Os escritos histórico-políticos de Immanuel Kant


Introdução

O presente texto tem como meta, uma breve introdução ao pensamento político kantiano (também chamado de reflexão sobre a filosofia da história), pensamento esse que, em nossa época e particularmente em nosso país, ainda é muito pouco estudado.

Kant não possui uma obra em particular, a respeito de sua concepção de filosofia da história, entretanto, esse pensamento se encontra distribuído em vários opúsculos que escreveu entre os anos de 1780 e 1790.

Nosso texto pretende ser um tipo de “mapa da mina”, onde a intenção é fornecer uma visão geral desses textos kantianos. Observamos que essa introdução (e qualquer introdução) nunca, jamais substituirá os textos originais. Portanto, nosso “mapa” é um encorajamento para se enfrentar os textos originais de frente, com paciência e rigor, pressupostos indubitavelmente necessários para compreender qualquer texto filosófico de maneira adequada e correta.

Como nosso professor Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento escreveu em seu livro introdutório para a leitura de Galileu1, “como todo mapa, deve simplesmente nos ajudar a achar alguma coisa: uma rua, uma cidade, uma mina…Aqui se trata realmente de uma das minas do conhecimento humano(…)”, o pensamento histórico-político de Kant.

Um autêntico rebento do Aufklärung alemão

Immanuel Kant é um filho autêntico de seu tempo, conhecido por nós como Iluminismo (mais precisamente o do Séc. XVIII). Kant é, como não poderia deixar de ser, reconhecido como o fundador da filosofia crítica, que superou as concepções racionalistas e empiristas, e refundamentou a teoria do conhecimento. Suas três críticas, a saber, “A critica da razão pura”, “A crítica da razão prática” e “A crítica da faculdade do juízo”, são exemplos impressionantes de um sistema coeso, interpenetrante, que engloba as áreas do conhecimento relativas à epistemologia, ética e estética. Kant é um desses filósofos que dividem a história entre antes e depois de seu pensamento, tal como Sócrates, Aristóteles, Descartes, etc. Porém, se a filosofia crítica de Kant alçou vôo, seu opúsculos sobre a filosofia da história se eclipsaram. Muitas vezes chamados de “textos menores”, tais opúsculos são frequentemente deixados de lado como se não tivessem a menor importância.

Michel Foucault em seus Dits et Écrits II irá fazer uma apologia desses “textos menores” de Kant, reconhecendo a genialidade e importância desses textos, inclusive como referências para se compreender a filosofia crítica kantiana, e apontando elementos que, antes de estarem absolutamente desenvolvidos nas críticas, já apareciam esboçados nesses opúsculos. Foucault, por exemplo, em sua interpretação do opúsculo “O que é o Esclarecimento”, afirma que é exatamente nesse período (do esclarecimento) que o projeto crítico faz mais sentido, e a definição de esclarecimento que Kant desenvolve nesse texto legitimam a filosofia crítica, ou seja, é um texto indubitavelmente, maior.

Algumas perguntas se colocam a respeito desses textos kantianos. Por exemplo, qual a relação desses textos histórico-políticos com o pensamento crítico? A resposta é a seguinte: Os escritos sobre a história têm como finalidade entender o movimento histórico da vida humana, em outras palavras, seu sentido. A vida humana e sua história tende alcançar o que? Com uma pergunta de tal importância, ainda nos perguntamos o porque desses textos serem considerados menores.

O progresso da história humana

O tema do progresso da humanidade é a pedra de toque para compreendermos tais textos. Os questionamentos de Kant referem-se, mais precisamente, à história, à natureza humana e às ações humanas, tendo como plano de fundo, sempre, a idéia de progresso. Pela primeira vez na filosofia ocidental, uma filosofia da história foi feita (o que seria, em termos kantianos a história universal, ou história do mundo). Muitos intérpretes reconhecem a figura de Hegel como sendo o primeiro a produzir uma filosofia da história, contudo, não temos dúvidas de que esses intérpretes estão errados. Basta ler os opúsculos kantianos. Como disse Gérard Lebrun, “é a Kant, e não a Hegel, que remonta a oposição entre a Histoire, disciplina do entendimento, e a Weltgescichte, discurso sobre o sentido necessário da história”.2

Essa filosofia da história possui uma diferença absoluta em relação ao conceito de história empírica. Não se trata de uma descrição factual linear a partir de documentos. A filosofia da história, ao contrário, é um campo de reflexão sobre qual sentido a história humana teria se fosse entendida como a história da razão, em outras palavras, qual sentido a história humana teria se fosse norteada pela razão. Há algum sentido? Se há, qual será esse sentido? A resposta será dada através do progresso desse texto.

Para Kant, a história humana não é aleatória, acidental. A história do homem é determinada pela razão. Chegamos a um ponto importantíssimo para compreendermos a filosofia (como um todo) de Kant: o homem não é um animal (como os outros). Os seres humanos não seguem apenas seus instintos (é assim que Kant entende os outros animais), porém, não são totalmente racionalizados3 (pois se fossem, não haveria progresso da razão).

No entanto, para compreendermos o conceito de homem que Kant possui, necessitamos conhecer a influência que Kant sofreu de um autor de ciências naturais (hoje em dia chamada biologia) chamado Georges-Louis Lecler, barão de Buffon.

O livro de Buffon, “História natural” foi uma grande influência no pensamento kantiano. Neste livro, há um capítulo chamado “Do castor”, onde Buffon divide em grupos as “sociedades naturais”, ou, dito de outro modo, os grupos de seres vivos. Esses grupos são três:

  • as sociedades livres
  • as sociedade constrangidas
  • as sociedades determinadas

Como exemplo do primeiro grupo das sociedades, as livres, Buffon cita o homem, e apenas o homem. Como exemplo do segundo grupo das sociedades, as constrangidas, Buffon cita os castores (que é o título do capítulo de seu livro) e como exemplo do terceiro grupo das sociedades, as determinadas, Buffon cita as abelhas. Não nos interessa, dado o escopo de nosso texto, em saber o porque de cada exemplo que Buffon apresenta, entretanto, não é complicado deduzir. O importante é sabermos que Kant subdivide da maneira Buffoniana os grupos das “sociedades naturais”. Outrossim, importantíssimo para nós, é sabermos que em nenhuma dessas formas de vidas naturais, os integrantes sobrevivem isoladamente, portanto, são todas sociedades gregárias. Já conseguimos, então, extrair uma conclusão desse raciocínio: se para Buffon as três sociedades são gregárias e o homem faz parte de uma dessas sociedades, logo, o homem é um animal gregário. Portanto, se Kant concorda com Buffon nesse raciocínio, então, o homem para Kant é um animal gregário. O pensamento de Buffon e Kant coincidem nesse ponto, porém, a influência acaba por aqui.

Para Buffon, a ordem caracteriza os três tipos de sociedade, o que Kant discorda, pelo menos, no que concerne ao homem. A sociedade humana é bem desordenada (pois é a única racional), com uma sucessão de loucura, vaidade, maldade, destruição. Então, podemos perguntar a Kant, o que é, afinal, a sociedade humana, já que não é igual às outras duas? Kant, então, nos remete à uma idéia ambígua: o homem vive um tipo de guerra perpétua que vem associada à idéia de progresso. Há uma desordem, um conflito perpétuo entre os homens, porém, isso não impede o progresso da espécie humana. Como isso é possível? Aparece então em Kant a noção de “insociável sociabilidade”, e é em torno desses dois conceitos fundamentais que o filósofo alemão constrói sua filosofia da história. Os conflitos nas sociedades dos animais, certamente ocorrem, nos dirá Kant, porém, esses conflitos são contingentes, circunstanciais, e não perpétuos.

O que é então, esse ser que apesar dos conflitos perpétuos, consegue progredir? Quem é esse ser que fazendo tudo o que poderia levá-lo a regressão, mesmo assim progride? Talvez essa guerra perpétua seja uma condição exterior da insociável sociabilidade. Nesse momento, nos sentimos no dever de explicar o conceito de insociável sociabilidade, para a melhor compreensão do leitor.

A insociável sociabilidade é contraditória em seus próprios termos, pois a existência humana é contraditória. Esse conceito, traduzido, significa que há uma inclinação natural nos homens que, ao mesmo tempo em que permitem socializarem-se, permite também desligarem-se uns dos outros. Isso se dá pelo fato de que os homens não são desprovidos de paixões, pelo contrário, eles são movidos por elas. O homem não é um anjo. É no fato dos homens possuírem essas paixões, que reside a tendência de desligarem-se em relação ao outro. Contudo, essas paixões não conseguem apagar a inclinação que os homens têm de se ligar (pois como vimos, para Kant, o homem é um animal gregário, é de sua natureza o convívio com os outros, e sem esse convívio ele perece). A insociável sociabilidade, para Kant, caracteriza a natureza humana.

Kant irá encontrar três paixões que residem em todos os homens, e as descreverá uma por uma. A primeira delas ele chama de cupidez, um tipo de ambição localizada, uma mania de possuir coisas. Essa paixão é vista por Kant como a mais inocente, em outras palavras, a menos perniciosa das paixões humanas. A segunda paixão é chamada de inclinação à dominação, que se mostra desde a primeira infância, é uma paixão pueril. Um exemplo é a vontade despótica da criança (uma primeira corrupção da criança), quando os pais acham melhor não fazer determinada vontade, ou não dar determinado presente. A criança esperneia, grita, chora e irrita, e por incrível que pareça, na maioria das vezes consegue o que quer. Porém, a paixão mais perniciosa e a que mais determina a insociável sociabilidade, é chamada por Kant de ambição. Essa ambição é uma potência, um esforço, melhor dizendo, de aparência. É um querer reconhecimento por algo que aparenta possuir, e no entanto não possui. Não é a busca da virtude, da honra por exemplo, que interessa. Não é um querer ser reconhecido pelos valores que se tem, mas sim por um esforço de aparentar a posse desses valores. Um eco de Sócrates parece pairar sobre esse conceito, e não há dúvidas de que o pensamento socrático (e platônico) influenciou o de Kant.

Considerando as três paixões, nos reencontramos com os dois problemas: como, dado o fato do homem possuir essa insociável sociabilidade, é possível explicar o progresso?

Essa pergunta só pode ser respondida com a leitura dos opúsculos kantianos, e em última instância, da obra kantiana.

Acreditamos ter contribuído para uma visão panorâmica desses textos, e esperamos que o leitor se interesse em se aventurar por esses textos da filosofia da história que Kant nos proporcionou.

No entanto postaremos nossas análises de cada opúsculo de Kant, e tentaremos expor da melhor maneira possível como esses conceitos estudados por nós estão presentes em todos esses opúsculos. O primeiro texto que analisaremos será “O que é o esclarecimento”, que postaremos em breve, e esclarecerá, em parte, essa possibilidade do progresso.

1NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Para ler Galileu Galilei. São Paulo: EDUC, 2003.

2 LEBRUN, Gérard. Uma escatologia para a moral in A filosofia e sua história. Cosac Naify: São Paulo, 2006. p. 199.

3Essa expressão pode parecer estranha, portanto, exige explicação. Utilizamos o termo “totalmente racionalizados”, com a intenção de demonstrar que para Kant não nascemos utilizando livremente a faculdade da razão, ela não está acabada, e por isso exige um desenvolvimento, um progresso. O opúsculo “O que é o esclarecimento”, pode nos ajudar a compreender isso melhor. Postaremos um texto apenas expondo o conceito kantiano de esclarecimento, posteriormente.

Bibliografia:

KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Morão. Edições 70: Lisboa. Sem data.

LEBRUN, Gérard. Uma escatologia para a moral in A filosofia e sua história. Cosac Naify: São Paulo, 2006.

KANT, Immanuel. Idéia De Uma História Universal De Um Ponto De Vista Cosmopolita. Tradução de R. Naves e R. Terra. Editora Brasiliense, São Paulo. 1986.

9 comentários em “Os escritos histórico-políticos de Immanuel Kant

  1. paloma disse:

    ficou bom mas ñ esta mostrando direito a biografia e ta faltando seus principais livros e seus pensamentos

    • Diego Azizi disse:

      Olá Paloma, agradeço o seu comentário, porém, escrevi esse texto com outro intuito. Primeiro, não é um escrito biográfico, por isso não me preocupei com esse aspecto, afinal, existem biografias muito boas sobre o Kant disponíveis e que, do ponto de vista filosófico, apresentam nada mais que curiosidades sobre a vida do autor. Segundo, limitei-me a explicitar os pressupostos necessários para a construção da filosofia da história kantiana e para sua melhor compreensão. Os principais livros de Kant (que sem dúvida são as três críticas e alguns textos pré-críticos) não entram no mérito desse texto, apesar de eu recomendar a leitura desses textos para que a filosofia da história faça mais sentido. E terceiro, o projeto que eu pretendi, a saber, escrever textos comentados sobre os opúsculos referentes à filosofia da história (do qual só escrevi um, sobre o Esclarecimento), será feito, a longo prazo, porém para publicações em comunicações acadêmicas. Posteriormente colocarei aqui, mas é um trabalho hercúleo que no momento não pode ser feito.
      Mais uma vez agradeço o comentário, e aceito sugestões.
      Att,
      Diego Azizi

    • sabrina disse:

      não entendi o texto, mas minha professora adorou muito obrigada!!!!

      • Diego Azizi disse:

        Agradeço o comentário. Se tiver algum ponto que queira discutir, ou algum ponto que não conseguiu compreender no texto, fico disponível para maiores esclarecimentos.
        Grato.

      • Paulo Abe disse:

        Sabrina, o Projeto Phronesis incentiva o entendimento dos textos aqui postados.
        Se for o caso de ter copiado, não precisa nos agradecer, pois não é este nosso intento.
        Agora se for outro, ignore esta prévia.
        No entanto, novamente, aconselhamos a leitura dos originais para uma compreensão completa do autor e da obra.
        Att Paulo

  2. fer1997nando disse:

    gostei da sua resposta mi ajudou muito com a filosofia agradeço bjs vlw

  3. rodolfo disse:

    nao foi bem oq eu queria mais vlw msm assim

    • Diego Azizi disse:

      Rodolfo, o que estava buscando no texto? Talvez eu tenha algum que possa te ajudar, ou eu posso até me animar em escrever um inédito sobre aquilo que procura.
      Att.
      Diego Azizi

  4. Jean sokolowski disse:

    Eu queria saber mais sobre o immanuel kant sobre oq ele fez no iluminismo

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