ociosas e desajustadas pelo excesso de liberdade, que findam por se destacar e assumir a cidade; os ricos, uma  minoria que se contrapõe à multidão; e o povo, que é muito pobre, mas se encontra poderoso por ser numeroso.

No entanto, são os próprios zangões, estes bêbados de liberdade, que uma vez de posse do poder da cidade, colocará os pobres contra os ricos, tendo nesta batalha sempre uma parcela para si. Ele se mostra amigo do povo, dando-lhes privilégios, promessas e guerras para que sempre tenham a necessidade de sua liderança. Não querendo perder o poder, elimina todos os seus opositores e, não sabendo quando haverá tempo para conspirar contra si entre as ocupadas guerras, sempre terá mercenários para protegê-lo e garantir sua posição. Ou seja, por fim, numa sede de poder ignora seus iguais e se isola com mercenários que podem muito bem ser estrangeiros e apenas sedentos por dinheiro, não por virtude. Acontecendo de até se tirar o dinheiro do povo para se manter. Assim, por não haver harmonia e justiça nesta cidade é natural que a tirania nasça da democracia. A liberdade morre naquele que mais a possuía.

 

PLATÃO, A República (Da Justiça). Edipro. São Paulo. 2006. p. 302


[1] Fato interessante aqui é que esta regra que parece ser de senso comum da época sobre a ação e reação é também a terceira lei de Newton. “Se um corpo exerce uma força sobre outro, este reage e exerce sobre o primeiro uma força de intensidade e direção iguais, mas em sentido oposto”.

Razão, Fé e Ciência – Assunto Fascinante, Relações Conflituosas.

Por: Carlos Eduardo Bernardo.

Para Um Bom Começo.

Todas as pessoas têm naturalmente certa compreensão do que se quer dizer quando se fala sobre fé; ainda que tenham dificuldade em conceituá-la dificilmente irão dissociar a fé das noções que têm acerca de religião, Deus ou mundo espiritual. Certamente essa é a primeira associação que se faz com o conceito de fé: a fé religiosa.

Todavia, esse senso comum acerca da “fé religiosa” está marcado por certa incipiência e esta o aproxima da idéia mais geral de crença. Mas crença não

Paul Tillich (1886-1965). Teólogo protestante de perspectiva existencial. "[...] fé é a preocupação última  de todo ser humano".

Paul Tillich (1886-1965). Teólogo protestante de perspectiva existencial. “[…] fé é a preocupação última de todo ser humano”.

implica necessariamente a dimensão religiosa, pode-se crer nas instituições, nas pessoas ou em esperanças que têm as mais variadas origens, e, neste sentido é possível falar de fé política, fé antropocêntrica, fé institucional e assim por diante.

Não é tarefa fácil definir “fé”, pois muitas definições são possíveis, mas neste contexto se toma por referência a contribuição de Karl Rhaner (1904-1984) e Paul Tillich (1886-1965), pois parece que elementos que compõe suas

Karl Rahner (1904-1984)Importante teólogo católico e sua contribuição com a leitura existencial da fé

Karl Rahner (1904-1984)
Importante teólogo católico e sua contribuição com a leitura existencial da fé

respectivas definições podem ser atribuídos a todo exercício de fé, independente da religião. A presente reflexão trata da fé em sua dimensão mais especificamente religiosa, no entanto convém clarificar qual seja a concepção – conceito – de fé religiosa visado neste texto. A fé religiosa é aqui entendida como a disposição de “abertura subjetiva e ilimitada do sujeito” (RHANER, 1989, p.32) para com aquele que “é último em ser e em sentido” (TILLICH, 1987, p.485), o transcendente que tem em si prerrogativas que possibilitam a relação, a religação (lat. religio).

Por que temos que escolher entre a fé e a razão? Porque supomos que elas são instâncias mutuamente excludentes? Por que supomos que se alguém “crê não pensa e se pensa não crê”?

Estas questões não são colocadas com objetivo polêmico ou apologético, mas, simplesmente em caráter reflexivo. Pois é fácil encontrar diversos textos que, de um modo, ou de outro, fazem apologética da fé ou da razão, ou apenas polêmica desta temática.

Quando resolvemos uma equação não usamos o sentimento, quando apreciamos Quinta de Beethoven não fazemos racionalmente, embora não estejamos despojados dos sentimentos ou da racionalidade nos dois casos, e, por vezes fazemos uso seletivo de nossos atributos de acordo com o objetivo a que nos propomos. Nada impede que se faça uma análise matemática da Quinta referindo-se a sua métrica, ou que resolvamos apaixonadamente uma equação de segundo grau, mas, isso não é o que se espera de todos e não é que fazemos com maior freqüência.

Ao ultrapassar a fase da vida em que se tem uma visão mágica do mundo, crer na existência do Papai Noel, ou noutras fábulas, é tão ingênuo quanto à tentativa em “calcular quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete”; mesmo que se provasse a existência dos anjos jamais poderíamos fazer tal cálculo, porque essa existência ultrapassaria o âmbito de tudo que é de competência da razão.

A racionalidade procura o objeto que lhe é próprio, assim como fé também o faz. Colocar os objetos da fé na esteira da razão ou os objetos da razão na esteira da fé só ocasiona equívoco e problemas para o desenvolvimento da humanidade nos dois aspectos. Quando falamos das descobertas de Albert Einstein (1879-1955) pensamos em Ciência e não em religião, ainda que se possa advogar que num sentido muito peculiar Einstein foi um homem profundamente religioso, quando falamos de Paul Tillich pensamos em religião e não em Ciência, embora Tillich demonstre um conhecimento profícuo de assuntos científicos.

O fiel interessado em saber acerca da formação geológica da Terra procura informações num livro de Ciências, mais especificamente de Geologia, um aluno universitário que queira saber o crê um cristão começa pela leitura dos Evangelhos. Não se espera encontrar descrições dos aspectos constitutivos da litosfera, ou da hidrosfera na Bíblia, ou nos Evangelhos, assim como não esperamos encontrar no Tratado de Geologia Geral a narrativa do nascimento virginal de Jesus Cristo.

Ao não fortalecer a fé do indivíduo a Ciência em nada é diminuída, porque este não é seu objetivo; de igual modo a Religião não é menos importante por não nos enriquecer em conhecimentos sobre os fenômenos naturais, pois seu objetivo não é este. Porém a Religião será sempre diminuída se for evocada com propósito a obstruir o avanço da Ciência e certamente seus argumentos não serão nem um pouco religiosos, já a Ciência é sempre diminuída quando evocada com o puro propósito de destruir a fé, ou substituir a religião[1].

Stephen Jay Gould (1941-2002), talvez, o mais destacado evolucionista do século passado, desenvolveu uma descrição apropriada da capacidade de abrangência tanto da ciência, quanto da religião, ele a chamou “Teoria dos Magistérios Não-Interferentes”. Sua teoria propõe que as duas instâncias são magistérios – serviços – distintos, cujo campo de atuação não se permite interferir, pois, seus objetos e objetivos são de naturezas totalmente díspares, a ciência tem como objeto a Natureza e trabalha com explicações naturalísticas, o que coloca fora de seu alcance tanto os “objetos” da religião, quanto da moral.

A religião, por outro lado, objetiva a salvação – ou emancipação – espiritual da humanidade, ela cuida de questões sobre o relacionamento com Deus – ou com os deuses – no seu escopo estão inseridos assuntos relativos a espíritos, anjos, demônios, Deus e divindades, destino eterno da humanidade ou do indivíduo. Portanto, suas “explicações” jamais serão naturalísticas, e, seu objeto jamais será a Natureza – a menos que defendamos tratar-se da Natureza Oculta das Coisas, o que não inferimos neste contexto.

Os campos da religião e da ciência são distintos e dependem de instâncias de juízo, ou valorativas diferentes, a religião está submetida à instância da fé, e a ciência à instância da razão que se debruça sobre evidências dadas nos objetos da natureza, buscando corroboração para suas teorias na experiência.

Muitos cristãos ficaram indignados com a definição de fé dada por Richard Dawkins (1941): “[…] uma confiança cega, na ausência de evidências, até mesmo nos dentes das evidências”. Mas, não há motivos para tanta indignação. É possível que o adjetivo “cego” quanto ligado ao substantivo “fé”, seja o motivo principal de tal reação, porém, essa é a única forma como se pode qualificá-la em face da ciência e da razão, pois, seus objetos são invisíveis para estas instâncias e o cristão não deveria ofender-se com o cético quando ele afirma que a situação que se lhe apresenta no mundo da fé é como uma cegueira, pois ela o é realmente, e, isso do ponto de vista em que se coloca o homem “sem fé”, mesmo o homem de fé se posiciona ante o seu alvo como quem pode vê-lo, ainda que este lhe seja invisível como Moisés que ficou firme como se visse o invisível ou quando Paulo disse que Deus é invisível, e, é este o sentido da impossibilidade em ser visto, enquanto objeto da fé[2], ainda o homem de fé se move ante o que seja evidente como que lhe atribuindo menor importância, comparado ao homem sem fé, ou até mesmo ignorando as coisas visíveis, porque não são elas quem o orienta.

O homem de fé pode igualmente dizer que a atitude do homem sem fé, ao tratar racionalmente das “coisas espirituais”, é uma “racionalidade cega”, e, os homens que não creem não devem ficar indignados com isso, pois, podem perceber que o tratamento das coisas da fé com os olhos da razão não consegue chegar a assentir o objetivo da fé. É algo como tentar sentir o cheiro de uma flor com os olhos, ou o gosto da maçã com a ponta dos dedos, em ambos os casos são necessários os sentidos adequados, o olfato para o aroma e o paladar para o gosto. Igualmente, a razão para os cálculos e a fé para se aceitar um evento sobrenatural. Continuar lendo

Resumo – “República” de Platão – Livro VI

Resenha VI

            O livro VII começa puxando o assunto da educação dos filósofos e o tema da luz do livro VI, onde se esboçou também uma idéia que se concretiza neste instante sobre alegoria da caverna de Platão.

            Pessoas moram presas numa caverna. Pela entrada, vem uma luz de uma fogueira. Todos os moradores estão lá desde a infância, ou seja, foram educados de uma mesma maneira desde então. Há um muro entre eles e o fogo e não conseguem olhar para trás. Desta maneira, não vêem a fonte da luz, mas apenas as figuras ou sombras que da abertura vem. Assim, os habitantes da caverna, que só viam sombras, teriam a opinião de que elas são os próprios objetos reais. Até o eco pareceria vir das sombras.

            No entanto, se fossem libertos e olhassem para trás, sofreriam pelo ofuscar da luz forte, mas, ao mesmo tempo, estariam mais perto da realidade, dos objetos reais e não de suas sombras. Se fossem obrigados a sair então, ficariam aflitos irritados por alcançar a  mais forte luz, a do Sol, a ponto de nem conseguirem discernir as coisas que lhes dissessem ser verdadeiras. Seria preciso habituar-se nesta região superior fora da caverna para então depois poder olhar diretamente ao Sol e não ao seu reflexo na água. Isto é, depois de certo tempo, pode-se alcançar o verdadeiro conhecimento, o Bem.

            A partir daí, veria que era o Sol a fonte de todas as coisas que via na caverna, as sombras ou, pode-se dizer, opiniões e que este produz as estações, o ano e as coisas visíveis.

            Entretanto, uma hora este homem pensaria  nos seus “antigos vizinhos” e lembraria de quando atribuíam prêmios para quem adivinha-se mais rápido a sombra, mas isso não fazia mais sentido agora. As sombras não são a realidade. Então, voltaria para alertá-los. Todavia, sozinho seria motivo de risos[1], lhes diria tudo para perder a credibilidade, como dizendo que sua visão estivesse prejudicada pela luz e, por fim, até matariam quem tentasse libertá-los para mostrar a luz e tirá-los deste jogo de aparências em que estavam tão bem estabelecidos desde a infância.

            Esta é para o autor desta resenha a parte mais importante do livro VII. A alegoria em si com certeza por explorar a questão solar, mas mais importante que isso é Platão tratar a vida de Sócrates ou do filósofo desta maneira. Como o homem que viu a luz diretamente e retornou para os seus iguais, mas tendo os outros sidos educados desde sempre às sombras, não queriam se desfazer de tantos anos de ilusão, de uma falsa realidade, de um prestígio que não passa de sombras dos objetos reais. Platão aqui discorre sobre a elevação da alma ao mundo superior inteligível, isto é, o Bem, o pai da luz.

            Desta forma, ficam mais clara as dificuldades que os filósofos enfrentam na cidade, pois são poucos realmente os que chegam até a última fase da educação, a de ser filósofo. E a este cabe o papel de educar na cidade ideal que se está construindo, pois é o que conhece a essência das coisas, como vimos no livro VI, e sabe os métodos da boa administração da cidade. Em resumo, cabe a todo filósofo retornar à caverna.

            Posteriormente, Sócrates toma o longo tema do processo pelo qual seriam formados os filósofos, que além da música e da ginástica, teriam de saber a ciência dos números e do cálculo, uma vez que tal ciência é útil na guerra. Porém, a matemática e a inteligência indaga também sobre a grandeza e pequeneza das coisas, se tornando não só algo útil à guerra, mas ao alcançar da essência. Assim como na geometria, que é uma ciência que lida com o que existe sempre, não com o que gera e se destrói. E também para com a astronomia que tem como campo a agricultura, a navegação, mas também ajuda a alma a acostumar-se com a contemplação do que é verdadeiro.[2]

            Como no livro VI, Sócrates diz que o que é o Sol para o mundo visível, ou seja das sensações, é o Bem para o mundo inteligível e que somente com a dialética podia-se alcançar o conhecimento da essência das coisas. Enquanto as outras artes só se apóiam em opiniões, o método da dialética destrói toas as hipóteses e torna seguro seus resultados, já que apenas este método alcança o princípio autêntico da realidade, o Bem.

            No entanto, para tal tarefa de alcançar o Bem, é preciso possuir certas disposições naturais discutidas em outros livros. Além do mais, é também preciso desenvolver outras qualidades intelectuais, morais, atléticas e virtuosas; ter facilidade no aprendizado, boa memória, abominar a mentira e destacar-se em sua grandeza.

            Por fim, Sócrates divide as etapas de ensino do filósofo em: Inicial, que corresponde da infância aos vinte anos; A segunda, que corresponde dos 20 aos trinta anos; A terceira, que corresponde dos trinta aos cinqüenta; E a última, que é quando depois de terem contemplado o bem em si, podem servir-se dele como modelo e impor ordem à cidade para então poderem se retirar tranqüilos para as ilhas do Bem-Aventurados[3], podendo serem reconhecidos como quase Deuses por seus concidadãos.


[1] Que é o que o Sócrates é vítima dos seus próprios interlocutores.

[2] Não é a única vez que Sócrates cita os pitagóricos nas obras de Platão. Aqui diz que se juntasse a harmonia aos feitos do olhos, traduzem-se tudo o que estudam os números, medidas, proporções, isto é, relações inteligíveis.

[3] Ilha mitológica de delícias no além para aqueles que praticassem o bem em vida.

Tillich e a “Introdução” de sua “Teologia Sistemática”.

Por: Carlos Eduardo Bernardo.

A teologia, como função da igreja cristã, deve servir às necessidades da igreja. Um sistema teológico deve satisfazer duas necessidades básicas: a afirmação da verdade da mensagem cristã e a interpretação desta verdade para cada nova geração. (TILLICH, 1987, p.13)

É muito importante destacar estas palavras introdutórias do Dr. Tillich à sua “Teologia Sistemática”, pois sua afirmação inicial já estabelece um princípio diretivo para toda a reflexão ulterior. Não é com qualquer teologia que Tillich

Sexta edição, em língua portuguesa, da obra magistral de Paul Tillich, Teologia Sistemática. Fonte da Imagem: www.erdos.com.br

Sexta edição, em língua portuguesa, da obra magistral de Paul Tillich, Teologia Sistemática. Fonte da Imagem: http://www.erdos.com.br

pretende se ocupar, mas com a teologia enquanto “função da igreja cristã”, posto isto, está justificada a sua afirmação quanto à “servilidade” da teologia em relação às necessidades da igreja.

Desdobrando esta afirmação é possível compreender que para Tillich a teologia, no sentido em que aqui se sustenta, tem sua razão de ser e seu significado, quando sua origem e seu exercício se encontram na reflexão cotidiana da igreja e em sua atividade ministerial. Portanto, é natural que o autor, com este princípio em mente, tenha escrito sua obra mor, aspirando que esta fosse útil à Igreja dentro de sua esfera existencial, e, não se constituindo em mais um compêndio frio para consultas esporádicas.

Também é provável que Tillich tenha vislumbrado certa defecção na vivência eclesial, caracterizada pela existência de “instituições” voltadas à formação especificamente teológica; não significa isto que ele fosse contrário à existência destas instituições, mas ele se opunha à sua sobrevalorização. Ele se colocava contra a atitude destas instituições e de seus representantes que pretendiam “ditar regras” à igreja e exigiam que ela apenas se dignasse em obedecer. Para Tillich a teologia e os teólogos devem reportar-se à Igreja, reconhecendo sua obediência a esta que é […] coluna e baluarte da verdade[1]; a igreja tem existido autonomamente em relação a essas instituições, mas estas são contingentes à existência da Igreja.

É necessário o reconhecimento do que foi dito acima, cabe aos teólogos validar tanto na teoria, quanto na práxis, o seguinte princípio: servir às necessidades da igreja deve ser o objetivo da teologia.

Mas, a partir deste ponto, Tillich aprofunda esta proposição e a amplia. A igreja padece de inúmeras necessidades, quais delas podem ser supridas pela teologia?

Tillich aponta duas[2] necessidades consideradas fundamentais: 1ª) a afirmação da verdade da mensagem cristã. 2ª) a interpretação dessa verdade para cada nova geração.


[1][1] I Tm. 3,15

[2] Infelizmente na edição em língua portuguesa, que tenho em mãos, há u m erro tipográfico que faz Tillich dizer “suas necessidades […]”, onde no original se lê “two basics needs: […]”, portanto “duas necessidades […]” conforme traduzimos acima. Vide: http://books.google.com.br/books?id=WIyz0mYxAwkC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_book_other_versions#v=onepage&q&f=false

Do mundo fechado ao universo ridículo: Marcelo Gleiser e a monotonia dos cientistas que não sabem rir de si

Por Diego Azizi

Marcelo Gleiser é um grande cientista, um físico formidável que, tanto em programas de tv quanto em publicações destinadas ao público não especializado, divulga a ciência e as maravilhas de suas descobertas de forma acessível e apaixonante. Contudo, cai no velho clichê do “especialista quadrado” que fica irritado quando sua classe é ridicularizada, como se ela estivesse, inexoravelmente, imune ao riso.

Na coluna que escreveu para a Folha em 2010* (e descoberta por mim apenas recentemente), reconhece a projeção que os cientistas e acadêmicos estão tendo na cultura pop nos últimos tempos, tanto nos livros e no cinema quanto na televisão, mas ataca ferozmente a imagem que uma sitcom em especial cria sobre os cientistas. A referida série chama-se The Big Bang Theory, e conta basicamente a história de dois físicos, um teórico e um experimental que moram de frente para o apartamento de uma garçonete aspirante a atriz, fazendo com que a relação entre esses personagens proporcione, para cada um deles, novas formas de ver o mundo, com lições e aprendizados que apenas uma perspectiva diferente pode ser capaz de realizar. É a partir daí que se constroem momentos memoráveis na história da comédia televisiva.

Gleiser afirma que “a imagem do cientista é a de um quase pateta, incapaz de funcionar socialmente ou de ter relações interpessoais normais. Neuróticos, afeminados, completamente estereotipados, os cientistas são essencialmente palhaços. Todas as idiossincrasias que se espera do mais nerd dos cientistas afloram a cada episódio. Ou seja, a série usa uma imagem distorcida dos cientistas para criar situações de humor”.

Contudo, podemos identificar uma confusão de Gleiser, ao afirmar que a série usa uma imagem distorcida dos cientistas. Primeiro que ele opera uma visão “metonímica” da narrativa, tomando a parte pelo todo. Não há distorção, há apenas a construção de personagens que são geeks e também são cientistas. Não é a imagem, ou melhor dizendo, não é o conceito de cientista que está sendo construído pelo seriado, mas sim a descrição de que aqueles (e isso é particular e não geral) cientistas em específico, que também são jovens e geeks, são daquela forma. No seriado existem outros cientistas, outros professores na universidade que não são caracterizados dessa maneira. Basta acompanhar o seriado para constatar.

Mas mesmo que o seriado fosse construído de outra forma, generalizante digamos, Gleiser esquece aquilo que há muito tempo atrás (e que ainda funciona contemporaneamente) Aristóteles definiu como sendo a essência da comédia: a ridicularização.

O ridículo funciona como a provocação de uma paixão alegre que provoque riso em quem  assiste a comédia. Ela é “imitação de homens inferiores; não, todavia quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do que é torpe e ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente;”[1]. Portanto, a comédia é a imitação de atos ridículos, exageros daquilo que existe enquanto atitudes reais. Não é o cientista que é ridículo, mas as ações daqueles homens que possuem sua parcela de ridicularidade, que é exagerada para atingir o cômico. Gleiser, portanto, rejeita aquilo que Aristóteles descreve como sendo parte da essência do cômico.

O físico brasileiro, além de criticar a essência da comédia, gostaria que sua prática (a ciência) fosse heroicizada tal como alguns outros seriados fazem com os advogados ou os policiais que tratam especificamente de descrever romanticamente determinado ofício. “Em raríssimos casos, essas profissões são tomadas como veículos de humor. Ao contrário, os policiais, advogados e médicos são heróis, salvam vidas, resolvem casos complicados, prendem assassinos perigosos. O contraste, para quem tenta combater o estereótipo do cientista nerd na mídia, é doloroso”, afirma Gleiser.

Contudo, esquece que os cientistas já são enaltecidos e reverenciados na maioria das séries em que possuem certo protagonismo. Em Bones é a genial antropóloga forense quem geralmente descobre a chave para resolver determinado crime; em Numbers é um matemático quem ajuda a polícia, também, na resolução de crimes complicadíssimos; em Quantum Leap  um cientista constrói uma máquina do tempo e encara diversas aventuras; em Eureka, uma cidade construída em torno do progresso científico e cujo tema da ciência está presente em toda a narrativa, os ridicularizados são os não cientistas. Os exemplos aqui poderiam se multiplicar. O que fica claro é que em todas essas séries há elementos cômicos que, obviamente, utilizam o elemento do ridículo para produzir o riso.

Portanto, ao assistirmos comédias, o ridículo sempre está presente! Em Scrubs os médicos são bobos e infantis e, alguns, tem sérios desvios de caráter; em Reno911! os policiais estão longe de serem heróis, além do seriado ser um exercício de ridicularização radical, não apenas dos próprios policiais, mas também dos programas documentais (como Cops ou, no Brasil, Polícia 24h) que tentam captar a profissão em sua plena realidade; em Boston Legal, como sempre, os advogados são ridicularizados por suas atitudes nada louváveis e corruptas.

Portanto, caro Gleiser, o seu texto não vai contra o seriado The Big Bang Theory, e sim contra o próprio gênero cômico, que sim, está presente em todas as temáticas de todas as séries. Rir é rir do outro, enquanto os aspectos ridículos desse outro são radicalizados e enfatizados, mas, esse outro somos nós também. Como já dizia Nietzsche, na epígrafe de sua “Gaia Ciência” (a ciência alegre): “Moro em minha própria casa, nunca copiei nada de ninguém e rio de todo mestre que nunca riu de si também”.

Faça você, então, a sua ciência, da forma como magistralmente faz e deixe o cômico com quem sabe fazer, tal como Chuck Lorre e os atores da série, que fazem o que fazem como ninguém jamais fez, tanto para a comédia quanto para a ciência, levando a uma geração inteira de jovens que, ao rirem dos cientistas que tanto amam, acabam despertando uma paixão pela ciência que constantemente vai aumentando. Os prêmios escolhidos pelo público para a série e seus personagens nos provam isso. É possível rir e amar o objeto do riso, além de ser possível, também, desejar ser o objeto do riso.

“Mas certamente existem outros modos de fazer da ciência objeto dramático ou mesmo engraçado sem ridicularizar o cientista”. Sim, existem outras formas de fazer da ciência objeto dramático, e acima já citei, mas, sem o ridículo, meu companheiro, não há cômico.

Trágico é um texto que atinge o ridículo e não está nada perto de ser cômico, senhor Gleiser.


[1]    Aristóteles. Poética, V, 1449a. (Tradução de Eudoro de Souza. Col. Os Pensadores)